Por Gary North
N. do E.: hoje completam-se 135 anos do nascimento de Ludwig von Mises. Uma homenagem ao mestre.
Um indivíduo
que sistematicamente discipline sua vida em torno do objetivo de aprimorar as
vidas daqueles que o rodeiam irá deixar um legado. Este legado pode ser
positivo ou negativo.
Existem aqueles
que estão apenas em busca de poder e que, por isso, irão tentar influenciar a
vida de outras pessoas por meio do engano e da adulação. Seu objetivo é mudar
corações, mentes e o comportamento daqueles que o cercam. Seu legado
tende a ser negativo.
Mas há também
aqueles que se esforçam ao máximo para transformar as vidas de terceiros de uma
forma positiva. Eles invariavelmente seguem um estilo de vida específico,
o qual governa suas ideias e seu comportamento. Eles sistematicamente
tentam estruturar suas próprias vidas de tal maneira que eles próprios se
tornam demonstrações empíricas da própria visão de mundo que defendem.
Qualquer pessoa
que tenha como o objetivo de sua vida mudar as opiniões de outras pessoas tem
de estar comprometida com dois princípios: fazer sempre aquilo que defende e
apoiar (de qualquer maneira possível) causas que estejam de acordo com o que
defendem.
Em primeiro
lugar, é preciso ter em mente que a maioria das pessoas não quer mudar sua
opinião em relação a nada. Mudar uma única opinião significa que o
indivíduo tem de mudar suas opiniões a respeito de vários tópicos. Aquela
velha regra é válida: "Você não pode mudar apenas uma coisa".
Portanto, há um alto custo ao se repensar aquelas opiniões que você mais
aprecia e valoriza. Pessoas tendem a evitar empreitadas que envolvam
altos custos.
Quando alguém é
confrontado com uma nova opinião, se esta opinião está relacionada a como as
pessoas devem agir, uma das primeiras autodefesas que o ouvinte irá levantar é
esta: "A pessoa que está recomendando esta nova ideia vive
consistentemente em termos desta ideia?" Se é algo óbvio para o
ouvinte que esta pessoa não faz o que diz defender, então fica claro que o
próprio defensor da ideia não leva a sério a verdade e a efetividade daquilo
que ele diz defender. Isto dá ao ouvinte uma maneira fácil de escapar da
conversa. A ideia defendida não vingará.
Ludwig Von
Mises
Meu único
encontro pessoal com Mises ocorreu no segundo semestre de 1971. Eu havia
sido contratado pela Foundationfor Economic Education. Naquela data, eu havia sido convidado
para uma cerimônia especial. F.A. Harper havia editado uma segunda
coleção de ensaios honrando Mises. O primeiro livro de ensaios havia sido
editado pela esposa de Hans Sennholz, Mary Sennholz, e foi publicado
em 1956.
A cerimônia
ocorreu em um hotel em Nova York. Após a cerimônia, tive a oportunidade
de conversar com Mises sobre vários assuntos, inclusive sua ligação com o
sociólogo alemão Max Weber. Weber havia se referido ao ensaio de Mises, Ocálculo econômico sob o socialismo, em uma nota de rodapé em um
livro que Weber não chegou a completar. Ele morreu em 1920. Mises
me disse que ele havia enviado seu ensaio para Weber.
Mises deixou um
legado que, desde sua morte em 1973, vem crescendo continuamente. Ele foi
um daqueles raros homens que teve duas fases em sua carreira. A primeira
fase, que começou em 1912 e terminou após a publicação da Teoria Geral (1936)
de John Maynard Keynes, estabeleceu sua reputação de grande teórico
econômico. Seu livro de 1912 sobre moeda e sistema bancário, seu livro de 1922
sobre o socialismo, e seus vários artigos sobre
tópicos específicos de teoria econômica o comprovaram um grande teórico.
Mas sua
inflexível oposição a todas as formas de moeda fiduciária estatal de curso
forçado garantiu a ele a reputação de um Neandertal do século XIX em um mundo
de moedas estatais de curso forçado, o qual começou com a abolição do
padrão-ouro clássico no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Sua
hostilidade ao socialismo também contribuiu para seu status de pária. Ele
estava vigorosamente resistindo a tudo aquilo que os círculos acadêmicos
consideravam ser a onda do futuro. Acadêmicos sempre querem seguir
modismos. Mises não era assim.
