Num
pronunciamento há alguns anos, Lula manifestou sua satisfação (ou felicidade?) com o fato de que as eleições subsequentes no
Brasil seriam concorridas somente por candidatos “de esquerda”. A afirmação do
então presidente era sintomática, e era um indício de que a agenda “gramsciana”
encontrava-se adiantada na medida em que se tornava patente que para a opinião
pública a moralidade política e democrática situava-se já, na geografia das
ideias, à esquerda do espectro ideológico. Trata-se daquele momento no qual,
para o “homem de rua”, o comprometimento ético confunde-se com a doutrina esquerdista.
Sem “uma gota de sangue” os valores socialistas ganham plausibilidade não
somente nas estruturas sociais, conduzindo as políticas públicas e o
planejamento, mas também, e mais importante, na mente, na subjetividade.
Ao contrário do
bolchevismo, que pretendia primeiramente o controle das instituições sociais e
dos meios de produção para depois promover as mudanças estruturais, a “nova
esquerda” pós-Segunda Guerra percebeu no embate cultural e político o
verdadeiro campo de disputa – o chamado “Marxismo Cultural”. A conquista de
corações e mentes é a via mais segura para um propósito tão amplo; e a
Revolução Russa já havia dado duas lições importantes para a esquerda: (I) o
determinismo marxista havia sido desmentido por um bando de camponeses semimedievais
liderados por cossacos semiletrados, (II) o sangue que uma revolução derrama cobra um preço alto demais em termos deopinião pública em outros países, o que dificulta a duplicação do
mecanismo, e (III) adoutrina econômica marxista está radicalmente equivocada, demonstrando que
a revolução depende profundamente das mudanças na superestrutura (era preciso
reinverter o que Marx inverteu).
Em lugar da
rudeza e frenesi da sublevação e da frieza cínica de um regime totalitário, que
precisa criar um aparato para controle, censura e supressão das dissidências
difícil de gerir e sustentar por muito tempo, é preciso gerar uma situação
social à qual as pessoas queiram se submeter e, consequentemente, manter. Um
sistema que mantenha coisas como gulags precisa promover um nível de alienação e terror nas massas muito
maior do que qualquer sociedade burguesa pode produzir (por isso Arendt está muito certa quando localiza nazismo e comunismo no mesmo
âmbito), ao mesmo tempo que basta um número mínimo de indivíduos e grupos serem
jogados para situações limite para que a plausibilidade que sustenta o contexto
se desfaça.
Sociedades
industriais e pós-industriais não se submeteriam facilmente ao batismo de fogo
revolucionário nem a um regime totalitário nos moldes stalinistas, visto que sua complexidade oferece vias de desalienação e
disseminação de informação virtualmente impossíveis de controlar (veja que a
China precisa manter um exército de trabalhadores simplórios em indústrias
modernas e controlar firmemente a circulação de informação não oficial, criando
uma monstruosidade composta de controle tradicional na superestrutura e
controle hipertécnico na infraestrutura). Está contado em verso e prosa que
desde o domínio da bomba atômica, o destino da estrutura soviética estava
decidido, e o marxismo e o movimento revolucionário voltou-se para a kulturkampf,
e a teoria revolucionária tendia ao “marxismo democrático”. Pode ser uma
relação absolutamente espúria, mas foi o que o partido nazista fez na Alemanha
– depois de um golpe fracassado, Hitler
investiu na militância partidária, na propaganda e no engajamento de certos
segmentos corporativos e profissionais estratégicos (como os médicos, como
sugere “Arquitetura da Destruição”), e conseguiu o poder pelas urnas (e por
negociações partidárias para o cargo de chanceler).
A Teoria da
Hegemonia desenvolvida por Gramsci é uma estratégia bastante simples e
largamente adequada para este cenário, e audaciosa por questionar o modelo
determinista e escatológico do marxismo clássico (na verdade, parece-me que
Gramsci inverteu Marx: transformar pela mudança de valores e não pela posse
coletiva dos meios de produção é marxianamente um contrassenso). A base da ação
encontra-se, portanto, na educação e na persuasão, no inculcamento dos “valores
de esquerda”, na transformação da mentalidade, auferindo uma nova cosmovisão e
mudando as bases da cultura. Segundo Finocchiaro, a primeira providência é
produzir uma clivagem, uma oposição que ao invés de produzir simplesmente um
conflito, promova a dominação de um dos lados por outro com a permissão ou
concordância do primeiro. Para tanto é preciso “eliminar” os elementos
(intelectuais, sobretudo) “não-engajados”, ou ostracizando-os ou rotulando-os
(casos paradigmáticos no Brasil: Gilberto Freyre, Bruno Tolentino, Nelson
Rodrigues, Gustavo Corção) atribuindo-lhes pertença à posição “conservadora”
(no sentido mais negativo que o termo possa assumir) – todo ator deve ser
reconhecido como um agente partidário de uma “classe”.
A educação
ganha a maior relevância nesse cenário. No caso brasileiro, a esquerda vive a
dizer horrores da ditadura (e isso não é uma justificação para o regime
militar), e esfumaça o fato de que a universidade ficou praticamente intocada
pelos milicos, e lá o pensamento marxista-esquerdista prosperou e informou a
intelectualidade, formadores de opinião, professores, políticos e a cabeça da
classe média brasileira. De certa maneira, o golpe terminou por prestar um
serviço à esquerda no Brasil ao impedir a ação dos marxistas daquele tipo mais
obtuso, numa espécie de “seleção” que beneficiou os “revisionistas”
(colocando-os em contato, até, com o que havia de mais “avançado” em termos de
teoria marxista lá fora ao exilá-los, coisa que dificilmente teriam ficando por
aqui, ou só teriam décadas depois devido ao atraso nacional em relação à
produção intelectual externa).
