Por Jacob Bazarian
O MITO E A REALIDADE
Segundo a teoria marxista-leninista, o mais eficiente critério da verdade é a prática. É na prática que uma ideia ou teoria deve provar a sua eficiência, a sua veracidade. Eu fui mais feliz que a maioria dos comunistas por ter tido a oportunidade de viver 16 anos na URSS e ter visto com meus próprios olhos as realizações soviéticas. E posso dizer com absoluta convicção que o melhor meio de convencer o comunista sincero de seu erro é mandar viver por muito tempo na União Soviética.
Os
estudantes da Universidade "Patrício Lumumba" de Moscou, os bolsistas
estrangeiros de outras organizações soviéticas, e os emigrantes políticos que
passaram lá um certo período — estes são os maiores inimigos do regime
soviético, pois êles o conhecem melhor do que muitos teóricos marxistas ou
dirigentes comunistas do exterior (isto é, países fora da. URSS).
O
regime soviético jamais será minado, "por fora", pelos seus inimigos
de classe, mas o será pelos seus próprios amigos, "de dentro" do
movimento, pois a crítica destes é mais eficaz, embora a solidariedade dos
"de fora" possa encorajar os "de dentro".
Um
grave erro dos ideológicos anti-soviéticos consiste no seguinte: eles exageram
tanto as deficiências do regime combatido e ignoram a tal ponto certos aspectos
positivos do regime soviético, que a sua propaganda deixa de ser eficaz. Pois o
leitor raciocina assim: se os reacionários anti-soviéticos mentem sobre os
aspectos positivos da realidade soviética, então tudo o mais pode ser também
mentira. (Aliás nesse mesmo erro de parcialidade e subjetivismo incorrem
igualmente os propagandistas soviéticos quando combatem o regime
"putrefato" do capitalismo).
Em
qualquer caso, a crítica é muito mais eficaz quando é objetiva.
Seria
muita ingenuidade pensar que um país, com mais de 250 milhões de habitantes,
pôde sobreviver durante 50 anos e fazer conquistas científicas em todos os
domínios se não tivesse nada de positivo. O regime soviético deu excelentes
conquistas sociais, sobretudo para o povo russo que desde sua existência como
nação, há cerca de 1.200 anos, vivia em plena servidão.
Entre
as conquistas sociais do regime soviético podemos enumerar uma série de
regalias inteiramente gratuitas: assistência social e médico-hospitalar, rede
imensa de creches, jardins de infância, escolas primárias, secundárias e
superiores; bolsas de estudos aos estudantes das escolas técnicas e superiores.
Direito ao trabalho, ao descanso e à aposentadoria; direitos iguais à mulher em
todos os domínios; habitações gratuitas e muitas outras regalias, sem falar na
revolução cultural que transformou o povo soviético num dos povos mais cultos
do mundo de hoje. Isto tudo são conquistas inegáveis. A única objeção que temos
contra os ideólogos comunistas é que todas essas conquistas sociais podem ser
realizadas em regime capitalista, sem necessidade de revoluções sangrentas e
repressões em massa de inimigos e até de amigos do regime. Vejam, por exemplo,
os países capitalistas mais desenvolvidos da Europa como a França, Inglaterra,
Suécia, Dinamarca, Noruega, etc. que conseguiram os mesmos resultados por meios
pacíficos.
A
maior crítica que se pode fazer ao regime soviético é que ele teórica e
praticamente não funciona mais. Por duas razões principais, uma de ordem
econômica e outra política:
Em
primeiro lugar, a supressão do incentivo individual, do estímulo material, que
muitos marxistas soviéticos consideram erroneamente como um princípio
capitalista — quando na realidade é um princípio existencial para todas as
sociedades e épocas — fez com que, depois de passar o período de entusiasmo
revolucionário — próprio ao período imediato após a revolução — os indivíduos
perdessem o interesse pelo aumento da produtividade — único elo que pode
impulsionar a sociedade para frente.
Em
segundo lugar, a supressão dos direitos democráticos e humanos mais elementares
— uma conquista dura da humanidade, depois de séculos de lutas, fez com que a
sociedade que pretendia construir a organização mais democrática e mais humana,
paradoxalmente, se tornasse, na realidade, a sociedade menos democrática e
menos humana que se conhece atualmente no mundo civilizado ocidental.
Os
ideólogos soviéticos afirmam que construíram uma sociedade nova, radicalmente
diferente de todas que já existiram. Com isso pode-se concordar inteiramente.
De fato, em toda a história da humanidade jamais houve uma sociedade tão
opressiva, onde a violação dos direitos humanos fosse tão radical e total. Nem
mesmo Hitler, com todo o seu furor, não chegou aos pés de Stálin na repressão
das liberdades humanas.
Os
princípios básicos do Partido Comunista Soviético se transformaram, na
realidade, no seu oposto: na política interna do Partido, o centralismo
democrático se transformou em despotismo autocrático; na política interna do
país, a ditadura do proletariado se transformou em ditadura do biurô do C. C.
do Partido, e a igualdade de direitos, a soberania e a autodeterminação das
repúblicas nacionais se transformou em desigualdade de direitos e submissão
total aos interesses da Rússia; na política externa, o internacionalismo
proletário, em imperialismo russo, isto é, em submissão dos povos ao
"diktat" russo.
