Lobão e Martim ao vivo. A Poeira da
Glória e roquenrou na veia, rapaziada
Vale a pena ler esse artigo desse mesmo
autor...
Eric Voegelin e a coragem da Filosofia
Por Martim Vasques da Cunha
The best lack
all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity. W.B. Yeats, “The Second Coming“
Are full of passionate intensity. W.B. Yeats, “The Second Coming“
Conta-se que o filósofo grego Anaxágoras
caminhava por uma estrada quando encontrou um homem agonizante. Este lamentou o
fato de estar distante de sua pátria na hora da morte. Para tranqüilizá-lo,
Anaxágoras disse-lhe: “Não se preocupe, meu caro. A descida ao inferno é a
mesma de qualquer lugar”…
A historieta, dura – embora não tanto: lembremo-nos
que o Hades grego não tem o mesmo peso que o inferno tem para
nós, o de uma rejeição eterna e irrevogável do real -, alude à coragem que
todos temos de ter se queremos conhecer a realidade.
Antes de mais nada, porém, o que é essa tal
“realidade”? Não tenho a pretensão de responder aqui a esta pergunta, mas, para
ir à raiz do problema, basta que nos perguntemos: O que entendemos por
realidade? Como a compreendemos? Esse foi, em todos os tempos, um
problema constante, que só pode encontrar alguma solução se o homem der ouvidos
a esse fundo insubornável do ser de que fala Ortega y Gasset, ao
mais íntimo dos seus pensamentos naquele momento em que enfrenta o seu reflexo
no espelho e tenta reconhecer a própria face.
É daí que me dirijo a você, leitor. Não sou
filósofo, e muito menos um condutor de homens. Sou, no máximo, um cidadão que,
por uma comichão na consciência, tenta observar as coisas como são e por isso
chegou a algumas conclusões perturbadoras. Por isso, gostaria de que me lesse,
não como quem traz respostas para todos os problemas, mas apenas como alguém
que reflete sobre o que todos sabem, mas talvez tenham medo de dizer. E aqui
procurarei que essa voz não seja apenas minha; através dela, queria transmitir
a de outra pessoa, a do homem que tentarei apresentar aqui: Eric Voegelin.
Um filósofo para uma seleta minoria
Voegelin nasceu em Colônia, na Alemanha, a 3 de
janeiro de 1901, e faleceu em Stanford, na Califórnia, a 19 de janeiro de 1985.
É um dos maiores filósofos do século XX, mas permanece ignorado em boa parte
dos meios acadêmicos nacionais. Por quê? Bem, na verdade, não há mistério
nisso: é um autor difícil por ser duro como poucos, rigoroso como um verdadeiro
filósofo deve ser e, como se não bastasse, escreve com uma facilidade que
desnorteia os que pensam que a filosofia deve ser transmitida como um código
secreto para iniciados. Além disso, não brinca com as coisas sérias da vida.
Pelos locais de nascimento e morte, já percebemos
que não morreu na terra natal. Em 1938, teve de fugir de Viena, onde tinha
estudado e depois começado a carreira universitária, devido ao Anschluss,
a anexação da Áustria pela Alemanha governada pelo Partido Nacional-Socialistas
dos Trabalhadores. Nessa altura, era já persona non grata para os
nazistas: em 1933, quando eles haviam chegado ao poder, publicara dois estudos
que criticavam as raízes ideológicas do partido – Raça e Estado e O
Estado autoritário.
Em Viena, tinha sido discípulo de Hans Kelsen, o
filósofo do Direito positivista que, ironicamente – porque as suas teorias
serviram para fundamentar doutrinalmente o sistema legal nazista – , também
tivera de fugir por ser de ascendência judaica. Voegelin não era judeu nem
socialista, e também não tinha a intenção de ser um opositor político do
nazismo; era contrário a qualquer ideologia por motivos estritamente intelectuais
e espirituais, pois num momento em que mais ninguém tinha coragem de admiti-lo,
já sabia que era insustentável ser nazista para qualquer um que quisesse manter
um mínimo de honestidade moral.
