Por José
Antônio Giusti Tavares
O fato de que o PT
ou mesmo qualquer de seus próceres jamais tenha revisto formal e publicamente
as concepções originárias do partido, tendo mesmo recusado a comprometer-se com
o pacto constitucional de 1988, revela que lamentavelmente está ainda viva a
estratégia revolucionária totalitária que fora enunciada naquele ano.
Nas democracias
constitucionais que funcionam com o sistema presidencial de governo, a
representação política e o governo são constituídos por dois procedimentos
senão diferentes pelo menos independentes entre si, ambos em eleições
universais competitivas periódicas e regulares e com mandato por tempo
determinado. Naquelas que funcionam com o sistema parlamentar de governo a
representação política eleita pelo voto popular direto nomeia o governo que,
diante dela responsável, exercita suas funções enquanto dela detém a confiança,
contando, entretanto, com a faculdade contraposta de submetê-la a novas
eleições. Nos dois casos são instituídos e funcionam efetivamente mecanismos de
separação e de contenção recíproca entre os poderes constitucionais, bem como
um Tribunal Constitucional, guardião supremo dos valores e dos preceitos
constitucionais; e, em particular, no sistema parlamentar de governo
institui-se a separação entre Chefia de Governo, responsável pela execução das
políticas públicas, e a Chefia de Estado, responsável pelo equilíbrio da ordem
constitucional. Enfim, na democracia constitucional toda autoridade pública é
submetida, em princípio, a mecanismos de responsabilização pública; e os
direitos individuais, incluído o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à
associação, são assegurados pela lei constitucional e pelo poder judiciário.
Os mecanismos
institucionais da democracia constitucional são eficazes, sem serem invasivos
ou ofensivos, para assegurar o equilíbrio da ordem política e, nela, a
liberdade e os direitos fundamentais do ser humano, sem o que não há sequer
justiça social. São eficazes, mas são desarmados: são fios de seda, como
os denominou Guglielmo Ferrero, o notável jurista, cientista político e
historiador liberal italiano da primeira metade do século precedente. Mas fios
de seda não permitem atar o dragão da maldade.
Assim, em uma
democracia constitucional e representativa, sobretudo quando erodida e
fragilizada pela decadência de suas elites, bem como pela corrupção e pela
desinformação políticas generalizadas, não só os partidos constitucionais, que
se movem nos limites da ordem pública constitucional, mas aquela própria ordem,
devem enfrentar o paradoxo de que se encontram com freqüência em inferioridade
de condições frente aos partidos revolucionários totalitários que, participando
da política institucional, não só não observam aqueles limites mas manifestamente,
por suas proposições e por suas atitudes, atentam permanentemente contra aquela
ordem.
O paradoxo descrito
decorre de quatro fenômenos evidentes.
Em primeiro lugar,
a democracia constitucional é a mais complexa e delicada dentre as formas
políticas e muito dificilmente pode competir pela preferência do homem comum
com o totalitarismo, que recorre a uma simplificação brutal da realidade
política, substituindo a informação e a análise racional pelo apelo direto ao
inconsciente e à emocionalidade de indivíduos mergulhados em situação de
massas.
Em segundo lugar,
ao participarem da ordem política constitucional os partidos totalitários
beneficiam-se das prerrogativas e dos recursos que ela confere, sem obrigar-se
aos valores, às regras e aos limites que ela impõe e, sobretudo, sem abrir mão
do comportamento revolucionário, conspiratório, insurrecional e golpista.
Fora do governo
mas, sobretudo, ao ocupá-lo, adotam simplesmente a estratégia
leninista-trotskista da dualidade de poder, que consiste em conspirar
pelo alto, do interior das instituições, e mobilizar de baixo, mobilizando
camadas sociais disponíveis e receptivas e, enfim, gerando pressões
societárias, inclusive armadas. Este é o caso exemplar, no Brasil, do Partido
dos Trabalhadores e de seu braço armado, o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra, como revela a Circular do Diretório Nacional na qual aquele
partido justificava a sua recusa inicial de obrigar-se à Constituição de 1988,
que consagrava as normas e as instituições da ordem constitucional
estabelecida:
“O PT, como partido
que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa,
sustentáculo do capitalismo. (...) rejeita a imensa maioria das leis que
constituem a institucionalidade que emana da ordem burguesa capitalista, ordem
que o partido justamente procura destruir”.