O triunfo do
keynesianismo após 1936, em conjunto com a erupção da Segunda Guerra Mundial em
1939, trouxe um eclipse à carreira de Mises. Na primeira metade da década
de 1930, a influência do nazismo na Áustria crescia sombriamente. Sendo
um liberal da velha guarda e um judeu, Mises sabia que seus dias estavam
contados. Ele temia que os nazistas tomassem o controle da Áustria, e ele
estava correto. Sendo um economista defensor do livre mercado — conhecido
pela esquerda como o mais implacável oponente do intervencionismo econômico — e
um judeu, ele não teria sobrevivido na Áustria.
Sentindo que
tais eventos eram apenas uma questão de tempo, Mises aceitou um cargo em
Genebra e para lá se mudou em 1934, aceitando um dramático corte
salarial. Sua noiva o acompanhou e lá se casaram, não sem antes ele tê-la avisado que, embora escrevesse
bastante sobre o assunto, ele nunca teria muito dinheiro.
Mises ficou em
Genebra por seis anos, obrigado a deixar para trás sua adorada Viena e tendo de
ver, impotente, a civilização sendo despedaçada. Quando os nazistas
anexaram a Áustria em 1938, eles saquearam seu apartamento em Viena e roubaram
todos os seus livros e monografias. Ele passou a viver uma existência
nômade, sem ter a mínima ideia de qual seria seu próximo emprego. E foi
assim que ele viveu o auge de sua vida: já estava com 57 anos e era
praticamente um sem-teto.
Mas nada disso
abalou Mises. Ele seguia concentrado em seu trabalho. Durante seus
seis anos em Genebra, ele continuou se dedicando à pesquisa econômica e às
escritas. O resultado foi sua até então obra magna, um enorme tratado de
economia chamado Nationalökonomie (o precursor de Ação
Humana). Em 1940, ele completou o livro, o qual foi publicado por uma
pequena editora e com edição extremamente limitada. Mas quão intensa
poderia ser, naquela época, a demanda por um livro sobre liberdade econômica
escrito em alemão? Certamente não seria nenhum bestseller. E Mises
certamente sabia disso enquanto o escrevia. Mas escreveu assim mesmo.
No entanto, em
vez de celebrações e noite de autógrafos, Mises naquele ano se deparou com
outro evento que mudaria (novamente) sua vida. Ele foi avisado por seus
patrocinadores em Genebra que havia um problema. Vários judeus estavam se
refugiando na Suíça. Ele foi alertado de que deveria procurar outro
lar. Os Estados Unidos eram o novo porto seguro.
Mises então
começou a escrever cartas pedindo por posições universitárias nos EUA, mas
tente imaginar o que isso significava. Ele só falava alemão. Suas
habilidades em inglês se resumiam à leitura. Ele teria de aprender o
idioma ao ponto de se tornar exímio o bastante para poder dar aulas. Ele
havia perdido todos os seus arquivos, monografias e livros. Ele não tinha
nenhum dinheiro. E ele não conhecia ninguém influente nos EUA.
E havia um
sério problema ideológico também nos EUA. O país estava completamente
dominado e fascinado pela economia keynesiana. A profissão de economista
havia sofrido um vendaval. Praticamente não mais existiam economistas
pró-livre mercado nos EUA, e não havia nenhum acadêmico defendendo esta
causa. No final, Mises se mudou para os EUA sem ter nenhuma garantia de
nada. E já estava com quase 60 anos.
Quando ele
chegou aos EUA em 1940 como um judeu refugiado, ele era praticamente um
desconhecido no país. Ele não tinha nenhum cargo assalariado de
professor. Ele já tinha 59 anos. Ele jamais havia estado nos
EUA. Mas ele teve uma grande sorte: havia um jornalista nos EUA que não
apenas conhecia sua obra, como também havia se tornado um defensor dela em suas
colunas de jornal. Seu nome era Henry Hazlitt. Foi Hazlitt quem estimulou
alguns empreendedores, como Lawrence Fertig, a fazer doações recorrentes a
Mises.