Depois de uma breve passagem pela Suíça, chegou aos
Estados Unidos, onde recomeçou a carreira acadêmica como filósofo, fixando-se
na Universidade de Louisiana, em Baton Rouge. Era um fim de mundo acadêmico,
convenhamos, mas permitiu-lhe preparar-se durante vinte anos para o trabalho de
toda a vida – desmascarar o mecanismo que permite às ideologias políticas
corromper uma nação inteira.
Ali começou por escreveu um tratado de 3.200
páginas sobre a História das idéias políticas, que abandonou e que só
viria a ser publicado postumamente. A seguir, dedicou-se a pesquisar os
símbolos religiosos de Israel e da filosofia grega, e publicou parte dos
resultados deste trabalho no livro A nova ciência da política, de 1953,
que lhe valeu uma reportagem na Time e o transformou em um nome
celebrado nas universidades americanas. Mesmo assim, Voegelin não se acomodou
sobre os louros, mas começou a redação do grande tratado Ordem e História,
iniciado em 1955 e só terminado no final da vida.
Contudo, em 1958, treze anos depois do fim da
Segunda Guerra, suas atividades acadêmicas nos Estados Unidos foram
interrompidas quando a Ludwig-Maximilian Universität de Munique o convidou a
assumir a cátedra de ciências políticas, que tinha sido a de Max Weber e estava
vaga havia vinte anos. Ali, Voegelin acrescentou um trabalho administrativo às
responsabilidades acadêmicas, fundando o Instituto de Ciência Política. Por
fim, em 1969, voltou para os Estados Unidos, desta vez para trabalhar em
Stanford, onde permaneceria até a morte.
“Dominar” o passado?
Voegelin aceitou o desafio de voltar para a
Alemanha – apesar da posição de destaque no meio acadêmico conquistada a duras
penas –
por um motivo simples: era a oportunidade de, vinte anos depois, acertar as contas com os fantasmas do nazismo.
por um motivo simples: era a oportunidade de, vinte anos depois, acertar as contas com os fantasmas do nazismo.
Quando chegou, o país estava em pleno processo de
“desnazificação”. Oficialmente, tratava-se uma “condenação do passado nazista”
feita pelo povo e pelo governo de Konrad Adenauer, que girava em torno da noção
de culpa coletiva. O termo soava bem num país ocupado por quatro
potências ocidentais e dividido por um muro, mas realmente “desnazificava” o
país? Essa “revisão” do passado assegurava uma mudança real para o presente e o
futuro?
Voegelin responderá decididamente que não. Em 1964,
deu uma série de palestras sob o título de Hitler e os alemães que foram
um enorme sucesso de público.[1]
Conforme o filósofo tinha pretendido, esse público estava composto na sua
maioria por estudantes, que eram o seu alvo preferencial por já correrem o
risco de perder a noção do que fora viver nos tempos de Hitler. E as perguntas
que lhes fez não diziam respeito a pretensas culpas coletivas, mas
atingiam aquele fundo insubornável do ser individual: como fora possível que
semelhante corrupção espiritual tivesse atingido todos os níveis da sociedade,
da política à intelectualidade, do mundo dos negócios à moral? E essa corrupção
não continuaria a atuar na mente da jovem geração, mesmo vinte anos depois do
desaparecimento do nazismo?
De acordo com a retórica da culpa coletiva, todos
os alemães seriam culpados pelo nazismo. Que sentido fazia isso? Os membros do
partido teriam a mesma responsabilidade que os que tinham votado em Hitler por
acharem que seria o salvador do mundo? E os que não queriam saber de política e
desejavam apenas escapar ao pesadelo da ruína econômica após a Primeira Guerra
Mundial? Tudo isso não passava de uma paródia de expiação, que mascarava algo
muito mais importante: a responsabilidade individual.
De fato, a “desnazificação” não atingia os altos
escalões do poder público. Membros importantes da antiga burocracia nazista –
simples “funcionários” ou “burocratas”, dizia-se, sem responsabilidade pelas
decisões criminosas e por isso mesmo incapazes de perturbar alguém –
permaneciam em cargos-chave do novo governo. Um caso clamoroso era o de Hans
Globke, que despertou as mais ferozes indignações de Voegelin e da filósofa
Hannah Arendt.
