Por Carlos I.
S. Azambuja
Trecho memorável de uma obra em que Ayn
Rand mostra, de forma extremamente convincente, a inviabilidade de uma
sociedade baseada no princípio marxista "De cada um, conforme sua
capacidade, para cada um, conforme sua necessidade".
O trecho é longo. É parte de um romance
em que Ayn Rand conta, entre outras coisas, como uma fábrica de ponta e
extremamente produtiva é destruída por idéias igualitárias. É uma transcrição
das fls 510 a 517.
A maior parte do trecho é uma
explicação, por parte de um ex-empregado,
dada a uma mulher que o entrevistava, de porque a fábrica faliu.
Ironicamente, a fábrica se chamava Motores Século Vinte (Twentieth-Century
Motors). Trata-se de uma obra de ficção
- ma non troppo... O livro foi votado pelos leitores, na Internet, a obra de
ficção mais importante do século XX.
Foi uma coisa
que aconteceu na fábrica onde eu trabalhei durante vinte anos. Foi quando o
velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma
filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente
votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo,
votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem
isso, não. A gente pensava que queriam que a gente achasse que era bom. O plano
era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e receberia
conforme sua necessidade...
Aprovamos o tal
plano numa grande assembléia: nós éramos seis mil, todo mundo que trabalhava na
fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e
ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia
como plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro sabia. E quem tinha dúvidas
se sentia culpado e não dizia nada, porque do jeito como os herdeiros falavam,
quem fosse contra era desumano e assassino de criancinha. Disseram que esse
plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era
isso que a gente ouvia a vida inteira dos pais, professores e pastores, em
todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso é
que era certo e justo? Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o
que fez naquela assembléia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que
aconteceu conosco depois foi merecido.
Nós que
trabalhamos lá na Século Vinte durante aqueles quatro anos, somos homens
marcados. O que é que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto,
não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós
estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão.
Querem saber
como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar
água dentro de um tanque onde tem um cano no fundo puxando mais água do que
entra, e cada balde que se derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e
quanto mais se trabalha, mais exigem de nós, e no final estamos despejando
balde quarenta horas por semana, depois quarenta e oito, depois cinqüenta e
seis, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo
do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele,
para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda
vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até
as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até
escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles,
durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim.
De cada um,
conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade.
Nós somos uma grande
família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos no mesmo barco. Mas não
é todo mundo que passa dez horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que
fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de
quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais
são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de
um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando
que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu
trabalhei tanto e que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para
todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim
um iate também, se eu ainda tenho capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele
não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala
de visitas dele?
Pois é. . . .
Mas aí decidiram que ninguém tinha direito de julgar suas próprias capacidades
e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Tudo era votado em
assembléia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E imaginem o que
acontecia nessas assembléias. Bastou a primeira para a gente descobrir que todo
mundo tinha virado mendigo. Mendigos, esfarrapados, humilhados, todos nós,
porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos
nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho. O trabalho pertencia à
'família', e ele não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha
era a sua 'necessidade', e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas
necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até
os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a 'família'
lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e
não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.
Assim, a coisa
virou um concurso de misérias disputado por seis mil pedintes, cada um chorando
mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? Imaginem o que
aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem
levava a melhor?
Mas tem mais.
Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembléia. A produção da fábrica
tinha caído quarenta por cento naquele primeiro semestre, e aí concluiu-se que
alguém não tinha usado toda a sua'capacidade'. Quem? Como descobrir? A
'família' decidia isso no voto, também. Escolhiam no voto quais eram os
melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora
extra todas as noites durante os próximos seis meses. E sem ganhar nada mais,
porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a
necessidade.
Será necessário
explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos
virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa
capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a
gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado.
Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a
'família' não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para
cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica -- ou
por desleixo, porque ele não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura
incompetência -- quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no
domingo. Assim, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.
Havia um garoto
que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem
instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que
economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para
a 'família', não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com
isso. Era tudo pelo ideal, dizia ele. Mas quando foi eleito um dos mais capazes
e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano
seguinte, é claro, não teve nenhuma idéia brilhante.
A vida inteira
nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era
terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é? Nefasto? Pois
deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o
pior.
Não há maneira
melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que
é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais
depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única
saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos
capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que não se termina de pagar.
E trabalhar
para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo
mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada 'ajuda de custo para moradia e
alimentação', e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se
esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de
roupas no ano seguinte – Podia-se ou não ganhar uma'ajuda de custo para
vestimentas', dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser
operadas, ou tivessem mais filhos. E se não havia dinheiro para todo mundo
comprar roupas, então ficava-se sem roupa nova.
Havia um homem
que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que
seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no
segundo ano de vigência do plano, mas a'família' não quis dar ao homem uma
'ajuda de custo' para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia
poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos
entrarem para a faculdade -- e, para isso, era preciso primeiro pagar a escola
secundária dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem
morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo;
brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comuns entre nós.
Havia um
sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar
discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antigamente, ele
costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco
clássico. Pois não lhe deram nenhuma 'ajuda de custo' para comprar discos --
disseram que aquilo era 'luxo pessoal'. Mas, naquela mesma assembléia, votaram
a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de
oito anos, feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes -- isto era
uma 'necessidade médica', porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha
ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados.
