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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Por que precisamos urgentemente de uma direita?

Por André Tavares

Num pronunciamento há alguns anos, Lula manifestou sua satisfação (ou felicidade?) com o fato de que as eleições subsequentes no Brasil seriam concorridas somente por candidatos “de esquerda”. A afirmação do então presidente era sintomática, e era um indício de que a agenda “gramsciana” encontrava-se adiantada na medida em que se tornava patente que para a opinião pública a moralidade política e democrática situava-se já, na geografia das ideias, à esquerda do espectro ideológico. Trata-se daquele momento no qual, para o “homem de rua”, o comprometimento ético confunde-se com a doutrina esquerdista. Sem “uma gota de sangue” os valores socialistas ganham plausibilidade não somente nas estruturas sociais, conduzindo as políticas públicas e o planejamento, mas também, e mais importante, na mente, na subjetividade.

Ao contrário do bolchevismo, que pretendia primeiramente o controle das instituições sociais e dos meios de produção para depois promover as mudanças estruturais, a “nova esquerda” pós-Segunda Guerra percebeu no embate cultural e político o verdadeiro campo de disputa – o chamado “Marxismo Cultural”. A conquista de corações e mentes é a via mais segura para um propósito tão amplo; e a Revolução Russa já havia dado duas lições importantes para a esquerda: (I) o determinismo marxista havia sido desmentido por um bando de camponeses semimedievais liderados por cossacos semiletrados, (II) o sangue que uma revolução derrama cobra um preço alto demais em termos deopinião pública em outros países, o que dificulta a duplicação do mecanismo, e (III) adoutrina econômica marxista está radicalmente equivocada, demonstrando que a revolução depende profundamente das mudanças na superestrutura (era preciso reinverter o que Marx inverteu).

Em lugar da rudeza e frenesi da sublevação e da frieza cínica de um regime totalitário, que precisa criar um aparato para controle, censura e supressão das dissidências difícil de gerir e sustentar por muito tempo, é preciso gerar uma situação social à qual as pessoas queiram se submeter e, consequentemente, manter. Um sistema que mantenha coisas como gulags precisa promover um nível de alienação e terror nas massas muito maior do que qualquer sociedade burguesa pode produzir (por isso Arendt está muito certa quando localiza nazismo e comunismo no mesmo âmbito), ao mesmo tempo que basta um número mínimo de indivíduos e grupos serem jogados para situações limite para que a plausibilidade que sustenta o contexto se desfaça.

Sociedades industriais e pós-industriais não se submeteriam facilmente ao batismo de fogo revolucionário nem a um regime totalitário nos moldes stalinistas, visto que sua complexidade oferece vias de desalienação e disseminação de informação virtualmente impossíveis de controlar (veja que a China precisa manter um exército de trabalhadores simplórios em indústrias modernas e controlar firmemente a circulação de informação não oficial, criando uma monstruosidade composta de controle tradicional na superestrutura e controle hipertécnico na infraestrutura). Está contado em verso e prosa que desde o domínio da bomba atômica, o destino da estrutura soviética estava decidido, e o marxismo e o movimento revolucionário voltou-se para a kulturkampf, e a teoria revolucionária tendia ao “marxismo democrático”. Pode ser uma relação absolutamente espúria, mas foi o que o partido nazista fez na Alemanha – depois de um golpe fracassado, Hitler investiu na militância partidária, na propaganda e no engajamento de certos segmentos corporativos e profissionais estratégicos (como os médicos, como sugere “Arquitetura da Destruição”), e conseguiu o poder pelas urnas (e por negociações partidárias para o cargo de chanceler).

A Teoria da Hegemonia desenvolvida por Gramsci é uma estratégia bastante simples e largamente adequada para este cenário, e audaciosa por questionar o modelo determinista e escatológico do marxismo clássico (na verdade, parece-me que Gramsci inverteu Marx: transformar pela mudança de valores e não pela posse coletiva dos meios de produção é marxianamente um contrassenso). A base da ação encontra-se, portanto, na educação e na persuasão, no inculcamento dos “valores de esquerda”, na transformação da mentalidade, auferindo uma nova cosmovisão e mudando as bases da cultura. Segundo Finocchiaro, a primeira providência é produzir uma clivagem, uma oposição que ao invés de produzir simplesmente um conflito, promova a dominação de um dos lados por outro com a permissão ou concordância do primeiro. Para tanto é preciso “eliminar” os elementos (intelectuais, sobretudo) “não-engajados”, ou ostracizando-os ou rotulando-os (casos paradigmáticos no Brasil: Gilberto Freyre, Bruno Tolentino, Nelson Rodrigues, Gustavo Corção) atribuindo-lhes pertença à posição “conservadora” (no sentido mais negativo que o termo possa assumir) – todo ator deve ser reconhecido como um agente partidário de uma “classe”.


A educação ganha a maior relevância nesse cenário. No caso brasileiro, a esquerda vive a dizer horrores da ditadura (e isso não é uma justificação para o regime militar), e esfumaça o fato de que a universidade ficou praticamente intocada pelos milicos, e lá o pensamento marxista-esquerdista prosperou e informou a intelectualidade, formadores de opinião, professores, políticos e a cabeça da classe média brasileira. De certa maneira, o golpe terminou por prestar um serviço à esquerda no Brasil ao impedir a ação dos marxistas daquele tipo mais obtuso, numa espécie de “seleção” que beneficiou os “revisionistas” (colocando-os em contato, até, com o que havia de mais “avançado” em termos de teoria marxista lá fora ao exilá-los, coisa que dificilmente teriam ficando por aqui, ou só teriam décadas depois devido ao atraso nacional em relação à produção intelectual externa).

