A espoliação e a falácia da janela quebrada
As soluções liberais do pensador Frédéric Bastiat, um dos mais
proeminentes advogados da liberdade, da propriedade e da individualidade
Por André Assi Barreto
AS IDEIAS LIBERAIS
Como mostramos, Fréderic
Bastiat foi um autor prolífico, de seus muitos textos e ideias, elencamos dois
dos mais importantes e mais atrelados à filosofia, além de muito atuais: o
problema, tanto da natureza da lei quanto do próprio direito, exposto em A Lei,
sua obra de filosofia política, exemplificado pelo problema da espoliação ou
pilhagem e também a falácia da janela quebrada, exposto em "O que se vê e
o que não se vê", texto de economia política, cuja atualidade pode ser
remetida como uma feroz crítica a algumas ideias do economista britânico
mainstream John Maynard Keynes. Antes disso, definamos a que "matiz ideológica"
pertence Bastiat.
Do liberalismo clássico,
fundado por Locke aos ideais anarcocapitalistas, florescidos graças ao
economista americano Murray Rothbard (1926-1995), os liberais divergiram no que
diz respeito a qual exatamente é o papel do Estado, mínimo (liberais clássicos,
minarquistas) ou simplesmente o Estado não deve existir (anarcocapitalismo).
Bastiat afirma, em A Lei, que o Estado deve ficar responsável pela segurança
(Bastiat, 2010, p. 13) e ao longo de todo o livro, defende que o Estado deve
ser, negativamente, o garantidor da liberdade. Qualquer tentativa do Estado
transgredir essas fronteiras, proporcionando algo além, culminará
necessariamente na diminuição de um ou de outro. Portanto, podemos afirmar com
segurança que Bastiat alinha-se ao minarquismo, doutrina que defende a
existência do Estado (mínimo, por assim dizer. Que não intervenha na vida
privada dos indivíduos), desde que este aja negativamente, como veremos com a
exposição de A Lei.
A LEI DEGENERADA
Em A Lei, obra que é
dividida em duas partes, sendo que na primeira há o diagnóstico e na segunda há
uma investigação das origens do problema, Bastiat está a fazer uma denúncia: a
lei encontra-se degenerada. Em vez de estar a serviço de todos, garantindo a
vida, a liberdade e a propriedade, sua natureza é dúbia e está a serviço de
alguns poucos - a saber, aqueles próprios que redigem as leis, que acabam por
ser seus beneficiários diretos. É preciso fazer alguns esclarecimentos
teóricos, pelos quais o próprio Bastiat passa ao longo de sua obra: a legalidade
não deve ser confundida com a moralidade, o estado de degeneração da lei é tal
que, é possível que certos grupos de ações sejam legais (por exemplo, tirar as
posses de alguém sem seu consentimento) sem que, contudo, possam ser
consideradas morais (no estado de confusão legal, a consciência de justo e
injusto é apagada). Tampouco algo legal pode ser considerado como
necessariamente justo, a lei deveria promover a justiça. O que é a lei? "É
a organização coletiva do direito individual de legítima defesa" (Bastiat,
2010, p. 11), a lei (letra) deve ser promotora da justiça (seu espírito) -
"a finalidade da lei é fazer reinar a justiça" (idem, p.26), contudo,
em sua condição degenerada, as duas coisas não podem ser confundidas. Nesse
aspecto podemos afirmar que A Lei não é apenas uma obra que trata de filosofia
política, mas versa também sobre a filosofia do direito. O direito, no entender
de Bastiat, em sua forma não-degenerada, deve existir para garantir a liberdade
dos indivíduos e não para tolhê-la.
"A vida, a liberdade e
a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao
contrário, foi feito pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem
antes que os homens fossem levados a fazer leis" (Bastiat, 2010, p. 11)
Milton Friedman:
Monetarista destacado,
ícone do liberalismo, integrante da Escola de Chicago, Prêmio Nobel de Economia
de 1976. Existem diferentes formas de apresentar o economista americano, de
família austro-húngara, Milton Friedman (1912-2006). Formado pela Rutgers
University, com mestrado por Chicago e doutorado em Columbia, Friedman foi
conselheiro de governos conservadores nos EUA e América Latina entre os anos
1960 e 1980 e escreveu o livro Capitalismo e liberdade (1962).