Em 1958, Globke era o braço direito de Adenauer,
ocupando o cargo de “subsecretário de Estado e chefe da divisão pessoal da
Chancelaria da Alemanha Ocidental”. Vinte e seis anos antes, fora um dos
funcionários mais respeitados do Ministério do Interior do Terceiro Reich.
Quando surgiu o escândalo em torno do seu passado, Globke apressou-se a afirmar
que apenas procurara tomar “medidas mitigadoras”. Curiosas medidas, aliás… Em
primeiro lugar, fora o autor da lei segundo a qual todo judeu deveria ter como
segundo nome “Israel” e usar uma estrela de Davi amarela a fim de mostrar que
não tinha “ascendência ariana”; e isso foi em 1932, quando “a subida de Hitler
não era uma certeza, mas apenas uma forte possibilidade”. Mais tarde, já no
ministério, criara a lei que obrigava moças tchecas que pretendessem casar com
soldados alemães a exibir fotos em que apareciam vestidas de maiô, para
comprovar os dados antropométricos arianos (talvez fosse mesmo uma mitigação,
pois antes se exigiam fotos em que apareciam nuas…).
Isso já fora denunciado por Hannah Arendt em Eichmann
em Jerusalém, o livro-reportagem publicado em 1962 que narrava o
julgamento de Adolf Eichmann, acusado pelo governo de Israel de ser o
“arquiteto da Solução Final”. Arendt se perguntava se Eichmann, um burocrata
arrivista, seria o monstro de que tanto se falava. E chega à conclusão de que
não: tratava-se de um “homem-massa”, sem vida interior, sem convicções
pessoais, imbuído apenas do intuito de seguir o rebanho – mesmo que este
praticasse assassinato em quantidades industriais. De quem era a
responsabilidade? Dos alemães? Dos judeus? Do Ocidente? Talvez de todos, desde
que isso não mascarasse o fato de que, antes de mais nada, o verdadeiro
responsável por suas ações era o próprio Eichmann.
A conclusão que se impunha era que o verdadeiro
processo de “desnazificação” não se podia obter por meio de um processo legal
ou político; era necessária uma reviravolta da consciência, uma revolução
do espírito – uma conversão pessoal que tinha de começar com uma “descida
aos infernos”. E essa foi a tarefa que Voegelin se impôs ao chegar à Alemanha
em 1958: fazer a sua terra natal compreender que, para “dominar” o passado,
tinha antes de mais nada de “dominar” o presente.
A descida ao inferno
Para isso, Voegelin recupera e propõe no conjunto
da sua obra duas noções praticamente esquecidas no ambiente acadêmico: a do homem
maduro e a do princípio antropológico.
O “homem maduro” corresponde ao spoudaios de
Aristóteles, a pessoa que desenvolveu ao máximo as suas potencialidades e, em
conseqüência, aprendeu que governar e comandar os outros é antes de mais nada
governar e comandar-se a si mesmo, especialmente no domínio das paixões e dos
sentimentos. Conhece a profundidade da sua alma e da dos seus semelhantes
porque desceu ao inferno do conhecimento próprio e de lá voltou. Neste sentido,
não é apenas alguém que manda, mas alguém que representa os anseios mais
íntimos dos homens de carne e osso que compõem a sociedade; não é um chefe
político ou institucional, mas um líder autêntico, com liderança existencial,
pois chega a ser o reflexo da sociedade que governa. Tudo isso pode ser
resumido na seguinte sentença: a sociedade é a alma do homem escrita por
extenso. Voegelin recuperará essa noção de Platão e a chamará de princípio
antropológico.
Ora bem, nas suas palestras sobre “Hitler e os
alemães” Voegelin começa apresentando uma carta escrita por um jovem acadêmico
à famosa revista Der Spiegel:
“Quando lemos que Hitler foi um amador, ‘abaixo da
média dos homens’, perguntamo-nos automaticamente como então ele foi capaz de
modelar uma época. Reconheço que ele era um ‘jogador’, mas um jogador que
ofuscou os outros. […] E o seu único crime foi o de ser um jogador que perdeu,
e que levou consigo todo um povo, de maneira que afundou com ele. Entretanto,
toda a política é um jogo e os ganhos aumentam quando as apostas são altas.