Mises então
passou a depender exclusivamente das doações destes poucos amigos e de alguns
artigos que eram ocasionalmente encomendados por algumas revistas especializadas,
a pedido destes amigos.
Durante os 30
anos seguintes, Mises foi uma voz solitária e sem recursos em defesa do livre
mercado, lutando contra a vastidão keynesiana que dominava a paisagem
mundial. Ele criou um seminário na New York University (NYU) para
estudantes universitários, o qual durou 25 anos. Murray Rothbard era um
dos frequentadores assíduos, embora apenas como ouvinte. Mises nunca
recebeu salário da universidade, a qual o relegou ao status de professor
visitante. Ele recebia ajuda de doadores. No entanto, não há hoje
nenhum professor do departamento de economia da NYU que seja lembrado.
Todos foram pessoas sem importância e não deixaram nenhum legado.
A publicação de
seu livro Ação Humana, pela Yale University Press em
1949, começou a estabelecer sua reputação nos EUA. O livro vendeu muito
mais do que havia sido inicialmente previsto. Este livro foi o primeiro a
conter uma teoria abrangente e integrada da economia de livre mercado.
Até então, nada remotamente parecido havia sido publicado. Foram muito
poucas as pessoas que se deram conta disso em 1949, mas qualquer um que já
tenha estudado a história do pensamento econômico sabe que é neste livro que se
encontra a primeira aplicação abrangente da teoria econômica para toda uma
economia de mercado. A análise é integrada em termos da defesa econômica
austríaca da teoria do valor subjetivo e do individualismo
metodológico.
Ele continuou
escrevendo após 1949. Seus livros foram vendidos pela Foundation for
Economic Education (FEE), a qual fez com que ele ganhasse a atenção de leitores
que defendiam o livre mercado. Seus artigos começaram a aparecer na
revista publicada pela FEE, The Freeman. A revista não era de
ampla circulação nos meios acadêmicos, mas era bastante lida pela direita.
Eu comprei uma
cópia de Ação Humana em 1960. Naquela época, eu já estava a par da
importância de Mises para a história do pensamento econômico, mas, em minha
universidade, eu provavelmente era o único estudante que o conhecia.
Mises sempre
foi um obstinado em sua dedicação aos princípios do livre mercado.
Provavelmente mais do que qualquer outro grande intelectual do século XX, ele
era conhecido entre seus pares como alguém inflexível, que não fazia concessões
àquilo em que acreditava. Pelos economistas da Escola de Chicago ele foi
chamado de ideólogo. E eles estavam certos. Por causa de sua
consistência na aplicação do princípio do não-intervencionismo em cada setor da
economia e, acima de tudo, por causa de sua oposição a bancos centrais e à
manipulação estatal da moeda, os economistas o consideravam excêntrico.
"Excêntrico", para eles, era sinônimo de "rigorosamente
consistente".
Assim como os
nazistas, os soviéticos também sabiam quem era Mises. Após a queda do
nazismo, os soviéticos confiscaram as obras de Mises então em posse dos
nazistas e as enviaram a Moscou. Suas obras roubadas ficaram em Moscou e
nunca foram descobertas por nenhum economista ocidental até a década de
1980. O que foi uma grande ironia: economistas ocidentais não sabiam quem
era Mises, mas os economistas soviéticos sim. Isto se tornou ainda mais
verdadeiro em meados da década de 1980, quando a economia soviética começou a
se desintegrar, exatamente como Mises havia previsto que aconteceria.
A grande
vantagem de Mises sobre praticamente todos os seus colegas era esta: ele
escrevia claramente. Todos os outros economistas, além de escreverem da
maneira convoluta e repleta de jargões, enchem seus escritos de equações.
Mises não utilizava equações e nem recorria a jargões. Ele escrevia seus
parágrafos utilizando sentenças que eram desenvolvidas de maneira
sucessiva. Você pode começar pela primeira página de qualquer um de seus
livros e, se prestar atenção, chegará ao fim sem se tornar confuso em momento
algum.
Isto era uma
grande vantagem, pois as pessoas comuns que se interessavam por economia
conseguiam seguir sua lógica. Sua reputação se espalhou no final de
década de 1950 e por toda a década de 1960 por causa de seus artigos na The
Freeman. Esta revista chegou a ter uma circulação de 40 mil
exemplares em alguns anos. Não eram muitos os economistas que conseguiam,
naquela época, atingir um público tão amplo e tão variado.