Entretanto, a lei se encontra
pervertida, está a "colocar a força coletiva à disposição de
inescrupulosos que desejavam, sem risco, explorar a pessoa, a liberdade e a
propriedade alheia" (BASTIAT, 2010, p. 13, grifo meu). Bastiat aponta duas
causas disso, os motivos pelos quais os legisladores elaboram a lei dessa
maneira: a ambição estúpida e a falsa filantropia. O desejo do ser humano de
viver e prosperar à custa dos outros fala mais alto; e como afirmou Milton Friedman: "não existe almoço
grátis", acaba-se por tirar de uns (roubar-lhes sua propriedade) para
transferir a outros, tudo isso com a autorização da lei.
A ESPOLIAÇÃO
Bastiat põe como o maior
dos problemas da degeneração da lei o fato de que ela torna a espoliação legal
(a ilegal consiste no roubo e na fraude). A espoliação consiste na
transferência da riqueza adquirida por todas as classes para aumentar apenas a
de algumas (os que escrevem as leis), torna-se legal quando é feita com
autorização da lei. Ou ainda na definição científica de Bastiat: "Quando
uma porção da riqueza passa daquele que a adquiriu, sem seu consentimento e a
compensação devida, para alguém que não a gerou, seja pela força ou por
astúcia, digo que houve violação da propriedade, que houve espoliação"
(Bastiat, 2010, p. 24). Essa perversão da lei é geradora de conflito,
especialmente conflito de interesse. Todos passam a querer legislar em prol de
si próprios. Nessa altura do texto, Bastiat cita um exemplo onde a lei ainda
guarda seu papel original (a proteção das pessoas, da liberdade e da propriedade),
os Estados Unidos (idem, p. 19).
A melhor ilustração da
espoliação legal, para Bastiat, é o socialismo; a ideologia promotora das
tarifas, do protecionismo, dos benefícios, etc, tudo isso pode ser reunido sob
a égide de socialismo. Há três grandes sistemas promotores da espoliação legal:
o protecionismo, o socialismo e o comunismo: "a espoliação legal é mais
visível, por sua particularidade, no protecionismo e, por sua universalidade,
no comunismo" (Bastiat, 2010, p. 25). O socialismo se enquadra como o mais
"vago" (idem) dos três.
Uma das medidas a serem
tomadas para a regeneração da lei é expurgar do socialismo da legislação,
tarefa que tem sua dificuldade agravada devido ao fato dos socialistas serem os
redatores das leis, deve-se fugir disso, portanto, excluindo estes da
composição das mesmas.
Na segunda parte da obra,
Bastiat afirma que a lei não deve ter por função garantir direitos positivos às
pessoas, tais como a caridade, a educação e a moralidade, o pensador francês é
enfático na defesa do caráter negativo da lei. Antevendo o supracitado
Friedman, Bastiat afirmou: "A lei não é uma teta que se encha por si de
leite", para que a lei forçosamente beneficie alguns, é indispensável que
prejudique outros e isso constitui a espoliação. É uma confusão comum da
argumentação socialista a feita entre governo e sociedade, não por ser contra a
promoção governamental da caridade, da educação e da moralidade que o liberal é
contrário a estas coisas. Os liberais são contra o monopólio do estado sobre
essas coisas, que devem ser da alçada do indivíduo.
A OBRA DE BASTIAT
O primeiro livro de
Bastiat, Sofismas Econômicos, é uma coletânea de ensaios curtos que demonstram
com uma clareza sem paralelo a falácia da intervenção governamental. O tema que
subjaz é que mesmo quando o governo interfere com atividades pacíficas e
produtivas, ele cria obstáculos contra o processo que aumenta o bem-estar de
todos. O ensaio mais famoso nesse trabalho é "Petição", em que os
fabricantes de vela da França organizam uma petição para se verem livres da
"intolerável concorrência de um rival estrangeiro. Ele possui, ao que
parece, condições altamente superiores às nossas para produzir luz. Este rival
inunda nosso mercado nacional com preços fabulosamente reduzidos" (Bastiat,
1989, p. 149). Quem seria o vil rival? O próprio sol! A solução requerida pelos
nobres fabricantes de vela? O fechamento compulsório de todas as janelas. O
resultado prometido? O encorajamento não apenas da indústria de velas, bem como
de todas as indústrias que são suas fornecedoras.