Hoje já não podemos e não queremos jogar; portanto, também nos é impossível
ganhar – a não ser o tão cotado padrão de vida. Mas talvez estejamos perdendo
mais, mesmo sem Hitler”.
Aqui estão prefigurados muitos dos clichês que,
inquietantemente, voltamos há pouco a ouvir repetidos na imprensa e na
academia: o de que Hitler, no fim das contas, era um grande líder, o de que a
política é um jogo, e o de que sua única culpa foi perder. Nem se menciona que
o nazismo e o seu líder tinham um projeto de eliminação sistemática de toda uma
raça e, nas palavras de Churchill, de toda a civilização.
Voegelin apresenta outro exemplo, extraído de um
acadêmico que faz a seguinte descrição física e psicológica de Hitler:
“Hitler fascinava as pessoas com seus olhos azuis
profundos, ligeiramente esgazeados, quase radiantes. Muitos que se encontravam
com ele eram incapazes de resistir a seu olhar”.
E, com palavras mais reveladoras:
“É quase impossível comunicar aos que nunca o
conheceram o impacto pessoal de Hitler […]. Havia, no entanto, muitas pessoas
sobre quem isso não tinha absolutamente nenhum efeito. Certa vez um coronel me
descreveu que, quando estava conversando com Hitler, sentiu uma aversão crescente
ao homem enquanto este o fitava de perto (vale notar que Hitler dispensou esse
coronel e outros muitos rapidamente). A reação reversa foi provocada numa
requintada proprietária da Pomerânia de ascendência aristocrática e convicções
cristãs, que detestava Hitler. Encontrou-o por acaso no passeio de madeira de
uma praia do Mar Báltico, foi atingida por um breve momento pelo olhar dele e
declarou, como fulminada por um raio, que embora ainda não gostasse dele,
sentia que ele era um grande homem. Aqueles a quem Hitler tolerava perto dele
eram, é claro, mais do que tocados pelo seu olhar, e eram transformados em seus
satélites voluntários”.
Nestes parágrafos quase hagiográficos, o Führer
aparece como um “enigma”, como se tivesse uma “aura” incomum que o
transformasse em um homem situado “além do bem e do mal”. É verdade que o seu
autor, Percy Schramm, tinha feito parte do Supremo Comando das Tropas de
Guerra; mas já agora, devidamente munido do seu “certificado de
desnazificação”, era um acadêmico de renome e ganhador da Ordem do Mérito – a
maior honra que, na Alemanha pós-guerra, se podia conferir a um civil.
Esse tipo de mitificação, diz Voegelin, mascara um
fato relevante para qualquer análise política decente: o da representação
social. Se as pessoas viam essa “aura” em Hitler, por mais que
antipatizassem com a sua causa, as suas idéias ou mesmo a sua pessoa, era
porque desejavam participar dela, ver essa “aura” refletida nelas mesmas. O
jornalista Konrad Heiden descreveu isso com precisão já em 1933, quando ainda
ninguém previa as dimensões que o nazismo viria a assumir:
“Com uma confiança ímpar, Hitler expressou o pânico
sem palavras das massas confrontadas por um inimigo invisível e deu um nome ao
espectro sem nome. Ele era um fragmento puro da própria alma da massa moderna
[…]. Alguém se perguntará quais foram as artes pelas quais ele conquistou as
massas; na verdade, ele não as conquistou, apenas as retratou e as
representou“.
Essa intuição brilhante, que Heiden captou no calor
da hora, mostra o fundo da “aura” e do “enigma” de Hitler. Não havia ali nada
da liderança do “homem maduro”, mas apenas um homem-massa imbuído de um intenso
complexo de inferioridade e da intensidade que conferem a angústia e o ódio. O
próprio estilo repleto de clichês dos “hagiógrafos” manifesta esta realidade,
pois a primeira manifestação da corrupção social está na corrupção da
linguagem, que se torna uma “língua de madeira”, rígida, repetitiva e vazia de
sentido real, como a que caracterizou igualmente o governo totalitário
soviético.
