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sexta-feira, 24 de junho de 2016

As causas do Brexit, a história da União Europeia e suas duas ideologias conflitantes

Por Philipp Bagus, Jeff Deist e Claudio Grass


Desde o início da União Europeia, tem havido um conflito entre os defensores de dois ideais diferentes.  Qual postura o continente europeu deve adotar: a visão liberal-clássica ou visão socialista?

Para se entender melhor as motivações do Brexit, é importante estar familiarizado com essas duas visões divergentes e essenciais, assim como as subsequentes tensões que vieram à tona em decorrência delas.

A visão liberal-clássica

Os pais fundadores da União Europeia, Maurice Schuman (França [nascido em Luxemburgo]), Konrad Adenauer (Alemanha) e Alcide de Gasperi (Itália), todos católicos que falavam alemão, eram adeptos da visão liberal-clássica para a Europa. Eles também eram democratas-cristãos.

A visão liberal-clássica considera a liberdade individual como sendo o mais importante valor cultural dos europeus e do cristianismo.  De acordo com essa visão, a função dos estados soberanos europeus é proteger os direitos de propriedade e a economia de livre mercado em uma Europa de fronteiras abertas, permitindo desta forma o livre comércio de bens, serviços e idéias.

Tratado de Roma, assinado em 1957, foi a principal realização para a criação de uma Europa baseada no liberalismo clássico.  O tratado estabeleceu quatro liberdades básicas: livre circulação de bens, livre oferta de serviços, livre movimentação de capital financeiro e livre migração.  O tratado também restaurou direitos que haviam sido essenciais para a Europa durante a vigência do período liberal-clássico no século XIX, mas que haviam sido abandonados durante a era do nacionalismo e do socialismo.  O tratado representou a rejeição da era do socialismo, período esse que havia gerado conflitos entre as nações européias, culminando em duas guerras mundiais.

A visão liberal-clássica visa à restauração das liberdades do século XIX.  A livre concorrência, sem barreiras à entrada nos mercados, deveria prevalecer em um mercado comum europeu.  De acordo com essa visão, ninguém poderia proibir um cabeleireiro alemão de cortar cabelos na Espanha, e ninguém poderia tributar um inglês que quisesse transferir dinheiro de um banco alemão para um banco francês, ou que quisesse investir no mercado de ações da Itália.

Ninguém poderia impedir, por meio de regulamentações, que uma cervejeira francesa vendesse suas cervejas na Alemanha.  Nenhum governo poderia dar subsídios, algo que distorce e corrompe o sistema de livre concorrência.  Ninguém poderia impedir que um dinamarquês fugisse de seu estado assistencialista e de sua alta carga tributária e migrasse para um estado com uma carga tributária mais baixa, como a Irlanda.

Para atingir esse ideal de cooperação pacífica e prosperidade comercial, o único pré-requisito necessário seria a liberdade.  De acordo com essa visão, não haveria nenhuma necessidade de se criar um super-estado europeu.  Com efeito, a visão liberal-clássica é completamente cética no que concerne a um estado central europeu; tal criação é considerada prejudicial e perniciosa para as liberdades individuais.

Filosoficamente falando, muitos defensores dessa visão são inspirados pelo catolicismo, e as fronteiras da comunidade europeia são definidas pelo cristianismo.

De acordo com a doutrina social católica, o princípio da subsidiariedade deveria prevalecer: os problemas deveriam ser resolvidos no nível mais baixo e menos concentrado possível dos arranjos.  A única instituição centralizada europeia aceitável seria uma Corte de Justiça Europeia, com suas atividades sendo restritas à resolução de conflitos entre os estados-membros e à garantia das quatro liberdades básicas.

Do ponto de vista liberal-clássico, deveria haver vários sistemas políticos concorrentes, como ocorreu na Europa durante séculos.  Desde a Idade Média até o século XIX, existiram sistemas políticos muito diferentes, tais como as cidades independentes de Flandres (região no noroeste da Europa, que inclui partes da Bélgica, França e Holanda), da Alemanha e do norte da Itália.  Havia reinados, como os da Bavária e da Saxônia, e havia repúblicas, como a de Veneza.

A diversidade política era demonstrada de modo mais explícito na fortemente descentralizada Alemanha.  Sob essa cultura de diversidade e pluralismo, a ciência e a indústria se desenvolveram e prosperaram.[1]

A concorrência em todos os níveis é essencial para a visão liberal-clássica.  Ela gera uma congruência, uma vez que a qualidade dos produtos, os preços dos fatores de produção e, principalmente, os salários tendem a convergir.  O capital vai para os locais onde os salários são menores, o que provoca sua elevação; os trabalhadores, por outro lado, vão para onde os salários são mais altos, o que faz com que essa maior oferta de mão-de-obra os reduza.  Os mercados oferecem soluções descentralizadas para os problemas ambientais, baseando-se na propriedade privada.  A concorrência política assegura o mais importante valor europeu: a liberdade.