Jeremy Bentham
Filósofo e jurista nascido
em Londres, Jeremy
Bentham (1748-1842)
idealizou o Panóptico, modelo de prisão no qual os prisioneiros jamais sabem ao
certo se estão ou não sendo de fato observados. A criação de Bentham é o
exemplo mais famoso oferecido por Michel Foucault no livro Vigiar e punir para refletir sobre a
sociedade disciplinar.
Em A Lei, obra que
analisaremos mais detidamente, a tônica é a filosofia política; trata-se de uma
obra clara e breve. Ao longo da História, os filósofos conceberam a lei como
resultante de um contrato social com um soberano paternalista (Thomas Hobbes),
designada a proporcionar a maior felicidade possível ao maior número de
indivíduos possível ( Jeremy Bentham e
outros utilitários) ou como uma convenção arbitrária que define o certo e o
errado (os positivistas jurídicos). Bastiat é bastante objetivo no campo da lei
natural (juntamente com John Locke): "A vida, a liberdade e a propriedade
não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi
feito pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os
homens fossem levados a fazer leis" (Bastiat, 2010, p. 11). Ele localiza a
origem da lei na natureza humana: para viver, os seres humanos precisam de
liberdade e propriedade, com o propósito de transformar o potencial da natureza
em coisas úteis. Dessa forma, leis que entrem em conflito com a liberdade e a
propriedade não são leis justas (nem a justiça e tampouco a moralidade podem
ser automaticamente identificadas com a legalidade), mas sim espoliação legal,
uma tentação constante, visto que o homem deseja atingir seus objetivos com o
menor esforço possível. O resultado é o caos moral, a opressão e a privação
material.
Bastiat passou para um exame
mais amplo do sistema do mercado como um todo em seu terceiro livro, Harmonias
Econômicas. Nele, Bastiat constrói metodicamente seu edifício teórico. Começa
reconhecendo a regularidade econômica que diariamente permite que Paris seja
alimentada. Surpreendentemente, tal regularidade não é designada ou mantida por
nenhum grande mestre. Resulta apenas dos atos de incontáveis indivíduos
buscando satisfazer seus próprios interesses. Para Bastiat, a tarefa da
economia é explicar essa ordem produzida por aquele "mecanismo
prodigiosamente ingênuo" - o livre mercado - que harmoniza os interesses
de uma multidão, fazendo possível que cada um usufrua de um sem-número de bens
consumíveis que nenhum deles poderia produzir sozinhos em dez séculos.
Bastiat não deixa escolha
ao leitor senão se maravilhar tanto com a complexidade do mercado quanto com
sua inigualável facilidade em aumentar nossas circunstâncias materiais. Para
ele, a sociedade é um sistema de troca de serviços, fundada no autointeresse,
na propriedade privada e na livre competição, cuja razão de ser é o benefício
dos consumidores. Isso coloca Bastiat numa posição de contraste com relação aos
economistas britânicos - notavelmente Adam Smith e David Ricardo - que se
concentraram na produção de riqueza material. Está na própria natureza do
sistema, como Bastiat ensinou, que não haja nenhuma direção central: de fato,
todas as tentativas de dirigi-lo culminam em pobreza e desespero. Com esta
obra, Bastiat deixou uma síntese eloquente contra o socialismo e todas as
outras formas de intervenção econômica governamental, mormente o protecionismo.
Embora a obra não tenha atingido algumas ideias propostas posteriormente pela
escola austríaca de economia, a figura do processo do mercado pintada por
Bastiat é bastante sofisticada.
E por último, mas não menos
importante: Ensaios Selecionados sobre Economia Política, uma coleção póstuma
de ensaios e panfletos, contém alguns dos melhores escritos de Bastiat. Este
volume contém seu ensaio "O Estado", que contém a famosa sentença
"O Estado é a grande ficção através da qual todo mundo se esforça para
viver à custa de todos os outros" (Bastiat, 1989, p. 92).
Em "O que se vê e o
que não se vê", a perspicácia de Bastiat é mostrada. Ele começa com a
estória de um menino que quebrou uma janela (o que veio a ficar conhecido como
a falácia da janela quebrada, que trataremos adiante). Um observador aponta uma
consequência da atitude do menino: o vidraceiro ganhará seis francos graças ao
garoto, sua indústria será encorajada. A isto Bastiat protesta "Isso nunca
ocorrerá!". A teoria para naquilo que se vê. Não leva em conta o que não
se vê. O que não se vê é que se a janela não tivesse sido quebrada, os seis
francos estariam disponíveis para o dono da janela para fazer coisas que agora
ele deve fazer sem, ou seja, ele ficou mais pobre!