Manipulação, não liderança
Schramm acrescenta, ainda no tema do “enigma de
Hitler” e baseado em testemunhos dos que cercavam o Führer, que este só
contava aos que lhe estavam próximos o estritamente necessário, mesmo nos
momentos decisivos da Segunda Guerra. Essa atitude enigmática é às vezes
mencionada, mesmo hoje, como uma “técnica de liderança”. Voegelin, pelo
contrário, chega a uma conclusão muito mais banal e concreta:
“O problema obviamente escapou a Schramm, pois esse
sonegar informações, mesmo aos membros do Estado Maior e do Almirantado, tinha
uma razão institucional. Nos últimos anos, Hitler não contou com nenhum Estado
Maior para conduzir a guerra, mas tomou as rédeas do exército em suas próprias
mãos, pois temia ser posto sob pressão se tivesse de enfrentar um grupo de seis
ou sete generais e almirantes com visão de jogo. Assim, lidava com eles apenas
individual e pessoalmente, e esse contato isolador, em que nenhuma pessoa sabia
qual era o plano todo, era uma tática deliberada e um instrumento de
estabelecimento da ditadura“.
Com efeito, esse reservar para si a informação de
conjunto é uma das técnicas clássicas de manipulação do poder. Novamente, não
há aí nenhum tipo de liderança, mas apenas uma imposição da ambição pessoal.
Uma segunda amostra dessa manipulação surge da
análise do relacionamento do Führer com a sua “comitiva”. Para Schramm,
como para outros, a “culpa de tudo” não estaria em Hitler, mas sim naqueles que
o cercavam. Ele, homem imbuído de um sonho grandioso, teria sido influenciado
por asseclas criminosos e incompetentes; se tivesse podido traduzir na prática
os seus ideais, o nazismo teria tido outro destino histórico.
Ora, é mais do que sabido que a ordem decisiva para
a última fase da “Solução Final” – a
do extermínio em massa dos judeus – veio do próprio Hitler. O que nos leva à
teoria oposta, também apresentada com certa freqüência: a “culpa de tudo” teria
sido exclusivamente do Führer, não do partido nem do governo nem do
povo. Sabemos aonde conduz esse raciocínio: à afirmação de que “o nazismo foi
desvirtuado por Hitler; sem ele, seria outra coisa, muito mais bonita” (É
interessante notar que se usa o mesmo procedimento para o comunismo, apenas
trocando “Hitler” por “Stálin”).
As duas teorias são nitidamente insuficientes. Se
aplicarmos o princípio antropológico, o de que o líder representa
os anseios dos seus adeptos, veremos que Hitler se cercava de uma comitiva
incompetente porque ele próprio era incompetente. Por ser o representante do
homem-massa inferiorizado, as suas palavras só encontravam eco em uma
“pseudo-elite” intelectual e militar que, no fim, não passava de uma “massa
inferiorizada”,
de uma “ralé”.
de uma “ralé”.
Voegelin apresenta seis parâmetros para analisar o
“caso de amor” de Hitler com sua comitiva:
“(1) Hitler estava a par da inadequação de seu
círculo. (2) Hitler era, no entanto, obcecado com a ‘camaradagem’ e a
‘lealdade’. Desaprovava veementemente as mudanças que Mussolini fazia em sua
guarda, as trocas de ministros. (3) Ele era conservador em seus hábitos de vida
e dificilmente rompia relações com pessoas com quem crescia. (4) Teria ocorrido
uma mudança, no entanto, se tivesse sido capaz de ver os seus homens como
eram realmente, de discernir quem dentre eles era incompetente ou tinha
sérias deficiências de caráter. Eis a contradição: por um lado, ele tinha
consciência da inadequação desse círculo; por outro, não era capaz de
detectar-lhes a incompetência, as deficiências de caráter. (5) Portanto, não
tinha precisamente aquilo pelo que muitas vezes foi louvado: o conhecimento da
natureza humana. (6) Hitler conseguia suprimir um julgamento inteiramente
correto, mas que não lhe era conveniente, a fim de justificar pessoas que lhe pareciam
úteis e devotadas”.