A concorrência tributária promove alíquotas de impostos mais baixas, bem como a responsabilidade fiscal.  As pessoas "votam com seus pés", saindo dos países com carga tributária abusiva, como fazem as empresas.  Nações soberanas concorrendo entre si com diferentes cargas tributárias são vistas como a melhor proteção contra a tirania.  A concorrência também se dá na questão das moedas.  Diferentes autoridades monetárias competem para oferecer a moeda de maior qualidade.  As autoridades que oferecem moedas mais estáveis exercem pressão sobre as autoridades mais displicentes, e estas são obrigadas a se adequar e seguir o exemplo daquelas.

A visão socialista

Em direta oposição à visão liberal-clássica tem-se a visão socialista ou imperial da Europa, defendida por políticos como Jacques Delors e François Mitterrand.  Uma coalizão de interesses estatistas entre grupos nacionalistas, socialistas e conservadores faz o que pode para promover e avançar sua agenda.  Tal coalizão sempre quis ver a União Europeia como um império ou uma fortaleza: protecionista para quem está de fora e intervencionista para quem está dentro.

Esses estatistas sonham com um estado centralizado e controlado por tecnocratas eficientes — atributo este que todos os tecnocratas estatistas imaginam ter.

Dentro desse ideal, o centro do Império deveria governar toda a periferia.  Haveria uma legislação comum e centralizada.  Os defensores da visão socialista para a Europa querem erigir um megaestado europeu, reproduzindo as nações-estado em um nível continental.  Eles querem um estado assistencialista europeu que garanta a redistribuição de riqueza, a regulamentação econômica e a harmonização das legislações dentro da Europa.

A harmonização dos impostos e as regulamentações sociais seriam executadas pelo mais alto escalão da burocracia.  Se o imposto sobre valor agregado estiver variando entre 15 e 25% dentro União Europeia, os socialistas iriam harmonizá-lo em 25% para todos os países.  Tal harmonização das regulamentações sociais é do interesse dos mais protegidos, mais ricos e mais produtivos trabalhadores, que podem "arcar" com os custos dessas regulamentações — ao passo que seus concorrentes não podem.  Por exemplo, se as políticas sociais alemãs fossem aplicadas aos poloneses, estes teriam grandes problemas para concorrer com aqueles.

A intenção desse ideal socialista é conceder cada vez mais poderes para o estado central — isto é, para Bruxelas.  A visão socialista para a Europa é a ideal para a classe política, para os burocratas, para os grupos de interesse que fazem lobby, e para os setores protegidos e subsidiados que querem criar um poderoso estado central visando ao seu próprio enriquecimento.

Partidários dessa visão apresentam um megaestado europeu como uma necessidade, e consideram sua total implementação apenas uma questão de tempo.

Ao longo desse caminho socialista, o estado central europeu iria se tornar um dia tão poderoso, que os estados soberanos passariam a lhe prestar total subserviência.  (Já podemos ver os primeiros indicadores de tal subserviência no caso da Grécia.  A Grécia se comporta hoje como um protetorado de Bruxelas, que diz ao governo grego como ele deve lidar com seus problemas).

A visão socialista não fornece nenhuma limitação geográfica explícita para o estado europeu — ao contrário da visão liberal-clássica inspirada no catolicismo.  A concorrência política é vista como um obstáculo para o estado central, o qual, no ideário socialista, deve sair completamente de qualquer controle por parte do público.  Nesse sentido, o estado central, na visão socialista, se torna cada vez menos democrático à medida que o poder vai sendo deslocado para burocratas e tecnocratas.

(Um bom exemplo disso é a Comissão Europeia, o corpo executivo da União Europeia.  Os membros da comissão não são eleitos, mas sim designados pelos governos dos estados-membros.  E o próprio Parlamento Europeu é totalmente impotente para impedir ou revogar os atos da Comissão Europeia.)

Historicamente, os precedentes para esse velho plano socialista de criar um estado central controlador na Europa foram estabelecidos por Carlos Magno, Napoleão, Stalin e Hitler.  A diferença, entretanto, é que dessa vez nenhum meio militar seria necessário.  A mera coerção do poder estatal seria a mola propulsora para a criação de um poderoso estado central europeu.