Outra provisão
dos militares foi o término do ensino clássico, substituído pelo cientificismo
positivista. Desprovido de tudo o que era interessante e formador na cultura,
as escolas incumbidas da tarefa da “educação universal” promovida pelo Estado
deram seguimento ao emburrecimento e estupidificação enlatadas, em massa. Na
esteira apareceram os “construtivistas” e “piagetianos” que associados ao
discurso de saberes “do oprimido” celebravam o embrutecimento. A educação foi
tornada em “ferramenta política” – não quero julgar aqui as intenções de Paulo
Freire em sua “pedagogia do oprimido”, mas segundo ele mesmo, “a
alfabetização (…) associada sobretudo a certa práticas claramente políticas de
mobilização e de organização, pode constituir-se num instrumento para o que
Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica” (FREIRE, A Importância do Ato de
Ler).
Freire, o ídolo
de 11 em cada 10 pedagogos, segundo críticos, não passa de uma mistura
indisfarçável de Makarenko e Gramsci (a menos, é claro, para os pedagogos que
não dão notícias de nem um, nem outro). E os educandos do projeto brasileiro
são gente em preparação para o tal “exercício de questionamento e reflexão
sobre sua condição”, claro, de acordo com as premissas da teoria da hegemonia.
Esse exercício, em larga medida, constitui-se meramente no questionamento da
noção de autoridade: do professor, dos pais, dos agentes do Estado, dos mais
velhos… é a formação de um exército em estado permanente de desordem mental,
nada sabendo de fato, sofrendo somente de uma raiva e irritação constantes.
Não por acaso,
o MEC anda à polvorosa tentando assassinar no berço a ideia de educação
doméstica (o homeschooling) e grita a plenos pulmões o monopólio estatal da educação
compulsória – a família e a comunidade são ambientes perigosos por portarem
valores “tradicionais” até que uma certa engenharia social os transforme em
ferramentas de situação social oposta. De um lado o sucateamento do ensino de
matemática, português (gramática e a literatura clássica), ciências (a não ser
o uso doutrinário de elementos úteis contra o Cristianismo, por exemplo), e, de
outro, o ensino marxista de história, geografia, a “educação sexual”, o ensino
de “literatura” e todo o lixo possível como equiparável à alta cultura tornam a
educação em outra coisa que não a formação de indivíduos integrados psicológica
e comunitariamente. Tudo o que sobra é essa legião de furiosos.
A ação
contra-hegemônica trata de esvaziar a “direita”, fazendo toda a imagem do
conservadorismo associada às oligarquias obtusas e tacanhas e ao empresariado
que está longe de qualquer exercício político ou intelectual coerente, e que
pensa somente que qualquer governo está justificado desde que não interfira
demasiadamente nos negócios (ou que os impulsione; daí as experiências bem
sucedidas em polos chineses de “socialismo de mercado”, ou na intervencionismo
seletivo da política econômica brasileira). Toda a imoralidade, antiética,
corrupção e malignidade ficam conferidos ao outro espectro ideológico num falso
maniqueísmo. Não creio ser exagero dizer que essa “revaloração” toca até
esquemas de teodiceia: o mal, todo ele, é fruto do conservadorismo, e o bem, a
soteriologia está associada aos novos valores da esquerda. Veja que por muito
tempo os petistas e esquerdistas em geral eram gente da qual era impossível
pensar o pecado da corrupção e traição das “causas populares”; toda a desgraça
brasileira, a bandidagem, é responsabilidade dos “demônios de direita”. O
Cristianismo, até, precisa tornar-se uma “religião de esquerda” para encontrar
justificação.
Lula não está
errado, mesmo PT e PSDB estão do mesmo lado do espectro, estão em oposição
dentro da mesma matiz. Ambos compartilham a origem uspeana, radicalmente
marxista (aos incautos: radicalmente, i.e., na raiz). A realização de eleições
sem candidatos de direita, sem uma posição madura do outro lado do espectro é
um péssimo sinal. A esterilidade e recursividade são sinais de que a democracia
vai mal, a ausência de debate real é um sinal dos tempos. E qualquer
esquerdista que se quiser democrata (se isso ainda for possível depois das
definições) haverá de concordar comigo que a ausência de bons oponentes
conservadores é um sintoma de uma doença aguda. Crer nos “valores de esquerda”
e em toda esta visão de mundo é esquecer-se de que é construída por homens,
feita por homens e, portanto, atende a intenções de homens; e o homem, de
esquerda ou direita, é caído, é mau e injusto. Se as monarquias caíram, em
parte, porque entendeu-se que o poder total na mão de um só homem era o risco
maior de opressão (então melhor mantê-lo no maior número possível de mãos),
podem ressuscitar pela criação do Leviatã da hegemonia (e homogeneização), os
homens todos cingidos por um só sistema, excluído o diálogo e a situação de
reflexão.
«O
Conservadorismo, no sentido da conservação, faz parte da essência da atividade
educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa», dizia Hannah Arendt. Vencer o Leviatã e retomar o diálogo implica diretamente na
recuperação da alta cultura e dos valores “de direita”, exatamente daquilo que quer exterminar a “revolução silenciosa”.
O risco de não se realizar tal tarefa é a extinção da situação democrática e
dos valores civilizacionais ocidentais no país, engolfando-nos novamente no
abismo sem luz nem voz, sem forma e vazio.
Fonte: andretavares.wordpress
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente! Boa parte dos conhecimentos surgiu dos questionamentos.
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.