Subsidiariedade e economia de mercado
Por
Ubiratan J. Iorio
No último artigo, iniciamos nosso
"promenade" pelos quatro princípios que devem reger uma sociedade de
indivíduos livres pelo chamado "princípio do bem comum". Agora,
chegou a vez de refletirmos sobre o segundo desses preceitos, o da
"subsidiariedade". Ele deve ser universal, basilar e imutável no
tempo, o que o qualifica como parâmetro de referência para a análise e
interpretação dos fenômenos sociais, assim como para a orientação da ação
humana no campo social, em uma perspectiva ampla, que Ludwig von Mises
(1881-1973) denominava de "Praxiologia" -- o estudo da ação humana.
Esse princípio possui um profundo significado moral, por nos remeter aos
próprios elementos ordenadores da vida em sociedade.
Este artigo pretende mostrar a importância da
"subsidiariedade" dentro da Doutrina Social da Igreja, sua
importância e suas implicações para o pensamento libertário, especialmente no contexto
da Escola Austríaca de Economia. Em particular, argumentar que é um dos
pressupostos básicos da economia de mercado.
Se você tiver um problema com o seu vizinho de
porta, o ideal é resolvê-lo sem recorrer ao síndico. Se a questão é no
condomínio, o correto é levá-la ao síndico e não à administração regional de
seu bairro. Se o problema for do bairro, melhor recorrer à administração e não
à prefeitura. Caso seja da cidade, para que recorrer ao governador, se existe a
figura do prefeito, que ganha para isso? Da mesma forma, se as dificuldades são
em um Estado, deve-se buscar o governador e não o presidente do país. Estas
regras básicas, que são respeitadas nas sociedades razoavelmente organizadas,
compõem o "princípio da subsidiariedade", a pedra angular do
federalismo, da limitação do poder do Estado e da liberdade individual.
O referido princípio baseia-se na ideia de que é
moralmente perigoso retirar-se a autoridade e a responsabilidade inerentes à
pessoa humana, para entregá-la a um grupo, porque nada pode ser feito de melhor
por uma organização maior e mais complexa do que pode ser conseguido pelas
organizações ou indivíduos envolvidos diretamente com os problemas. A
"subsidiariedade" é consequência de três importantes aspectos da própria
existência humana.
O primeiro é a "dignidade da pessoa
humana", que é decorrente do fato de termos sido criados à imagem e
semelhança do Criador ou, para quem é ateu e/ou acha que fé e razão não se
misturam, é decorrente do simples fato dos homens serem racionais. Assim,
remover ou sufocar a responsabilidade e a autoridade individuais equivale a não
reconhecer suas habilidades e sua dignidade.
O segundo é a complexa questão "da limitação
do conhecimento", soberbamente analisada por Friedrich August von Hayek
(1899-1992) e outros estudiosos, especialmente os economistas da Escola
Austríaca de Economia. Como o conhecimento na sociedade é incompleto e
apresenta-se sempre espalhado desigualmente, a negação do "princípio da
subsidiariedade", que ocorre quando as soluções dos problemas são passadas
para o Estado ou para organizações hierarquicamente superiores, na prática,
acarreta uma ilusão de ótica, uma crença em um "olho central" que
pode enxergar todas as coisas, conhecer todas as necessidades e demandas
individuais, regular os setores envolvidos a contento e solucioná-las da forma
socialmente correta. Ora, o planejamento central sempre fracassou e haverá de
fracassar exatamente porque esse “olho” não apenas não existe, mas
principalmente porque jamais poderá existir.
Por fim, o terceiro aspecto que justifica a regra
da "subsidiariedade" é a "solidariedade" com os pobres e
menos favorecidos, simplesmente porque essas pessoas são mais do que meramente
a sua própria pobreza, por possuírem o atributo da dignidade, a despeito de
suas carências materiais. Com relação a esse terceiro aspecto, é sempre
importante lembrar que individualismo e egoísmo são atributos distintos e que a
Escola Austríaca se caracteriza pelo individualismo metodológico, que nega a
existência de entidades agregadas (e não por algo como um "egoísmo
metodológico"). Alguns libertários pretendem negar a necessidade de sermos
solidários; isto, além de negar a própria vida em sociedade, pois nos levaria,
em seu extremo, a uma economia autística (a do "ser solitário", em
contraposição à do "ser solidário") parece desconhecer que
solidariedade não significa aceitar políticas redistributivistas impostas pelo
Estado (esta é, talvez, a razão que leva os libertários bem intencionados a
negarem a importância da solidariedade); solidariedade -- como qualquer outra
virtude -- deve ser voluntária. Ademais, não existe exemplo maior de como é
importante esse atributo da solidariedade do que o do próprio funcionamento do
processo de mercado. O mercado, sim senhor, é um exemplo claro de solidariedade
uns para com os outros, cada um buscando individualmente os seus fins!
Os programas governamentais de transferências de
rendas, mesmo se fossem bem intencionados e bem gerenciados (não acredito que
possam ser), só são capazes de enxergar as necessidades materiais. Além disso,
os engarrafamentos quilométricos provocados pela burocracia, somados à
insuficiência de conhecimento total dos problemas, impedem esses programas de
atenderem a todas as necessidades das pessoas humanas.
