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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Partidos totalitários em democracias constitucionais

Por José Antônio Giusti Tavares


O fato de que o PT ou mesmo qualquer de seus próceres jamais tenha revisto formal e publicamente as concepções originárias do partido, tendo mesmo recusado a comprometer-se com o pacto constitucional de 1988, revela que lamentavelmente está ainda viva a estratégia revolucionária totalitária que fora enunciada naquele ano. 

Nas democracias constitucionais que funcionam com o sistema presidencial de governo, a representação política e o governo são constituídos por dois procedimentos senão diferentes pelo menos independentes entre si, ambos em eleições universais competitivas periódicas e regulares e com mandato por tempo determinado. Naquelas que funcionam com o sistema parlamentar de governo a representação política eleita pelo voto popular direto nomeia o governo que, diante dela responsável, exercita suas funções enquanto dela detém a confiança, contando, entretanto, com a faculdade contraposta de submetê-la a novas eleições. Nos dois casos são instituídos e funcionam efetivamente mecanismos de separação e de contenção recíproca entre os poderes constitucionais, bem como um Tribunal Constitucional, guardião supremo dos valores e dos preceitos constitucionais; e, em particular, no sistema parlamentar de governo institui-se a separação entre Chefia de Governo, responsável pela execução das políticas públicas, e a Chefia de Estado, responsável pelo equilíbrio da ordem constitucional. Enfim, na democracia constitucional toda autoridade pública é submetida, em princípio, a mecanismos de responsabilização pública; e os direitos individuais, incluído o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à associação, são assegurados pela lei constitucional e pelo poder judiciário.

Os mecanismos institucionais da democracia constitucional são eficazes, sem serem invasivos ou ofensivos, para assegurar o equilíbrio da ordem política e, nela, a liberdade e os direitos fundamentais do ser humano, sem o que não há sequer justiça social. São eficazes, mas são desarmados: são fios de seda, como os denominou Guglielmo Ferrero, o notável jurista, cientista político e historiador liberal italiano da primeira metade do século precedente. Mas fios de seda não permitem atar o dragão da maldade.

Assim, em uma democracia constitucional e representativa, sobretudo quando erodida e fragilizada pela decadência de suas elites, bem como pela corrupção e pela desinformação políticas generalizadas, não só os partidos constitucionais, que se movem nos limites da ordem pública constitucional, mas aquela própria ordem, devem enfrentar o paradoxo de que se encontram com freqüência em inferioridade de condições frente aos partidos revolucionários totalitários que, participando da política institucional, não só não observam aqueles limites mas manifestamente, por suas proposições e por suas atitudes, atentam permanentemente contra aquela ordem.

O paradoxo descrito decorre de quatro fenômenos evidentes. 

Em primeiro lugar, a democracia constitucional é a mais complexa e delicada dentre as formas políticas e muito dificilmente pode competir pela preferência do homem comum com o totalitarismo, que recorre a uma simplificação brutal da realidade política, substituindo a informação e a análise racional pelo apelo direto ao inconsciente e à emocionalidade de indivíduos mergulhados em situação de massas.

Em segundo lugar, ao participarem da ordem política constitucional os partidos totalitários beneficiam-se das prerrogativas e dos recursos que ela confere, sem obrigar-se aos valores, às regras e aos limites que ela impõe e, sobretudo, sem abrir mão do comportamento revolucionário, conspiratório, insurrecional e golpista.

Fora do governo mas, sobretudo, ao ocupá-lo, adotam simplesmente a estratégia leninista-trotskista da dualidade de poder, que consiste em conspirar pelo alto, do interior das instituições, e mobilizar de baixo, mobilizando camadas sociais disponíveis e receptivas e, enfim, gerando pressões societárias, inclusive armadas. Este é o caso exemplar, no Brasil, do Partido dos Trabalhadores e de seu braço armado, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, como revela a Circular do Diretório Nacional na qual aquele partido justificava a sua recusa inicial de obrigar-se à Constituição de 1988, que consagrava as normas e as instituições da ordem constitucional estabelecida:

“O PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo. (...) rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir”.