De um ponto de vista tático, situações específicas de crise seriam utilizadas pelos partidários da visão socialista para criar novas instituições (tais como o Banco Central Europeu (BCE), ou, possivelmente, um Ministério Europeu das Finanças), bem como para ampliar os poderes das atuais instituições, como a Comissão Europeia e o próprio BCE.

A visão liberal-clássica e a visão socialista para a Europa são irreconciliáveis.  Com efeito, o aumento no poder de um estado central — como proposto pela visão socialista — implica uma redução das quatro liberdade básicas (livre circulação de bens, livre oferta de serviços, livre movimentação de capital financeiro e livre migração) e certamente liberdades civis cada vez menores.

A história de uma batalha entre duas visões

Essas duas visões têm travado batalhas entre si desde os anos 1950.  No início, o projeto das Comunidades Europeias era mais fiel à visão liberal-clássica.

As Comunidades Europeias eram formadas pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que criava um mercado comum para carvão e aço; pela Comunidade Econômica Europeia, que promovia a integração econômica; e pela Comunidade Europeia da Energia Atômica, que criava um mercado especial para energia nuclear, fazendo sua distribuição pela Comunidade.

A Comunidade Europeia era composta por estados soberanos e assegurava as quatro liberdades básicas.  Do ponto de vista do liberalismo clássico, um dos principais defeitos de nascença do projeto eram os subsídios e as intervenções da política agrícola.  Da mesma forma, desde seu nascimento, o único poder legislativo pertencia à Comissão Europeia.  Assim, uma vez que a Comissão fizesse uma proposta legislativa, o Conselho da União Europeia poderia sozinho, ou em conjunto com o Parlamento Europeu, aprovar a proposta.

Esse arranjo já continha em si as sementes da centralização.  Consequentemente, o arranjo institucional, desde seu início, havia sido projetado para acomodar a centralização e o controle sobre as opiniões minoritárias, uma vez que a unanimidade não era necessária para todas as decisões, e as áreas em que a regra da unanimidade se fazia necessária foram sendo reduzidas ao longo dos anos.

O modelo liberal-clássico é defendido tradicionalmente pelos democratas-cristãos e por países como Holanda, Alemanha e Reino Unido.  Porém, os social-democratas e socialistas, normalmente liderados pelo governo francês, defendem a versão imperialista da Europa.  Com efeito, em decorrência de sua rápida queda em 1940, dos anos da ocupação nazista, de seus fracassos na Indochina, e da perda de suas colônias africanas, a classe dominante francesa utilizou a Comunidade Europeia para readquirir sua influência e seu orgulho, e para se recuperar da perda de seu império.[2]

Com o passar dos anos, houve uma lenta porém contínua tendência rumo ao ideal socialista: os países-membros foram sendo obrigados a direcionar cada vez mais dinheiro de impostos de seus cidadãos para custear os orçamentos cada vez maiores da União Europeia; houve uma crescente perda de autonomia nacional, com sua transferência praticamente integral para Bruxelas; e, após a crise financeira de 2008, adotou-se uma nova política regional que efetivamente redistribui riquezas por toda a Europa.
Tudo isso culminou na situação atual.

Só o Reino Unido, em termos líquidos, paga 136 milhões de libras por semana para a União Europeia.  Por outro lado, a Grécia há muito tempo não contribui nada para o orçamento da UE, dado que a Alemanha cobre indiretamente suas contribuições por meio de empréstimos que a UE faz para a Grécia.

Inúmeras regulamentações econômicas e "harmonizações burocráticas e tributárias" ajudaram a empurrar ainda mais o arranjo para essa direção socialista.  As políticas intervencionistas e centralizadoras da União Europeia criaram uma sombria situação econômica e financeira para seus países-membros: desemprego em massa, finanças públicas descontroladas, e perspectivas de crescimento desanimadoras.

Tudo isso insuflou os desejos separatistas da população do Reino Unido.  A imposição da União Europeia para que o país aceitasse imigrantes muçulmanos após o conflito na Síria foi a gota d'água.

A integração forçada

Com a recente enxurrada de refugiados e imigrantes entrando na Europa, a pressão dos cidadãos britânicos sobre para a saída aumentou.  Os burocratas de UE propuseram espalhar os imigrantes por vários países da Europa de acordo com um plano de reassentamento pré-definido.  Naturalmente, os britânicos não gostaram da ideia, pois, além das questões que envolvem a segurança nacional, os novos imigrantes geram uma pressão adicional sobre o estado assistencialista britânico.

E, mesmo que absolutamente nenhum imigrante fosse realocado para o Reino Unido, os britânicos ainda assim teriam de financiar ao menos parcialmente o reassentamento dos imigrantes no resto da Europa por meio dos impostos que pagam para sustentar a União Europeia.