Como a pobreza se manifesta de várias formas,
bastante complexas e às vezes muito distantes da mera falta de bens materiais,
quem vive mais perto dos necessitados está necessariamente melhor posicionado,
em termos de conhecimento, não apenas para ajudar a resolver as necessidades
materiais, mas para dar um tratamento mais adequado às demais. Em outras
palavras -- e para me fazer entender de vez -- quem, por exemplo, conhece
melhor as necessidades de transporte de Dona Chica? Seu vizinho ou um político
que mora em outra cidade?
Nas palavras de Madre Teresa de Calcutá
(1910-1997), solidariedade significa que "o rico salve o pobre e o pobre
salve o rico", uma vez que ambos tendem a ganhar com sua interação. A
erradicação da miséria e o alívio da pobreza, em sua forma correta, não são
unidirecionais, porque levam ambos -- o que doa e o que recebe -- a serem
abençoados, na linguagem cristã.
Tais reflexões parecem-nos particularmente
importantes, especialmente em países em que prevalece o péssimo hábito --
secular e cultural -- de cultivar a centralização política, econômica e
administrativa.
Uma economia de mercado plena, isto é, sem qualquer
interferência do Estado, requer a subsidiariedade também plena e um sistema
político em que a representatividade seja completa também requer completo
respeito à subsidiariedade. Em termos práticos, parece impossível tanto um caso
quanto o outro, bem como a ocorrência simultânea de ambos, mas o que
pretendemos destacar é a importância do "princípio da subsidiariedade"
para as sociedades de indivíduos livres, definidas "à la Hayek", como
sendo grupamentos de indivíduos agindo em economias de mercado e sujeitos a
normas gerais de justa conduta, prospectivas e iguais para todos.
Como estudioso da Escola Austríaca, tenho a firme convicção
de que os problemas econômicos devem ser solucionados pelo processo de mercado,
ou seja, pela interação entre compradores e vendedores, cada um agindo de
acordo com suas preferências e expectativas e sem qualquer controle por parte
de um mecanismo centralizador e, por definição, opressor.
O Magistério da Igreja sempre realçou a
importância, reforçada por aspectos antropológicos, das chamadas
"entidades intermediárias", isto é, de alguma coisa oscilando entre o
Scyllas do indivíduo, do ser solitário e o Charybdis do formigueiro, que dá
ênfase apenas ao ente holístico "sociedade". Na mitologia grega, um
navegador no estreito de Messina, ao optar por passar longe de Scylla -- o
monstro que habitava a costa do sul da Itália -- teria que passar perigosamente
perto de Charybdis, monstro que vivia na ilha da Sicília. Na Doutrina Social da
Igreja, felizmente, existem os chamados "corpos intermediários" entre
a economia autista à la Robinson Crusoé e a economia utopicamente solidária que
caracteriza formigas, abelhas e cupins, mas que a antropologia rejeita.
Assim, entre o indivíduo e a "sociedade",
entre a unidade formada por uma pessoa humana revestida de dignidade própria e
o todo, temos, por exemplo, a família que, contrariamente à sociedade, pode ser
tocada, porque existe fisicamente. Entre as famílias e a "sociedade"
temos, por exemplo, as associações de moradores e assim por diante.
É fácil perceber que tais corpos intermediários que
oscilam entre o indivíduo e o todo podem ser associados ao nosso princípio da
"subsidiariedade", bem como com os outros três princípios que
caracterizam as sociedades livres e virtuosas, o da "dignidade da pessoa
humana" (que fica obscurecida quando se enfatiza o ente holístico
"sociedade", que é algo fictício, que não pensa, não dorme, não
acorda, não reza, não come e nem grita gol de seu time), o da
"solidariedade" (por exemplo, quando cada um de nós pensa em ajudar a
própria família ou quando as famílias pensam em melhorar o bairro em que vivem)
e o do bem comum (que, no caso de um indivíduo, nada mais é do que esse próprio
indivíduo, mas que no outro caso extremo -- o da "sociedade" --
também fica impossível de ser materializado para além dos discursos de
políticos e/ou de "teólogos" de uma pretensa "libertação").
Em outras palavras e trazendo essas reflexões para
o campo da economia, esses corpos intermediários podem ser analisados mais
realisticamente do que os entes abstratos que caracterizam a macroeconomia, à
luz do "princípio da subsidiariedade".
Ubiratan J. Iorio -
Presidente Executivo e CEO do CIEEP
Diretor Acadêmico do Instituto Ludwig von Mises Brasil
Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ
Diretor Acadêmico do Instituto Ludwig von Mises Brasil
Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ
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Por JOÃO PAULO II
“Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto
alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum
modo, um novo tipo de estado, o ‘Estado do bem-estar’. Esta alteração deu-se em
alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e
carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa
humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente
nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado
como ‘Estado assistencial’. As anomalias e defeitos, no Estado assistencial,
derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste
âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de
ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem
inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de
necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes
sociais,
tendo em vista o bem comum.”(JOÃO PAULO II, 1991)