O fenômeno do não visto tem
suas raízes em dois temas caros a Bastiat: os desejos humanos são ilimitados e
as fontes são escassas. Visto que a natureza coloca essas condições, não há
perigo do fenômeno da superprodução. O trabalho a ser feito é sem fim. Todas as
intervenções governamentais designadas a criar ou poupar empregos, como
tarifas, são obstáculos ao progresso porque, ao criar ou manter artificialmente
altos preços, deixam os consumidores com menos dinheiro para satisfazer outros
desejos. Se os tecidos importados, que são mais baratos, forem banidos, as
pessoas ficam impossibilitadas de adquirir outros bens com o dinheiro poupado.
Como resultado, a comunidade não se encontra tão bem quanto poderia estar.
AS IDEIAS LIBERAIS
Como mostramos, Fréderic
Bastiat foi um autor prolífico, de seus muitos textos e ideias, elencamos dois
dos mais importantes e mais atrelados à filosofia, além de muito atuais: o
problema, tanto da natureza da lei quanto do próprio direito, exposto em A Lei,
sua obra de filosofia política, exemplificado pelo problema da espoliação ou
pilhagem e também a falácia da janela quebrada, exposto em "O que se vê e
o que não se vê", texto de economia política, cuja atualidade pode ser
remetida como uma feroz crítica a algumas ideias do economista britânico
mainstream John Maynard Keynes. Antes disso, definamos a que "matiz
ideológica" pertence Bastiat.
Do liberalismo clássico,
fundado por Locke aos ideais anarcocapitalistas, florescidos graças ao
economista americano Murray Rothbard (1926-1995), os liberais divergiram no que
diz respeito a qual exatamente é o papel do Estado, mínimo (liberais clássicos,
minarquistas) ou simplesmente o Estado não deve existir (anarcocapitalismo).
Bastiat afirma, em A Lei, que o Estado deve ficar responsável pela segurança
(Bastiat, 2010, p. 13) e ao longo de todo o livro, defende que o Estado deve
ser, negativamente, o garantidor da liberdade. Qualquer tentativa do Estado
transgredir essas fronteiras, proporcionando algo além, culminará
necessariamente na diminuição de um ou de outro. Portanto, podemos afirmar com
segurança que Bastiat alinha-se ao minarquismo, doutrina que defende a
existência do Estado (mínimo, por assim dizer. Que não intervenha na vida
privada dos indivíduos), desde que este aja negativamente, como veremos com a
exposição de A Lei.
A LEI DEGENERADA
Em A Lei, obra que é
dividida em duas partes, sendo que na primeira há o diagnóstico e na segunda há
uma investigação das origens do problema, Bastiat está a fazer uma denúncia: a
lei encontra-se degenerada. Em vez de estar a serviço de todos, garantindo a
vida, a liberdade e a propriedade, sua natureza é dúbia e está a serviço de
alguns poucos - a saber, aqueles próprios que redigem as leis, que acabam por
ser seus beneficiários diretos. É preciso fazer alguns esclarecimentos
teóricos, pelos quais o próprio Bastiat passa ao longo de sua obra: a
legalidade não deve ser confundida com a moralidade, o estado de degeneração da
lei é tal que, é possível que certos grupos de ações sejam legais (por exemplo,
tirar as posses de alguém sem seu consentimento) sem que, contudo, possam ser
consideradas morais (no estado de confusão legal, a consciência de justo e
injusto é apagada). Tampouco algo legal pode ser considerado como necessariamente
justo, a lei deveria promover a justiça. O que é a lei? "É a organização
coletiva do direito individual de legítima defesa" (Bastiat, 2010, p. 11),
a lei (letra) deve ser promotora da justiça (seu espírito) - "a finalidade
da lei é fazer reinar a justiça" (idem, p.26), contudo, em sua condição
degenerada, as duas coisas não podem ser confundidas. Nesse aspecto podemos
afirmar que A Lei não é apenas uma obra que trata de filosofia política, mas
versa também sobre a filosofia do direito. O direito, no entender de Bastiat,
em sua forma não-degenerada, deve existir para garantir a liberdade dos
indivíduos e não para tolhê-la.