É especialmente importante aqui a expressão “como
eram realmente“. A incompetência de Hitler e de sua comitiva devem-se
simplesmente a que não foram capazes de ver a realidade. Por isso, não formaram
uma “elite”, uma minoria seleta que sabe que primeiro a realidade tem de ser
estudada com amor para só depois se tornar dócil; formaram uma “ralé” que
acreditava que a realidade estivesse aos seus pés apenas por serem eles quem
eram. E se as coisas davam errado, limitavam-se a negar toda a
responsabilidade, lançando as culpas, conforme o caso, ora no Führer,
ora na sua comitiva. Mas quem se recusa a ver as conseqüências do real, não
merece outro nome que o de estúpido.
Pneumopatologia da estupidez
Antes de mais nada, devo dar um esclarecimento. O
leitor talvez se tenha surpreendido com as palavras “ralé” e “estúpido”, e
pense que são insultos vulgares. Não são. Na verdade, são termos técnicos e
rigorosos, que classificam um determinado comportamento diante do real. Além de
que um insulto preciso às vezes pode ser um excelente diagnóstico.
Comecemos com o termo “estupidez”. Voegelin faz um
resumo delicioso de como essa palavra é usada desde o início dos tempos, da
Bíblia até a mais recente literatura moderna, passando pela filosofia grega. Os
israelenses chamam o homem que cria desordem na sociedade de “tolo”, nabal,
pois não é um “crente”, não aceita a revelação de Deus; Platão usa outro termo,
amathes, o homem irracional, que não se curva à razão e, portanto, tem
uma imagem defeituosa da realidade. Para São Tomás de Aquino, o “tolo” é o stultus,
o estulto, que não compreende nem a revelação, nem a razão, e mesmo assim tenta
mudar a realidade, tendo como resultado óbvio produzir o caos. Por fim, na
literatura moderna Voegelin encontra no escritor austríaco Robert Musil as
expressões “estúpido”, “idiota” e “néscio”, que retratam o mesmo tipo humano.
Qualquer um de nós já sentiu o momento em que se
depara com a estupidez do próximo como um dos tormentos mais angustiantes de
sua vida. Ortega y Gasset define certeiramente a distinção entre o tonto
e o “perspicaz”: o segundo sempre se surpreende a dois passos de se tornar um tonto
(e aí está o início da inteligência), ao passo que o primeiro jamais suspeita
de si mesmo, sempre se considera “discreto” e se instala na sua torpeza e
tranqüilidade de “néscio”. Não há como tirar o tonto da sua tontice;
aliás, como bem diz Ortega, a diferença entre um “néscio” e um homem “mau” é
que o mau descansa às vezes, o néscio nunca.
Voegelin toma de Musil os conceitos de “estupidez
simples” e “estupidez inteligente”. O “estúpido simples” é alguém que erra por
ignorar o que acontece, por mera desinformação; já o “estúpido inteligente” é
alguém que insiste no erro por acreditar que sempre tem razão. Do resumo histórico
que o filósofo faz, ressalta uma constante que caracteriza o “estúpido
inteligente”: a negação deliberada da razão, que lança o ser humano na
bestialidade, mesmo que esta assuma as formas aparentemente sofisticadas da
técnica ou da ideologia. O estúpido não quer conhecer, prefere
permanecer na negação da realidade. No fim das contas, pensa com o poeta alemão
Novalis (muito admirado pelos nazistas): “o mundo será como eu quero que ele
seja”. Por não respeitar a realidade como ela é, violenta-a de uma forma ou de
outra; mas, como ela é “insubornável”, cedo ou tarde ela se vingará,
pregando-lhe uma peça. E como resultado o estúpido assume uma atitude de revolta
contra tudo e contra todos.
Ao binômio de Musil, Voegelin acrescenta mais um
termo para descrever “Hitler e os alemães”: o de “estupidez criminosa”.
Se o estúpido inteligente insiste no erro, o criminoso está disposto a fazê-lo
custe o que custar. A sua vontade racional é substituída por um desejo de
poder alucinado, que acaba encontrando satisfação somente na destruição do
seu semelhante; as aparentes “razões” que invoca para fazê-lo – de raça, de
credo, de cor ou de sexo -, não passam de pretextos.