Ainda em 1988, o
atual governador petista do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sustentou,
com a sua conhecida competência doutrinária, na revista partidária Teoria e
Debate (n°4,pp. 38-41), a estratégia leninista-trotskista da dualidade de
poder:
“...o partido deve
responder às exigências de uma longa disputa pela hegemonia (...) com a
construção de uma cultura política e de uma ideologia socialista em bolsões
altamente organizados daqueles setores revolucionários, em direção a uma
ruptura com o Estado burguês... com respostas dentro e fora da ordem (...), sob
pena de limitar-se aos enfrentamentos na esfera política das instituições da ordem,
sendo inexoravelmente sugado por ela”.
A noção gramsciana,
ultra-leninista, de hegemonia, muito difundida na América Latina, significa
poder monopólico e é, portanto, absolutamente incompatível com o pluralismo
político essencial à democracia constitucional.
Alguém muito
complacente poderia objetar às citações acima que elas pertencem ao ano de 1988
e que, entrementes, o partido e o político que as enunciaram podem ter alterado
suas atitudes políticas. A objeção seria pueril mas respondê-la introduz a
oportunidade de pontuar um princípio elementar.
Partidos e homens
públicos têm a responsabilidade de publicar não só as suas concepções e
estratégias políticas, mas as revisões ou mudanças que, quanto àquelas, tenham
feito. Em 1959, no Congresso de Bad Godesberg, o Partido Social-Democrata
Alemão declarou, em um documento formal amplamente divulgado, que a partir
daquele momento renunciava a qualquer tipo de confessionalismo político
e, em particular, à noção de partido portador de uma teoria, exorcizando,
assim, o fantasma do marxismo.
O fato de que o PT
ou mesmo qualquer de seus próceres jamais tenha revisto formal e publicamente
as concepções originárias do partido, tendo mesmo recusado a comprometer-se com
o pacto constitucional de 1988, revela que lamentavelmente está ainda viva a
estratégia revolucionária totalitária que fora enunciada naquele ano. Ademais,
ao longo dos doze anos do governo petista, as tentativas sucessivamente
frustradas de violar os princípios, as normas e as instituições da democracia
constitucional e representativa – entre as quais o Programa Nacional de
Direitos Humanos III, de 2009, e a Política Nacional de Participação
Social, de 2014 – demonstram claramente que não há ambigüidade que consiga
ocultar o empenho continuado e cada vez mais radical, por parte do neocomunismo
petista, de destruir a democracia representativa e constitucional edificada com
tanto esforço, substituindo-a por uma democracia plebiscitária e
totalitária.
Em terceiro lugar,
os cidadãos comuns, que participam dos partidos constitucionais ou com eles se
identificam, partilham a sua dedicação, as suas energias e a sua lealdade entre
múltiplas atividades e associações, entre as quais a política e os partidos
possuem uma importância limitada, ocupando mesmo um espaço menor. Não há nessa
atitude nada de errado. Ao contrário, como já Aristóteles observara, a participação
política moderada constitui requisito fundamental da democracia
constitucional, que o filósofo denominava simplesmente politéia.
Contudo, pertence à natureza e à lógica dos partidos totalitários apelar para a
participação e para a mobilização políticas permanentes, para o
profissionalismo e para o ativismo revolucionários de tempo integral e, enfim,
para a politização da totalidade das esferas da existência, incluídas aquelas
mais íntimas.
Enfim, em quarto
lugar, a compreensão adequada dos valores sobre os quais está fundada a
democracia constitucional e das normas e das instituições com as quais opera,
bem como dos processos econômicos por referência aos quais se definem as
políticas públicas e o comportamento dos partidos nas sociedades democráticas
contemporâneas, exige dos indivíduos, em virtude de sua complexidade e
sutileza, um nível muito elevado de discernimento intelectual, que se encontra
normalmente fora do alcance da informação e do entendimento do homem
comum.
A rigor, a
participação racional e responsável nas decisões democráticas exige do cidadão
um nível relativamente elevado de informação factual, de saber contextual e de
saber estrutural, que ele normalmente não possui. Sob tais condições, a
democracia constitucional muito dificilmente pode competir pela preferência do
homem comum com o totalitarismo, que recorre a uma simplificação brutal da
realidade política e econômica, substituindo a informação e a análise racional
pela ideologia, um “saber” de custo próximo de zero, que contém, por
outro lado, um apelo direto à emocionalidade e ao inconsciente de indivíduos
mergulhados em situação de massa.