"A vida, a liberdade e
a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao
contrário, foi feito pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem
antes que os homens fossem levados a fazer leis" (Bastiat, 2010, p. 11)
Milton Friedman
Monetarista destacado,
ícone do liberalismo, integrante da Escola de Chicago, Prêmio Nobel de Economia
de 1976. Existem diferentes formas de apresentar o economista americano, de
família austro-húngara, Milton Friedman (1912-2006). Formado pela Rutgers
University, com mestrado por Chicago e doutorado em Columbia, Friedman foi
conselheiro de governos conservadores nos EUA e América Latina entre os anos
1960 e 1980 e escreveu o livro Capitalismo e liberdade (1962).
Entretanto, a lei se
encontra pervertida, está a "colocar a força coletiva à disposição de
inescrupulosos que desejavam, sem risco, explorar a pessoa, a liberdade e a
propriedade alheia" (BASTIAT, 2010, p. 13, grifo meu). Bastiat aponta duas
causas disso, os motivos pelos quais os legisladores elaboram a lei dessa
maneira: a ambição estúpida e a falsa filantropia. O desejo do ser humano de
viver e prosperar à custa dos outros fala mais alto; e como afirmou Milton Friedman: "não existe almoço
grátis", acaba-se por tirar de uns (roubar-lhes sua propriedade) para
transferir a outros, tudo isso com a autorização da lei.
A ESPOLIAÇÃO
Bastiat põe como o maior dos
problemas da degeneração da lei o fato de que ela torna a espoliação legal (a
ilegal consiste no roubo e na fraude). A espoliação consiste na transferência
da riqueza adquirida por todas as classes para aumentar apenas a de algumas (os
que escrevem as leis), torna-se legal quando é feita com autorização da lei. Ou
ainda na definição científica de Bastiat: "Quando uma porção da riqueza
passa daquele que a adquiriu, sem seu consentimento e a compensação devida,
para alguém que não a gerou, seja pela força ou por astúcia, digo que houve
violação da propriedade, que houve espoliação" (Bastiat, 2010, p. 24).
Essa perversão da lei é geradora de conflito, especialmente conflito de
interesse. Todos passam a querer legislar em prol de si próprios. Nessa altura
do texto, Bastiat cita um exemplo onde a lei ainda guarda seu papel original (a
proteção das pessoas, da liberdade e da propriedade), os Estados Unidos (idem,
p. 19).
A melhor ilustração da
espoliação legal, para Bastiat, é o socialismo; a ideologia promotora das
tarifas, do protecionismo, dos benefícios, etc, tudo isso pode ser reunido sob
a égide de socialismo. Há três grandes sistemas promotores da espoliação legal:
o protecionismo, o socialismo e o comunismo: "a espoliação legal é mais
visível, por sua particularidade, no protecionismo e, por sua universalidade,
no comunismo" (Bastiat, 2010, p. 25). O socialismo se enquadra como o mais
"vago" (idem) dos três.
Uma das medidas a serem
tomadas para a regeneração da lei é expurgar do socialismo da legislação,
tarefa que tem sua dificuldade agravada devido ao fato dos socialistas serem os
redatores das leis, deve-se fugir disso, portanto, excluindo estes da
composição das mesmas.
Na segunda parte da obra,
Bastiat afirma que a lei não deve ter por função garantir direitos positivos às
pessoas, tais como a caridade, a educação e a moralidade, o pensador francês é
enfático na defesa do caráter negativo da lei. Antevendo o supracitado
Friedman, Bastiat afirmou: "A lei não é uma teta que se encha por si de leite",
para que a lei forçosamente beneficie alguns, é indispensável que prejudique
outros e isso constitui a espoliação. É uma confusão comum da argumentação
socialista a feita entre governo e sociedade, não por ser contra a promoção
governamental da caridade, da educação e da moralidade que o liberal é
contrário a estas coisas. Os liberais são contra o monopólio do estado sobre
essas coisas, que devem ser da alçada do indivíduo.
Isso posto, Bastiat tece
uma interessante crítica aos promotores da espoliação legal: a confiança quase
infinita que estes depositam nos governantes e nos legisladores, um pequeno
grupo de seres iluminados, dotados de uma inteligência tal que os capacita a
decidir a vida de toda a sociedade; cabe a eles decidir onde e quanto dinheiro
deve ser gasto em cada setor que dirige a nação. A sociedade, um grupo de
indivíduos, é tida como uma massa inerte, que por si só, sem a mão-guia do
governo, tende ao caos. Bastiat aponta o cinismo dessa posição ao mencionar o
problema do sufrágio universal. Os mesmos que defendem o direito dos indivíduos
ao voto negam que os cidadãos tenham conhecimento suficiente para dirigir a
própria vida em termos de educação, moral e religião.