Mas essa questão da imigração é mais antiga.  Foi só agora que o caldo entornou de vez, mas os conflitos gerados são antigos. Não apenas o influxo de imigrantes afetou o mercado de trabalho para os trabalhadores britânicos menos qualificados (insuflando os argumentos nacionalistas e protecionistas), como também afetou a cultura britânica, até mesmo o idioma.  Já em 2009, o inglês não era o primeiro idioma de mais de meio milhão de estudantes nas escolas primárias da Grã-Bretanha.  Isso mexeu com os brios de uma parte da população.

Por toda a Europa, a onda de imigração muçulmana em massa é frequentemente apresentada pelos políticos e intelectuais progressistas como sendo um grande salto para a frente, tornando a Europa uma sociedade mais multicultural (conceito esse que sempre foi promovido por essas pessoas como sendo o ideal).

No entanto, essa insistente ideia do "multiculturalismo" (uma versão do "marxismo cultural") pouco ou quase nada tinha a ver com diversidade ou interações culturais positivas, como se propagandeava.  Em sua essência, políticas de integração forçada, ao criarem inevitáveis conflitos, abrem espaço para os governos intervirem mais amplamente na sociedade sob o pretexto de estar agindo como o protetor daquelas "minorias discriminadas", as quais vão se tornando cada vez mais dependentes do estado.

Políticos adoram esse arranjo, pois ele lhes confere mais poderes discricionários e mais argumentos para se criar novos programas de redistribuição de renda.  A divisão social, as tensões e as discordâncias inevitavelmente geradas por esse arranjo criam um terreno fértil para mais restrições sobre as liberdades pessoais e a autonomia do indivíduo.

O Brexit

Os defensores da saída da União Europeia argumentaram que o Reino Unido havia perdido sua soberania e sua autonomia para tomar decisões — pois estas haviam sido transferidas para Bruxelas —, e estava pagando um alto preço, tanto político quanto econômico, para fazer parte da UE.

A crise da imigração e a incapacidade de se adotar políticas nacionais autônomas para lidar com ela foi apenas mais uma manifestação dessa excessiva centralização de poderes em Bruxelas.

Em tese, com sua saída, a população do Reino Unido não mais terá de dar satisfações a uma entidade superior localizada em outro país, vista como intrusiva.  Tampouco sua população poderá ser tolhida por essa entidade estrangeira.  Os indivíduos poderão agora usufruir uma maior autonomia, podendo, agora localmente, resolver os problemas que são do interesse do povo britânico, e não da conveniência de burocratas em Bruxelas.

O fato é que o atual conceito de estado-nação é contrário à ideia de liberdade individual.  Não há como ele ser reconciliado com a ideia de liberdade individual.  E a situação fica ainda pior quando estados-nações começam a criar uniões, tentando unificar seus poderes em uma única estrutura burocrática — como a União Europeia.

Com a saída do Reino Unido da União Europeia, os britânicos têm em mãos uma oportunidade de frustrar o rolo compressor de Bruxelas, pelo menos por algum tempo, e decidirem com mais autonomia sobre o que realmente querem.  No fundo, tudo se resume a esse pergunta: "quem deve decidir por nós?"

É verdade que os libertários não deveriam se preocupar com o conceito político "soberania nacional".  Governos, em qualquer nível, não são regentes soberanos e jamais deveriam ser considerados dignos de determinar o curso de nossas vidas.  No entanto, também é verdade que, quanto mais enfraquecido o elo entre o indivíduo e o corpo político que pretende lhe governar, maior a autonomia e o poder desse indivíduo.

Em última instância, o Brexit não foi um referendo sobre livre comércio, imigração, ou regras burocráticas impostas pelo (pavoroso) Parlamento Europeu e pela (pavorosa) Comissão Europeia.  Foi, isso sim, um referendo sobre uma maior autonomia individual e sobre um menor poder a entidades políticas globalistas.

Libertários deveriam ver a descentralização e a redução do poder estatal como sempre sendo algo positivo, independentemente de quais sejam as motivações por trás de tais movimentos.  Reduzir o tamanho, o escopo e o poder de domínio de qualquer estado (ou de qualquer união de estados) é decididamente algo saudável para a liberdade.

Philipp Bagus, professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.  É o autor do livro A Tragédia do Euro.
Jeff Deist, o atual presidente do Ludwig von Mises Mises Institute.
Claudio Grass, diretor e presidente da empresa suíça Global Gold.

Fonte: Mises Brasil

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