Outra provisão dos militares foi o término do ensino clássico, substituído pelo cientificismo positivista. Desprovido de tudo o que era interessante e formador na cultura, as escolas incumbidas da tarefa da “educação universal” promovida pelo Estado deram seguimento ao emburrecimento e estupidificação enlatadas, em massa. Na esteira apareceram os “construtivistas” e “piagetianos” que associados ao discurso de saberes “do oprimido” celebravam o embrutecimento. A educação foi tornada em “ferramenta política” – não quero julgar aqui as intenções de Paulo Freire em sua “pedagogia do oprimido”,  mas segundo ele mesmo, “a alfabetização (…) associada sobretudo a certa práticas claramente políticas de mobilização e de organização, pode constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica” (FREIRE, A Importância do Ato de Ler).

Freire, o ídolo de 11 em cada 10 pedagogos, segundo críticos, não passa de uma mistura indisfarçável de Makarenko e Gramsci (a menos, é claro, para os pedagogos que não dão notícias de nem um, nem outro). E os educandos do projeto brasileiro são gente em preparação para o tal “exercício de questionamento e reflexão sobre sua condição”, claro, de acordo com as premissas da teoria da hegemonia. Esse exercício, em larga medida, constitui-se meramente no questionamento da noção de autoridade: do professor, dos pais, dos agentes do Estado, dos mais velhos… é a formação de um exército em estado permanente de desordem mental, nada sabendo de fato, sofrendo somente de uma raiva e irritação constantes.

Não por acaso, o MEC anda à polvorosa tentando assassinar no berço a ideia de educação doméstica (o homeschooling) e grita a plenos pulmões o monopólio estatal da educação compulsória – a família e a comunidade são ambientes perigosos por portarem valores “tradicionais” até que uma certa engenharia social os transforme em ferramentas de situação social oposta. De um lado o sucateamento do ensino de matemática, português (gramática e a literatura clássica), ciências (a não ser o uso doutrinário de elementos úteis contra o Cristianismo, por exemplo), e, de outro, o ensino marxista de história, geografia, a “educação sexual”, o ensino de “literatura” e todo o lixo possível como equiparável à alta cultura tornam a educação em outra coisa que não a formação de indivíduos integrados psicológica e comunitariamente. Tudo o que sobra é essa legião de furiosos.

A ação contra-hegemônica trata de esvaziar a “direita”, fazendo toda a imagem do conservadorismo associada às oligarquias obtusas e tacanhas e ao empresariado que está longe de qualquer exercício político ou intelectual coerente, e que pensa somente que qualquer governo está justificado desde que não interfira demasiadamente nos negócios (ou que os impulsione; daí as experiências bem sucedidas em polos chineses de “socialismo de mercado”, ou na intervencionismo seletivo da política econômica brasileira). Toda a imoralidade, antiética, corrupção e malignidade ficam conferidos ao outro espectro ideológico num falso maniqueísmo. Não creio ser exagero dizer que essa “revaloração” toca até esquemas de teodiceia: o mal, todo ele, é fruto do conservadorismo, e o bem, a soteriologia está associada aos novos valores da esquerda. Veja que por muito tempo os petistas e esquerdistas em geral eram gente da qual era impossível pensar o pecado da corrupção e traição das “causas populares”; toda a desgraça brasileira, a bandidagem, é responsabilidade dos “demônios de direita”. O Cristianismo, até, precisa tornar-se uma “religião de esquerda” para encontrar justificação.

Lula não está errado, mesmo PT e PSDB estão do mesmo lado do espectro, estão em oposição dentro da mesma matiz. Ambos compartilham a origem uspeana, radicalmente marxista (aos incautos: radicalmente, i.e., na raiz). A realização de eleições sem candidatos de direita, sem uma posição madura do outro lado do espectro é um péssimo sinal. A esterilidade e recursividade são sinais de que a democracia vai mal, a ausência de debate real é um sinal dos tempos. E qualquer esquerdista que se quiser democrata (se isso ainda for possível depois das definições) haverá de concordar comigo que a ausência de bons oponentes conservadores é um sintoma de uma doença aguda. Crer nos “valores de esquerda” e em toda esta visão de mundo é esquecer-se de que é construída por homens, feita por homens e, portanto, atende a intenções de homens; e o homem, de esquerda ou direita, é caído, é mau e injusto. Se as monarquias caíram, em parte, porque entendeu-se que o poder total na mão de um só homem era o risco maior de opressão (então melhor mantê-lo no maior número possível de mãos), podem ressuscitar pela criação do Leviatã da hegemonia (e homogeneização), os homens todos cingidos por um só sistema, excluído o diálogo e a situação de reflexão.

«O Conservadorismo, no sentido da conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa», dizia Hannah Arendt. Vencer o Leviatã e retomar o diálogo implica diretamente na recuperação da alta cultura e dos valores “de direita”, exatamente daquilo que quer exterminar a “revolução silenciosa”. O risco de não se realizar tal tarefa é a extinção da situação democrática e dos valores civilizacionais ocidentais no país, engolfando-nos novamente no abismo sem luz nem voz, sem forma e vazio.

Fonte: andretavares.wordpress

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