Hitler foi exatamente isso: um estúpido
criminoso, o exato oposto do spoudaios, do homem maduro defendido
por Aristóteles. Contudo, permaneceu um ser humano: não é possível perder a
razão ou o próprio espírito só porque queremos: eles continuam a fazer parte da
constituição humana. Como diria Voegelin: “Foi de uma humanidade em forma
absolutamente humana, porém a humanidade mais notavelmente desordenada e
doente: uma humanidade pneumopatológica“. O estúpido, e mais ainda o
estúpido criminoso, não é um “psicopata”, mas algo mais profundo: sofre de uma
doença do espírito, de uma pneumopatologia, que nasce da vontade humana
mas acaba por enraizar-se em todo o ser da pessoa.
Musil criou também a distinção entre “primeira
realidade” e “segunda realidade”. A primeira é a realidade captada pela
apreensão concreta das coisas, entendida pela razão e refletida no bom senso,
em que todos vivem e se comunicam; a segunda é a pseudo-realidade criada como
alternativa pelo espírito doente, em que ele tentará viver e expressar-se
independentemente dos desejos dos seus semelhantes. Quando ocorre o choque
inevitável entre as duas, nasce a mentira erigida num sistema em que todos os
dados incompreensíveis da “primeira realidade” têm de encontrar uma explicação
exata na “segunda realidade”. E nesse momento ocorre uma desumanização: o ser
humano, esse algo concreto e inesgotável, feito de carne e espírito, é
transformado em um mero conceito, uma simples abstração – uma “estatística”.
Daí para o genocídio é apenas um passo.
Este foi o caso da Alemanha na época em que foi
representada política e existencialmente por Adolf Hitler. Não houve nenhuma
“aura”, nenhum “enigma”, muito menos uma “personalidade demoníaca”: tratava-se
somente de uma nação de estúpidos governada por um estúpido criminoso. No
choque entre a primeira realidade e a segunda, a “elite” da nação abdicou do
espírito e decidiu deixar-se escravizar pelo desejo de poder, tornando-se
“ralé” submetida à “autoridade da ignorância”. Essa “ralé” só estava aberta à
vontade do Führer, e isso porque também ela estava imersa na mesma
doença espiritual.
Para mostrar com clareza o que caracteriza a
“ralé”, Voegelin usa um episódio do Dom Quixote. Como todos sabem, o
cavaleiro espanhol é a personificação do homem que vive na “segunda realidade”,
confundindo moinhos com monstros e camponesas com nobres donzelas. A certa altura
do romance, o Quixote é libertado de uma gaiola de madeira pelo cônego, que o
acompanha até a sua casa e procura convencê-lo de que suas aventuras não passam
de rematada loucura. O cavaleiro responde-lhe que suas aventuras são tão reais
como as que compõem os livros de cavalaria da época; o verdadeiro louco, diz,
seria o cônego, que não acredita nesses livros “apesar de terem sido publicados
com a licença do rei”. Aqui temos o raciocínio característico da “autoridade da
ignorância”: aceita-se incondicionalmente a mentira porque “a autoridade” (que
pode ser do rei, do Führer ou da “maioria”, tanto faz) a aprova.
A resistência dolorida
Uma “ralé” comandada por um “estúpido”, intoxicada
por uma doença erigida em sistema legal: essa estupidez institucionalizada gera
uma situação de sonâmbulos conduzidos por outros sonâmbulos. Houve, entretanto,
alguns que se ergueram contra essa “opção preferencial pelo desastre” e
cumpriram a famosa frase do filósofo inglês Richard Hooker: ao menos “a
posteridade saberá que não deixamos, pelo silêncio negligente, que as coisas se
passassem como um sonho”.
O mito de que não houve resistência ao nazismo
mostra-se cada vez mais infundado. Já mencionamos as obras do próprio Voegelin
ou o de Robert Musil, que, ainda em 1937, deu uma conferência pública chamada
“Da estupidez”. Mas existiram vários tipos de resistência, como o dos prelados
Faulhaber ou Von Galen (que os nazistas não ousaram prender), de católicos como
Fritz Gehrlich e Alfred Delp (executados), dos pastores Dietrich Bonhöffer
(preso e executado) e Martin Niemöller (a princípio fascinado pelo nazismo, mas
que percebeu a armadilha e foi preso), de intelectuais como Hermann Broch e
Thomas Mann (exilados nos EUA) – e, é claro, dos irmãos Hans e Sophie Scholl.
