Por Hannah Arendt
Duas
guerras mundiais em uma geração, separadas por uma série ininterrupta de guerras
locais e revoluções, seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e de nenhuma
trégua para os vencedores, levaram à antevisão de uma terceira guerra mundial entre
as duas potências que ainda restavam. O momento de expectativa é como a calma que
sobrevém quando não há mais esperança. Já não ansiamos por uma eventual restauração
da antiga ordem do mundo com todas as suas tradições, nem pela reintegração das
massas, arremessadas ao caos produzido pela violência das guerras e revoluções
e pela progressiva decadência do que sobrou. Nas mais diversas condições e nas
circunstâncias mais diferentes, contemplamos apenas a evolução dos fenômenos — entre
eles o que resulta no problema de refugiados, gente destituída de lar em número
sem precedentes, gente desprovida de raízes em intensidade inaudita.
Nunca
antes nosso futuro foi mais imprevisível, nunca dependemos tanto de forças políticas
que podem a qualquer instante fugir às regras do bom senso e do interesse próprio
— forças que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padrões dos séculos anteriores.
É como se a humanidade se houvesse dividido entre os que acreditam na onipotência
humana (e que julgam ser tudo possível a partir da adequada organização das
massas num determinado sentido), e os que conhecem a falta de qualquer poder como
a principal experiência da vida.
A
análise histórica e o pensamento político permitem crer, embora de modo indefinido
e genérico, que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o ponto de ruptura.
Mesmo quando aparentemente melhor preservada, o que ocorre em certas partes do
mundo, essa estrutura não autoriza antever a futura evolução do que resta do século
xx, nem fornece explicações adequadas aos seus horrores. Incomensurável esperança,
entremeada com indescritível temor, parece corresponder melhor a esses acontecimentos
que o juízo equilibrado e o discernimento comedido. Mas os eventos fundamentais
do nosso tempo preocupam do mesmo modo os que creditam na ruína final e os que
se entregam ao otimismo temerário.
Este
livro foi escrito com mescla do otimismo temerário e do desespero temerário. Afirma
que o Progresso e a Ruína são duas faces da mesma medalha; que ambos resultam
da superstição, não da fé. Foi escrito com a convicção de serem passíveis de descoberta
os mecanismos que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo político
e espiritual num amálgama, onde tudo parece ter perdido seu valor específico, escapando
da nossa compreensão e tornando-se inútil para fins humanos. A passividade de
ceder ao processo de desintegração converteu-se em tentação irresistível, não somente
porque esse processo assumiu a espúria aparência de “necessidade histórica”, mas
também porque os valores em vias de destruição começaram a parecer inertes, exangues,
inexpressivos e irreais.
A
convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível pode levar-nos
a interpretar a história por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar
nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se
de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da
experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente
o fardo que o nosso século colocou sobre nós — sem negar sua existência, nem
vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com
atenção, e resistir a ela — qualquer que seja.
Assim,
deve ser possível, por exemplo, encarar e compreender o fato, chocante decerto,
de que fenômenos tão insignificantes e desprovidos de importância na política mundial
como a questão judaica e o antissemitismo se transformaram em agente catalisador,
primeiro, do movimento nazista; segundo, de uma guerra mundial; e, finalmente,
da construção dos centros fabris de morte em massa. Também há de ser possível
compreender a grotesca disparidade entre a causa e o efeito que compunham a essência
do imperialismo, quando dificuldades econômicas levaram, em poucas décadas, à
profunda transformação das condições políticas no mundo inteiro; a curiosa contradição
entre o “realismo”, como era cinicamente enaltecido pelos movimentos totalitários,
e o visível desdém desses sistemas por toda a textura da realidade; ou a irritante
incompatibilidade entre o real poderio do homem moderno (maior do que nunca, tão
grande que pode ameaçar a própria existência do seu universo) e a sua incapacidade
de viver no mundo que o seu poderio criou, e de lhe compreender o sentido.
A
tentativa totalitária da conquista global e do domínio total constituiu a
resposta destrutiva encontrada para todos os impasses. Mas a vitória totalitária
pode coincidir com a destruição da humanidade, pois, onde quer que tenha
imperado, minou a essência do homem. Assim, de nada serve ignorar as forças
destrutivas de nosso século. O problema é que a nossa época interligou de modo
tão estranho o bom e o mau que, sem a expansão dos imperialistas levada adiante
por mero amor à expansão, o mundo poderia
jamais ter-se tornado um só; sem o mecanismo político da burguesia que implantou
o poder pelo amor ao poder, as dimensões da força humana poderiam nunca ter
sido descobertas; sem a realidade fictícia dos movimentos totalitários, nos
quais — pelo louvor da força por amor à força — as incertezas essenciais do
nosso tempo acabaram sendo desnudadas com clareza sem par, poderíamos ter sido
levados à ruína sem jamais saber o que estava acontecendo.
E, se é
verdade que, nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto,
porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis), também
é verdade que, sem ele, poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical
do Mal. O antissemitismo (não apenas o ódio aos judes), o imperialismo (não
apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) — um após o
outro, um mais brutalmente que o outro — demonstraram que a dignidade humana
precisa de nova garantia, somente encontrável em novos princípios políticos e
em uma nova lei na terra, cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade,
mas cujo poder deve permanecer estritamente limitado, estabelecido e controlado
por entidades territoriais novamente definidas.
Já não
podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente
chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o mau e simplesmente considerá-lo um
peso morto, que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento. A corrente
subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição.
Essa é a realidade em que vivemos. E é por isso que todos os esforços de escapar
do horror do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda eventualmente
intacto ou no antecipado oblívio de um futuro melhor, são vãos.
Verão
de 1950
Fonte: Livros Gratis (PDF)