Ainda em 1988, o atual governador petista do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sustentou, com a sua conhecida competência doutrinária, na revista partidária Teoria e Debate (n°4,pp. 38-41), a estratégia leninista-trotskista da dualidade de poder:

“...o partido deve responder às exigências de uma longa disputa pela hegemonia (...) com a construção de uma cultura política e de uma ideologia socialista em bolsões altamente organizados daqueles setores revolucionários, em direção a uma ruptura com o Estado burguês... com respostas dentro e fora da ordem (...), sob pena de limitar-se aos enfrentamentos na esfera política das instituições da ordem, sendo inexoravelmente sugado por ela”. 

A noção gramsciana, ultra-leninista, de hegemonia, muito difundida na América Latina, significa poder monopólico e é, portanto, absolutamente incompatível com o pluralismo político essencial à democracia constitucional.

Alguém muito complacente poderia objetar às citações acima que elas pertencem ao ano de 1988 e que, entrementes, o partido e o político que as enunciaram podem ter alterado suas atitudes políticas. A objeção seria pueril mas respondê-la introduz a oportunidade de pontuar um princípio elementar.

Partidos e homens públicos têm a responsabilidade de publicar não só as suas concepções e estratégias políticas, mas as revisões ou mudanças que, quanto àquelas, tenham feito. Em 1959, no Congresso de Bad Godesberg, o Partido Social-Democrata Alemão declarou, em um documento formal amplamente divulgado, que a partir daquele momento renunciava a qualquer tipo de confessionalismo político e, em particular, à noção de partido portador de uma teoria, exorcizando, assim, o fantasma do marxismo. 

O fato de que o PT ou mesmo qualquer de seus próceres jamais tenha revisto formal e publicamente as concepções originárias do partido, tendo mesmo recusado a comprometer-se com o pacto constitucional de 1988, revela que lamentavelmente está ainda viva a estratégia revolucionária totalitária que fora enunciada naquele ano. Ademais, ao longo dos doze anos do governo petista, as tentativas sucessivamente frustradas de violar os princípios, as normas e as instituições da democracia constitucional e representativa – entre as quais o Programa Nacional de Direitos Humanos III, de 2009, e a Política Nacional de Participação Social, de 2014 – demonstram claramente que não há ambigüidade que consiga ocultar o empenho continuado e cada vez mais radical, por parte do neocomunismo petista, de destruir a democracia representativa e constitucional edificada com tanto esforço, substituindo-a por uma democracia plebiscitária e totalitária. 

Em terceiro lugar, os cidadãos comuns, que participam dos partidos constitucionais ou com eles se identificam, partilham a sua dedicação, as suas energias e a sua lealdade entre múltiplas atividades e associações, entre as quais a política e os partidos possuem uma importância limitada, ocupando mesmo um espaço menor. Não há nessa atitude nada de errado. Ao contrário, como já Aristóteles observara, a participação política moderada constitui requisito fundamental da democracia constitucional, que o filósofo denominava simplesmente politéia. Contudo, pertence à natureza e à lógica dos partidos totalitários apelar para a participação e para a mobilização políticas permanentes, para o profissionalismo e para o ativismo revolucionários de tempo integral e, enfim, para a politização da totalidade das esferas da existência, incluídas aquelas mais íntimas.

Enfim, em quarto lugar, a compreensão adequada dos valores sobre os quais está fundada a democracia constitucional e das normas e das instituições com as quais opera, bem como dos processos econômicos por referência aos quais se definem as políticas públicas e o comportamento dos partidos nas sociedades democráticas contemporâneas, exige dos indivíduos, em virtude de sua complexidade e sutileza, um nível muito elevado de discernimento intelectual, que se encontra normalmente fora do alcance da informação e do entendimento do homem comum. 

A rigor, a participação racional e responsável nas decisões democráticas exige do cidadão um nível relativamente elevado de informação factual, de saber contextual e de saber estrutural, que ele normalmente não possui. Sob tais condições, a democracia constitucional muito dificilmente pode competir pela preferência do homem comum com o totalitarismo, que recorre a uma simplificação brutal da realidade política e econômica, substituindo a informação e a análise racional pela ideologia, um “saber de custo próximo de zero, que contém, por outro lado, um apelo direto à emocionalidade e ao inconsciente de indivíduos mergulhados em situação de massa.