Para
que a nossa afirmação não pareça destituída de fundamentos, citaremos alguns
casos:
A
Constituição Soviética, em seus artigos 125 e 126, reza que a lei garante a
todos os cidadãos da URSS: a liberdade de palavra; a liberdade de imprensa; a
liberdade de reuniões e comícios; a liberdade de desfiles e manifestações
públicas e o direito a agrupar-se em organizações sociais. E nos artigos
seguintes ( 127 e 128) garante: a inviolabilidade pessoal; a inviolabilidade do
domicílio dos cidadãos e o segredo da correspondência. Qualquer pessoa que
viveu por um tempo demorado na URSS sabe muito bem que todas essas garantias
existem apenas no papel. Na realidade, todos os direitos e liberdades acima
enumerados são descaradamente infringidos e violados, em flagrante desrespeito
não só à Constituição Soviética, como também aos sagrados Direitos do Homem,
aprovados pela ONU com a participação dos representantes da própria URSS.
Uma
prova irrefutável do que afirmamos acima está contida na carta que, em maio de
1969, um grupo de intelectuais, professores e cientistas soviéticos (a classe
mais bem paga na URSS), desafiando a prisão e a morte, enviou à Comissão dos
Direitos do Homem das Nações Unidas, em que denunciam as perseguições políticas
e a violação dos direitos cívicos básicos na União Soviética.
Para
ilustrar a que absurdo e consequências funestas pode levar a violação dos
direitos democráticos, basta citar o seguinte. Segundo à teoria marxista -
leninista, nas sociedades divididas em classes antagônicas (como a sociedade
capitalista, por exemplo) , a força motriz da evolução é a luta de classes. Nas
sociedades socialistas, onde, por definição, não existem mais classes
antagônicas, a sociedade só pode evoluir aplicando a crítica nas formas de
autocrítica e crítica mútua.
Pois
bem, eliminando quase que completamente a crítica — sua fôrça motriz, portanto
— o regime soviético eliminou com isso as possibilidades de sua própria
evolução. Hoje, não é o regime capitalista que está estagnado — como gostam de
afirmar os comunistas, mas é a própria sociedade soviética que está estagnada e
em crise, pois uma sociedade que elimina a luta de idéias, elimina sua própria
força motriz de desenvolvimento.
(...)
Se
os russos gostam do regime soviético é um problema dos próprios russos. Isso é
o seu direito. O nosso direito é mostrar-lhes que o que é bons para os russos,
necessàriamente, não é bom para os não-russos. Eis uma verdade que deve ser
assimilada tanto pelos dirigentes soviéticos, como pelos dirigentes dos partidos
comunistas dos países não socialistas. (Esta tese é válida, do mesmo modo, aos
que seguem a linha dos comunistas chinêses, cubanos, etc).
Diante
do exposto, creio que está claro e evidente, como a luz, que um indivíduo
formado nas tradições democráticas e humanísticas do Ocidente não pode, de modo
nenhum, aceitar tal regime de servidão e despotismo totalitário. É uma questão
de evolução na escala histórica das liberdades humanas.
Existe
uma grande defasagem entre o nível de evolução da Rússia e dos países
democráticos do Ocidente. Apesar dos progressos feitos, o fato real é que a
Rússia continua ainda na rabeira da civilização ocidental. Assim como o homem
civilizado se sentiria constrangido e despojado se fosse obrigado a viver num
país mais atrasado, do mesmo modo se sentiria o ocidental no regime soviético,
no socialismo de caserna que os russos criaram.
Se
o regime soviético foi um passo adiante para os russos (isso ainda é
problemático) em relação ao czarismo, o mesmo regime seria vários passos para
traz para os povos democráticos do Ocidente.
Eis
algumas das razões porque abandonei o comunismo russo. Porque sou armênio,
porque sou brasileiro, porque sou um indivíduo livre, de mentalidade ocidental
e formação humanística, para quem um regime sem respeito à dignidade humana e
aos direitos democráticos não tem razão de ser.
Tendo
lido e visto o que vi, eu devia fazer uma escolha: entre permanecer fiel aos
dogmas do partido ou aos princípios do ideal de um mundo mais justo. Não tive
dúvidas. Escolhi a última Só abandonando a traição dos princípios do ideal eu
poderia ficar fiel ao meu ideal, a mim mesmo. Cristo já dizia que não se pode
servir a dois senhores ao mesmo tempo. Marx e Lênin também diziam o mesmo. E eu
também acho que não é possível ser fiel ao ideal da justiça, sendo fiel aos
dogmas de um regime e partido que são o oposto da democracia, humanismo e
justiça social.
Fonte:
Conspiratio 3
Livro: Mito e
Realidade sobre a União Soviética - BAZARIAN, Jacob.
Estou agradavelmente surpreso. Pudera tal crítica ser pública nas décadas de 70 e 80 quando queríamos revolução, luta armada, com a mesma ferocidade da direita. Não sabíamos, apenas acreditávamos; puro fideismo! Estou lendo o seu livro " O Problema da Verdade"
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