Bastiat considera como os
patronos da espoliação pensadores como Rousseau, Condillac, Montesquieu,
Robespierre e Fénelon. Embora as nocivas noções que geraram a espoliação
organizada e legal já ocorressem no Egito antigo, onde já existia a noção de
que o indivíduo existe apenas para servir a sociedade, que o fruto de seu
trabalho era comum e dele não deveria tirar nenhum proveito para si.
ESPOLIAÇÃO NA PRÁTICA
Do ponto de vista legal, se
alguém, por exemplo, roubar sua TV, a lei estará ao seu lado, a polícia será
chamada, o ladrão preso e sua TV devolvida, nem a moralidade nem a legalidade
do ato são matéria de discussão. Suponhamos que se trate de um ladrão
altruísta, que deseja roubar sua TV para vendê-la e doar o dinheiro para uma boa
causa, só que dessa vez ele decide contratar os profissionais e entra em cena
um intermediário, o ladrão contrata a máfia para roubar sua TV, embora possa
haver uma aparente mudança moral (o espírito duvidoso da moral de Robin Hood),
não há mudança legal, a despeito das boas intenções do bandido (e da máfia),
roubar sua propriedade privada segue sendo um crime que renderá prisão ao
agressor e seus intermediários. Até aqui, o direito à propriedade está,
aparentemente, garantido.
Mas Bastiat nos alerta que
a lei, em sua condição degenerada, tem um caráter dúbio, está a serviço de uns
poucos em detrimento da maioria. O governo adota o modus operandi do segundo
mal-feitor, onde é representado pelo intermediário entre o roubo e a
"caridade" - a máfia. Atua sob a desculpa de promover o bem-estar de
alguns (à custa de outros), só que com a ressalva que os governantes têm a lei
ao seu lado para tomar posse da propriedade alheia; a atitude segue imoral,
porém agora conta com a autorização da lei. Algo que quando feito pelo cidadão
comum, só pode ser nomeado como crime: "É preciso ver se a lei beneficia
um cidadão em detrimento dos demais, fazendo o que aquele cidadão não faria sem
cometer um crime" (Bastiat, 2010, p. 21).
Thomas
Sowell
Defensor do livre-mercado,
Thomas Sowell é um filósofo político, economista, teórico social e ensaísta
americano. Doutor em economia pela University of Chicago, Sowell recebeu em
2002 a National Humanities Medal.
Observa-se aqui a
atualidade do pensamento de Bastiat, toda a cobrança de impostos se enquadra
perfeitamente na definição de espoliação legal oferecida pelo pensador. O
governo toma parte de nossas posses (nosso dinheiro), sem nosso consentimento,
caso fizermos o mesmo, certamente seremos punidos com todo o rigor da lei. Como
afirma Bastiat, é preciso depositar uma grande quantidade de confiança nos
governantes (além da autoconfiança dos próprios) para crer que são capazes de
fazer apenas o que há de melhor e coisas que nós próprios não faríamos. Vale
citar a brilhante observação do cientista político americano Thomas Sowell: "É incrível como algumas
pessoas acham que nós não podemos pagar médicos, hospitais e medicamentos, mas
pensam que nós podemos pagar por médicos, hospitais, medicamentos e toda a
burocracia governamental para administrar isso". A ideia liberal consiste
basicamente em eliminar ou diminuir o intermediário - o governo.
A JANELA QUEBRADA
Ao descrever este
mal-entendido econômico, que veio a ser denominado falácia da janela quebrada,
em "O que se vê e o que não se vê", Bastiat atenta para o simples
fato de que uma promoção artificial de gastos governamentais ou, como parece
indicar os keynesianos, os desastres naturais, não beneficiam a economia;
especialmente quando se opera uma análise que leva o todo (o visto e o
não-visto) em consideração.
Uma janela quebrada seria
um "mal que vem para o bem", pois acabará por beneficiar uma
indústria. Afinal, o que seria dos vidraceiros se os vidros nunca se
quebrassem? A teoria que considera a quebra da janela algo benéfico se limita
ao que se vê: por exemplo, os seis francos ganhos pelo vidraceiro pelo conserto
da janela, mas ignora o que não se vê, o dono da janela deixou de gastar seus
seis francos em qualquer outra coisa, "não se vê que, se ele não tivesse
nenhuma janela para substituir, ele teria trocado, por exemplo, seus sapatos
velhos ou posto um livro a mais em sua biblioteca" (Bastiat, 1989, p. 22).
