S-21: o
verdadeiro rosto do comunismo
Foi difícil adormecer após a
visita à Escola S-21, em Phnom Penh. Em Abril de 1975 - nefastíssimo para nós,
portugueses, terrível queda no abismo para os cambojanos - os Khméres Vermelhos
entravam na capital após cinco anos de luta. Uma vergonha para o Ocidente:
abandonar aliados à imolação, trair a palavra dada, inventar desculpas para não
ajudar aqueles que em nós haviam confiado.
Ainda a cidade não havia caído e
já a França, a amiga de todas as tiranias, de Saddam e Khomeiny a Mao,
reconhecera o governo do Kampuchea Democrático. Um padre francês, François
Ponchaud, testemunha presencial da tragédia, lavrou então extenso relatório que
ninguém quis aceitar como fonte credível e imparcial. A obra, que guardo entre
outras dezenas que fui comprando e anotando ao longo dos anos, tinha por título
Camboja: Ano Zero e foi editada em finais de 1976, entre o desprezo dos
liberais, a fúria dos intelectuais e o silêncio cúmplice da Igreja. Ora,
relendo a obra, está lá tudo o que acontecera, o que podia acontecer e o que de
facto veio a acontecer sob o regime genocida de Pol Pot. Noam Chomsky afirmou
então que o testemunho do Padre Ponchaud não passava de cabala contra o
socialismo.
Só não acreditou quem se deixara
cegar por décadas de propaganda comunista. Se Trostky aplicara o
"comunismo de guerra", se a Espanha se enchera de valas comuns, se
sobre todo o Leste europeu se abatera a mais sinistra forma de governação pelo
medo de que havia memória, se Mao trucidara milhões, por que razão Pol Pot não
faria o mesmo ? Hoje coloquei-me fisicamente no cenário real dessa sinistra
experiência evolucionista.
Aqui foram humilhadas,
seviciadas, afogadas, electrocutadas, enforcadas ou simplesmente eliminadas com
uma barra de ferro milhares de pessoas. Aqui, os comunistas puderam finalmente,
sem freio e sem medo de qualquer repercussão revelar sem fingimento a extensão
do seu ódio ao humano. Tudo foi fotografado, ordenado, anotado. Primeiro
mataram os monges, os antigos ministros, os generais, os aristocratas, os
juízes, deputados e presidentes dos municípios. Depois, chegaram os
professores, os médicos e farmacêuticos, os engenheiros, os artistas e
jornalistas, mais actores e homens de negócios, os grandes e os pequenos,
respectivas famílias, seus empregados domésticos, assim como pessoas -
quaisquer pessoas - que tivessem algum dia trabalhado com "parasitas e
exploradores", "estrangeiros imperialistas" ou outros
"agentes de intoxicação ocidental".
Quando se esgotou o sortimento,
chegaram os sargentos, os ex-soldados condecorados, os polícias, os amanuenses,
pequenos comerciantes, os cauteleiros, vendedores de jornais, taxistas e demais
já tocados pelo vírus do lucro, da propriedade e do individualismo. Com estes
vieram também chineses, cham muçulmanos, vietnamitas, indianos, paquistaneses,
thais, católicos luso-descendentes, Kuy, Mon, mestiços e tudo quanto ofendesse
a pureza da cepa original khmér. Por último, qualquer pessoa que se
atravessasse no caminho do Angkar (Partido Comunista).
As pessoas chegavam famintas e
febris, aterrorizadas e perdidas e eram atiradas para celas. Interrogadas,
arrancavam-lhes confissões sobre delirantes conjuras, sabotagens e conluio com
o inimigo. Passavam os dias esvaindo-se em sangue, unhas arrancadas com
alicates, o corpo perfurado por fios condutores, ossos das mãos partidas, olhos
vazados no ímpeto dos interrogatórios. O movimento das celas às salas era feito
à coronhada, pontapés, puxões de cabelo, murros nos genitais. As paredes das
escadas ainda exibem marcas do pintalgado do sangue desses desgraçados. Uma
imensa galeria de retratos de inimigos da revolução e do socialismo, alguns com
etiquetas pendendo de alfinetes enterrados no peito, no pescoço ou nos
trapézios, evoca os três anos de ininterrupta atividade deste centro. Das mais
de vinte mil que aqui sofreram calvário, só catorze sobreviveram.
Aqui não houve piedade para
ninguém. Olho para os rostos macerados, o olhar apagado e distante que exibiram
na última fase das suas vidas. Dolorosamente, o universo desta gente tinha-se
tragado sob os seus pés e mal compreendiam o que lhes estava a acontecer. O
comunismo foi assim, da Rússia dos Sovietes à Etiópia, Moçambique e China. Aqui
no S-21 escreveu-se um dos últimos capítulos dessa sangrenta ideologia e das
mentiras em que se especializou. Depois disto, só pode permanecer comunista
quem perdeu aquela elementar dignidade que nos separa da animalidade.
Fonte: Combustões
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