Enfim, o exercício
da liberdade e da responsabilidade públicas, inerente à democracia
constitucional, implica em assumir custos e riscos, requerendo dos indivíduos
um grau pouco comum de segurança psicológica que lhes permita conviver com a
incerteza. O recurso normal para reduzir a incerteza e os riscos é provido pela
informação factual e pelos saberes contextual e estrutural, o que envolve
custos imediatos e a médio e longo prazo, que os indivíduos que pertencem aos
segmentos mais baixos da sociedade não podem assumir.
Assim, para a
maioria das pessoas, pouco capazes de conviver com a incerteza e suportar os
riscos inerentes à liberdade pessoal e pública, a ideologia totalitária
proporciona uma explicação omnicompreensiva da realidade e da história, que
lhes restaura magicamente e a baixo custo a segurança; e o partido ou o
movimento totalitário, que a interpreta nos diferentes casos, provê uma
autoridade externa onipotente que retira daquelas pessoas o inquietante peso da
liberdade de decidir.
Diante desse
desigual e insólito desafio as democracias constitucionais mais avançadas e
sólidas armam-se com recursos previstos na lei constitucional, o mais
importante dos quais é a proscrição de partidos políticos que promovem,
estimulam ou apóiam processos conspiratoriais ou qualquer outra forma de
violência política: a cláusula de constitucionalidade dos partidos, contida no
art. 21, (2) da Constituição da República Federal da Alemanha e eficazmente
aplicada pelo seu Tribunal Constitucional, é o exemplo de maior proeminência:
“Os partidos que
por suas finalidades ou pelas atitudes de seus partidários tentam desvirtuar ou
eliminar o regime fundamental de democracia e de liberdade, ou pôr em perigo a
existência da República Federal, são inconstitucionais”.
É verdade que a
Constituição Brasileira contém uma cláusula semelhante: o artigo 17 estatui, em
seu caput, como requisito para a existência dos partidos
políticos, a fidelidade ao “regime democrático”, ao “pluripartidarismo” e aos
“direitos fundamentais da pessoa humana”, estabelecendo, no inciso II, “a
proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo
estrangeiros ou de subordinação a estes”; e, enfim, no § 4º, veda “a utilização
pelos partidos políticos de organização paramilitar”. Resta aplicá-lo.
Se, entretanto, um
supremo esforço de esclarecimento não conseguir persuadir o eleitor comum que a
democracia constitucional, conquistada a duras penas mas perversamente
disputada, deve ser preservada, quaisquer que sejam as suas vicissitudes –
então, a manipulação populista de justos descontentamentos e o ilusionismo
messiânico pavimentarão o caminho auto-destrutivo que, exaurido em Cuba, está
sendo trilhado no continente sul-americano pela Venezuela, pelo Equador, pela
Bolívia, pela Argentina e pelo Brasil.
Não tenhamos
ilusão. Eleições universais geram legitimidade democrática, mas não
legitimidade constitucional. Como profetizou com acerto Alexis de Tocqueville,
na ausência de sólidas e vigorosas instituições de representação política e de
separação dos poderes constitucionais, incluindo a separação entre Chefia de
Estado e a Chefia do Governo, bem como um Tribunal Constitucional, eleições
plebiscitárias provêm a ante-sala do bonapartismo e da democracia totalitária.
Enfim, eleições e
reeleições plebiscitárias consecutivas provêm um claro e importante contributo
a governos populistas totalitários empenhados em programas de redistribuição
direta e ostensiva da renda nacional em benefício das populações pobres ou na
linha da miséria. Aparentemente empenhados na eliminação da pobreza, esses
governos têm clara consciência de que sua perpetuação no poder é alimentada
pela pobreza e dela necessitam, do que decorre que, na realidade, empenham-se
não em eliminar a miséria, mas em mantê-la estável e dependente, aguardando-a
nas urnas. Sob tais condições é altamente improvável que eleições fortaleçam a
democracia constitucional; ao contrário, há alta probabilidade de que
contribuam poderosamente para destruí-la.
A experiência
histórica registra importantes casos em que o totalitarismo ocupou o Estado
pela via eleitoral, entre os quais o fascismo italiano e o nacional-socialismo
alemão, nenhum dos dois foi debelado pela força da sociedade que aprisionara;
ao contrário, ambos foram eliminados pela derrota militar infligida de fora,
por nações invasoras.
José
Antônio Giusti Tavares é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Pesquisador Associado no Centre
d’Études et de Recherches Internationales, Fondation Nationale des Sciences
Politiques, Paris, em 1985 e 1986. Guest Scholar em 1998, e
Visiting Fellow, em 2002, do Helen Kellogg Institute for International
Studies, Notre Dame University, Indiana, US.