Mises realmente
se manteve firme aos seus princípios durante todo o seu tempo de vida.
Ele se manteve firme de maneira tão tenaz e obstinada que, por décadas, ele não
teve influência alguma sobre a comunidade acadêmica. Todos os economistas
o desprezavam ou ignoravam. Porém, após sua morte em 1973, sua influência
começou a crescer. Em 1974, seu discípulo F.A. Hayek ganhou
o Prêmio Nobel de Economia. Pouco a pouco, a reputação de Mises foi se
espraiando.
Hoje, há vários
Institutos Mises ao redor do mundo — todos surgidos voluntária e
espontaneamente, sem nenhum financiamento centralizado —, e seu nome é
atualmente mais conhecido do que o de quase todos os outros economistas de sua
geração, tanto os de antes da Primeira Guerra Mundial quanto os de depois da
Segunda Guerra Mundial. O cidadão comum certamente não está familiarizado
com os nomes da maioria dos economistas da primeira metade do século XX, e
certamente é incapaz de ler e compreender as obras de praticamente qualquer
economista da segunda metade.
Portanto, exatamente
porque Mises nunca se mostrou disposto a fazer concessões, especialmente na
área de metodologia, seu legado tem sido muito maior do que o da maioria de
seus finados colegas. O legado de Mises só cresce; o deles, praticamente
não existe.
Conclusão
Mises deve ser
julgado não somente como um pensador extraordinariamente brilhante, mas também
como um ser humano extraordinariamente corajoso. Ele acima de tudo sempre
se manteve inarredavelmente apegado à verdade de suas convicções, sem se
importar com o resto, e sempre preparado e disposto a atuar sozinho, sem uma
única ajuda, na defesa da verdade. Ele jamais se importou um buscar fama
pessoal, posições de prestígio ou ganhos financeiros, pois isso significaria
ter de sacrificar seus princípios.
Durante toda a
sua vida, ele foi marginalizado e ignorado pelo establishment
intelectual, pois a verdade de suas visões e a sinceridade e o poder com que as
defendia e desenvolvia estraçalhava todo o emaranhado de mentiras e falácias
sobre o qual a maioria dos intelectuais de sua época — bem como os de hoje —
construiu suas carreiras profissionais.
Seus
seminários, assim como seus escritos, eram caracterizados pelo mais alto nível
de erudição e sabedoria, e sempre mantendo o mais profundo respeito pelas ideias.
Mises jamais se interessou pela motivação pessoal ou pelo caráter de um autor,
e sim por uma só questão: saber se as ideias daquela pessoa eram verdadeiras ou
falsas. Da mesma forma, sua postura e comportamento pessoal sempre foram
altamente respeitosos, reservados e fonte de amigável encorajamento. Ele
constantemente se esforçava para extrair de seus alunos o que neles havia de
melhor, para ressaltar suas melhores qualidades.
O mundo vive
hoje mais uma era de planejamento econômico, e estamos vendo os economistas se
dividirem em dois lados. A esmagadora maioria se limita a dizer
exatamente aquilo que os regimes querem ouvir. Afastar-se muito da
ideologia dominante é um risco que poucos estão dispostos a correr. As
recompensas materiais são quase nulas, e há muito a perder.
Ser um economista íntegro
significa não se furtar a dizer coisas que as pessoas não querem ouvir;
significa, principalmente, dizer coisas que o regime não quer ouvir. Para
ser um bom economista, é necessário bem mais do que apenas conhecimento
técnico. É necessário ter coragem moral. E, no mercado atual, tal
atitude está ainda mais escassa do que a lógica econômica.Assim como Mises necessitou da ajuda de Hazlitt e Fertig, economistas com coragem moral necessitam de apoiadores e de instituições que os suportem e deem voz a eles. Este é um fardo que tem de ser encarado. Como o próprio Mises dizia, a única maneira de se combater ideias ruins é com ideias boas. E, no final, ninguém estará a salvo se a civilização for destruída em consequência do predomínio das ideias ruins.
Fonte: Mises Brasil
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