Em fevereiro de 1943, os Scholl – que tinham
formado com mais três amigos um grupo clandestino chamado “Rosa Branca” –
distribuíram nos corredores da universidade de Munique milhares de panfletos em
que denunciavam a loucura da guerra e a existência de campos de concentração. A
Gestapo, com eficiência alemã, caçou-os e prendeu-os quase que imediatamente.
Depois de uma farsa de julgamento, os Scholl foram condenados à morte e levados
à guilhotina; Sophie tinha 21 anos e Hans, 25 anos. A evocação dos dois não é
casual: o próprio Voegelin batizou o Instituto de Ciência Política de Munique,
que fundou e onde deu as suas palestras sobre “Hitler e os alemães”, de Geschwister-Scholl-Institut
(Instituto Irmãos Scholl); para o filósofo de Colônia, uma política autêntica
tem de estar sob a égide da coragem.
A conclusão de Voegelin é um chamado à
responsabilidade individual e a uma qualidade completamente insuspeitada neste
contexto: a humildade. Porque a humildade é exatamente aquilo que
afirmamos no início deste artigo: confiar na realidade. A coragem de confiar no
real é a única garantia que permite superar a estupidez institucionalizada,
tornar-se um homem maduro e encontrar essa realidade que fundamenta o encontro
com todas as outras realidades: a vida do espírito. São necessários anos
e anos de dedicação, e é necessária também uma reviravolta interior para
perceber as coisas por esse novo olhar. Mas o começo de tudo está em perceber
que estamos sempre a dois passos de nos tornarmos estúpidos.
Enfrentar-se com essa clareza é uma espécie de
descida aos infernos; mas não esqueçamos que o estúpido também desce, e de
maneira muito pior: no caso de Hitler, basta ler os últimos relatos de sua vida
no fétido bunker onde escolheu morrer. Uma frase publicitária da época,
profundamente irônica, afirmava: “Hitler no bunker – esse, sim, é o
verdadeiro Hitler!” E o que era? Segundo Joachim
Fest, um homem consumido pelo ódio à humanidade, cristalizado nos seus padrões de pensamento, dominado por uma força irracional orientada somente para a destruição. É interessante confrontar esta atitude com a de Winston Churchill, a “nêmesis de Hitler”, que descreve assim os seus “anos de ostracismo” na década de 30:
Fest, um homem consumido pelo ódio à humanidade, cristalizado nos seus padrões de pensamento, dominado por uma força irracional orientada somente para a destruição. É interessante confrontar esta atitude com a de Winston Churchill, a “nêmesis de Hitler”, que descreve assim os seus “anos de ostracismo” na década de 30:
“Todo profeta deve provir da civilização, mas todo
profeta tem de ir para o deserto. Deve ter uma impressão profunda de uma
sociedade complexa e de tudo o que ela tem para dar, e depois atravessar
períodos de isolamento e meditação. É mediante esse processo que a dinamite
psíquica é feita”.
O spoudaios, o homem que “desceu ao inferno”
do autoconhecimento e de lá voltou, é precisamente esta “dinamite psíquica”.
Esta é a lição que Eric Voegelin deixou para todas as jovens gerações: a de que
a tarefa da filosofia é cultivar a coragem e confiar no real, sempre de acordo
com o aviso do profeta Ezequiel: “Filho do homem, te pus como sentinela para a
casa de Israel. Assim, quando ouvires uma palavra da minha boca, hás de
avisá-los da minha parte. Quando eu disser ao ímpio: ‘Ímpio, certamente hás de
morrer’ e tu não o desviares do seu caminho ímpio, o ímpio morrerá por causa da
sua iniqüidade, mas eu requererei o seu sangue de ti. Por outra parte, se
procurares desviar o ímpio do seu caminho, para que se converta, e ele não se
converter do seu caminho, ele morrerá por sua iniqüidade, mas tu terás salvo
tua vida” (Ez 33:7-9).
Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista e
coordenador do departamento de Humanidades do Instituto Internacional de
Ciências Sociais (IICS).
Fonte: Dicta & Contradicta
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