Com ou sem janela quebrada, a indústria em geral ganharia os seis francos, "não
há nenhum interesse para a indústria em geral, ou para o conjunto do trabalho
nacional, o fato de janelas serem quebradas ou não" (Bastiat, 1989, p.
22).
Caso não tivesse tido a
janela quebrada, seu dono gozaria de um par de sapatos e de sua janela intacta.
Embora o vidraceiro tenha um acréscimo na sua renda, o sapateiro, por exemplo,
tem um decréscimo; para fins do cômputo geral, não há ganho econômico:
"Ora, como Jacques Bonhomme [o dono da janela quebrada] faz parte da
sociedade, deve-se concluir que, considerada no seu conjunto, e fazendo o
balanço de seus trabalhos e de seus prazeres, a sociedade perdeu o valor
relativo à vidraça quebrada" (idem, p. 22 e 23).
Economistas de matiz
keynesiana, mormente Paul Krugman,
flertam constantemente com a ideia de que desastres naturais são benéficos a
economia, pois os gastos governamentais para reparar os danos dos desastres
dariam gás extra às economias envolvidas. Krugman chegou a ser ridicularizado
por ilustrar sua posição (embora não tenha afirmado isso ipisis litteris)
dizendo que uma eventual terceira guerra mundial, uma invasão alienígena ou a
tragédia de Fukushima no Japão, seriam exemplos de ocorrências que
beneficiariam a economia.
Paul Krugman
Paul Robin Krugman é um
economista americano, Ph.D pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT),
colunista do The New York Times, professor na Princeton University e vencedor
do Nobel de Economia no ano de 2008.
Vejamos, nas palavras de
Krugman com os gastos governamentais gerados pelos desastres supostamente gerariam
benefícios econômicos: "A vida e os negócios continuam; portanto, acho que
temos que falar sobre os impactos econômicos do pesadelo de Fukushima (...) Com
certeza, o Japão terá de despender centenas de bilhões (de dólares, não ienes)
para limitar os danos e recuperar o país, mesmo com a queda de receita graças
ao impacto econômico direto. Assim, ele se tornará menos um país exportador de
capital, talvez um importador de capital, durante um determinado período (...)
Se isso parece loucura, bem, economia numa armadilha de liquidez é isso -
lembre-se, a 2ª. Guerra Mundial pôs fim à Grande Depressão." (Paul
Krugman, 15 março de 2011).
A questão atesta com
precisão a atualidade da fábula de Bastiat; caso o dinheiro aplicado na
reconstrução do país não fosse direcionado para essa finalidade, seria poupado
e usado no momento oportuno, ou simplesmente seria dirigido para outras pastas,
cujo proveito seria melhor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Bastiat certamente não foi
o primeiro a defender a aplicação do ideário liberal na economia e na política,
mas certamente, seu nome deve ser lembrado como um dos principais liberais de
todos os tempos, pela sua influência e espírito prático - optou por não se
restringir à redação de textos, mas pôs as mãos na massa, combatendo coletivistas
e estatistas e entrando para a política.
Embora não tenha sido,
certamente, o mais influente dos pensadores liberais, seu legado é agora
reconhecido até mesmo em sua terra natal, que o havia rejeitado por muito
tempo. A mensagem liberal, tão bem exposta e defendida por Bastiat é simples. A
lei deve se restringir a sua função primeira: garantir a propriedade, a
liberdade e a individualidade, caso se atribua a ela alguma outra função, um
dos três elementos será perdido; em economia, para que haja promoção e
manutenção da prosperidade, basta que o governo não interfira nas livres
relações, mesmo que bem intencionada, tal interferência tem efeitos perversos.
Experimentemos a liberdade.
Referências:
BASTIAT, Fréderic. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil,
2010.
FOURNIER, Gilbert.
"Fréderic Bastiat". In: Frédéric Bastiat. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1989.
GUASTI, Alexandre (ed.). Frédéric Bastiat. Rio de Janeiro: Instituto
Liberal, 1989.
OLIVA, Alverto. Entre o dogmatismo arrogante e o desespero cético. Rio
de Janeiro: Instituto Liberal, 1993.
Ver frases libertárias de Fréderic
Bastiat, aqui.