Enfim, o exercício da liberdade e da responsabilidade públicas, inerente à democracia constitucional, implica em assumir custos e riscos, requerendo dos indivíduos um grau pouco comum de segurança psicológica que lhes permita conviver com a incerteza. O recurso normal para reduzir a incerteza e os riscos é provido pela informação factual e pelos saberes contextual e estrutural, o que envolve custos imediatos e a médio e longo prazo, que os indivíduos que pertencem aos segmentos mais baixos da sociedade não podem assumir.

Assim, para a maioria das pessoas, pouco capazes de conviver com a incerteza e suportar os riscos inerentes à liberdade pessoal e pública, a ideologia totalitária proporciona uma explicação omnicompreensiva da realidade e da história, que lhes restaura magicamente e a baixo custo a segurança; e o partido ou o movimento totalitário, que a interpreta nos diferentes casos, provê uma autoridade externa onipotente que retira daquelas pessoas o inquietante peso da liberdade de decidir.

Diante desse desigual e insólito desafio as democracias constitucionais mais avançadas e sólidas armam-se com recursos previstos na lei constitucional, o mais importante dos quais é a proscrição de partidos políticos que promovem, estimulam ou apóiam processos conspiratoriais ou qualquer outra forma de violência política: a cláusula de constitucionalidade dos partidos, contida no art. 21, (2) da Constituição da República Federal da Alemanha e eficazmente aplicada pelo seu Tribunal Constitucional, é o exemplo de maior proeminência:

“Os partidos que por suas finalidades ou pelas atitudes de seus partidários tentam desvirtuar ou eliminar o regime fundamental de democracia e de liberdade, ou pôr em perigo a existência da República Federal, são inconstitucionais”.

É verdade que a Constituição Brasileira contém uma cláusula semelhante: o artigo 17 estatui, em seu caput, como requisito para a existência dos partidos políticos, a fidelidade ao “regime democrático”, ao “pluripartidarismo” e aos “direitos fundamentais da pessoa humana”, estabelecendo, no inciso II, “a proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes”; e, enfim, no § 4º, veda “a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar”. Resta aplicá-lo.

Se, entretanto, um supremo esforço de esclarecimento não conseguir persuadir o eleitor comum que a democracia constitucional, conquistada a duras penas mas perversamente disputada, deve ser preservada, quaisquer que sejam as suas vicissitudes – então, a manipulação populista de justos descontentamentos e o ilusionismo messiânico pavimentarão o caminho auto-destrutivo que, exaurido em Cuba, está sendo trilhado no continente sul-americano pela Venezuela, pelo Equador, pela Bolívia, pela Argentina e pelo Brasil.

Não tenhamos ilusão. Eleições universais geram legitimidade democrática, mas não legitimidade constitucional. Como profetizou com acerto Alexis de Tocqueville, na ausência de sólidas e vigorosas instituições de representação política e de separação dos poderes constitucionais, incluindo a separação entre Chefia de Estado e a Chefia do Governo, bem como um Tribunal Constitucional, eleições plebiscitárias provêm a ante-sala do bonapartismo e da democracia totalitária.

Enfim, eleições e reeleições plebiscitárias consecutivas provêm um claro e importante contributo a governos populistas totalitários empenhados em programas de redistribuição direta e ostensiva da renda nacional em benefício das populações pobres ou na linha da miséria. Aparentemente empenhados na eliminação da pobreza, esses governos têm clara consciência de que sua perpetuação no poder é alimentada pela pobreza e dela necessitam, do que decorre que, na realidade, empenham-se não em eliminar a miséria, mas em mantê-la estável e dependente, aguardando-a nas urnas. Sob tais condições é altamente improvável que eleições fortaleçam a democracia constitucional; ao contrário, há alta probabilidade de que contribuam poderosamente para destruí-la.

A experiência histórica registra importantes casos em que o totalitarismo ocupou o Estado pela via eleitoral, entre os quais o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, nenhum dos dois foi debelado pela força da sociedade que aprisionara; ao contrário, ambos foram eliminados pela derrota militar infligida de fora, por nações invasoras.

José Antônio Giusti Tavares é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador Associado no Centre d’Études et de Recherches Internationales, Fondation Nationale des Sciences Politiques, Paris, em 1985 e 1986. Guest Scholar em 1998, e Visiting Fellow, em 2002, do Helen Kellogg Institute for International Studies, Notre Dame University, Indiana, US.

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