O velho que
gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto
sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha
cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush: deu-lhe um soco que lhe
quebrou todos os dentes. Todos.
A bebida,
naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns mais, outros
menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os
prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que
não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar
discos clássicos nem caniços de pesca, mas se é para tomar um porre e esquecer,
faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas?
Hobbies?
Não havia
'ajuda de custo de entretenimento' para ninguém. O 'entretenimento' foi a
primeira coisa que eles cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de
reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer?
Até mesmo a nossa 'ajuda de custo de fumo' foi racionada a ponto de só
recebermos dois maços de cigarro por mês -- e isso, diziam eles, porque o
dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.
Os bebês eram o
único produto que havia em quantidades cada vez maiores -- porque as pessoas
não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se
preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade
da 'família'. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar
mais folgado por uns tempos era ganhar uma'ajuda de custo para bebês' -- ou
isso ou arranjar uma doença séria.
Não demorou
muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia
fazer tudo certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a
vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um
chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto
naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada
de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para pagar aquela
garfada, sabendo que a comida que comia não era sua por direito, sentindo a
vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, ser um pato e não um
sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado
sobre os ombros da 'família'. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de
responsabilidade, não podia nem casar nem ter filhos, pois não podia planejar
nada, prometer nada, contar com nada.
Mas os
indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças,
trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras
grávidas, para receber uma 'ajuda de custo de doença', inventaram todas as
doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas
roupas, seus móveis, suas casas -- pois não era a'família' que estava pagando?
Descobriram muito mais'necessidades' do que os outros -- desenvolveram um
talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.
Deus me livre!
Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que
punia aqueles que a observavam -- pelo fato de a observarem. Quanto mais se
tentava seguir essa lei, mais a gente sofria; quanto mais a violávamos, mais
lucrávamos. A honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do
próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os
desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por
quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos?
No começo
éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos
competentes, orgulhávamo-nos do nosso trabalho, e éramos empregados da melhor
fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores.
Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre
nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar
os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida.
A questão não
foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia
pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro -- e era isso que chamavam de
idéia moral!
Queriam que
trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os
parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se
eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar
-- que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o resto da vida
àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo
nos daríamos o trabalho de seguir em frente?
Não tínhamos
como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar
suas necessidades -- só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas
num lugar que era meio hospital, meio curral -- um lugar onde só incentivavam a
incompetência, as catástrofes, as doenças - burros de carga que só serviam às
necessidades que os outros afirmavam ter.
Amor fraternal?
Foi aí que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos.
Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que
gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa do outro, o passeio que um
dava com a família, a reforma que o outro fazia na sua casa -- tudo aquilo era tirado
de nós, era pago pelas nossas privações, nossa renúncias, nossa fome.
Um começou a
espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre as
suas necessidades, para cortar sua 'ajuda de custo' na próxima assembléia.
Começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado
clandestinamente um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com
o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro.
Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguns
saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando a
namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se
romperem. Não queríamos que ninguém se casasse: não queríamos mais dependentes
para alimentar.
Antigamente,
comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a
pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro no momento.
Agora, quando nascia uma criança, ficávamos sem falar com os pais. Para nós, os
bebês eram agora o que os gafanhotos são para os fazendeiros.
Antigamente,
ajudávamos quem tinha um doente na família. Agora . . . Vou contar só um caso.
Era a mãe de um homem que estava trabalhando conosco há quinze anos. Era uma
senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos
nós gostávamos dela, antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e
quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela
idade. O médico disse que ela teria que ser hospitalizada, para fazer um
tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser
removida para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não,
não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Ninguém comentava nada sobre o
assunto. A única coisa que eu sei -- e disso nunca vou me esquecer -- é que eu,
também, quando dei por mim estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos
perdoe! Era essa a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido
com a adoção do plano.
E quando a
gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já
pregou o princípio "de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme
sua necessidade". Era esse o segredo da coisa. De início, eu não entendia
como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo poderiam fazer um
erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direita -- quando
bastavam cinco minutos de reflexão para eles verem o que aconteceria quando
alguém tentasse pôr em prática essa idéia.
Agora eu sei
que eles não defendiam isso por erro. Ninguém faz um erro desse tamanho
inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não
têm como fazer essa idéia funcionar na prática e não têm um motivo que possa
explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro
motivo.
E nós também
não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na
primeira assembléia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas
besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas
nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos davam uma
oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha
de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim,
conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por
mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais
inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da
inteligência daqueles que eram melhores que ele.
Mas enquanto
ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe
eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que iam
querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador
que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma
limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo
viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma
geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano,
na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso, e então, quanto mais a idéia
nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.
Bem, tivemos o
que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Tínhamos
caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da
fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores
engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais qualificados. Quem
tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada
pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não
conseguiram agüentar muito tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores,
que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os
homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda
valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo.
Antigamente,
ninguém pedia demissão da Século Vinte, e a gente não conseguia se convencer de
que a Século Vinte não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais
pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria, aliás com razão.
Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem
firma respeitável. Todas as pequenas lojas com que negociávamos começaram a
sair de Starnesville depressa, e no final só restavam bares, cassinos e
salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que
recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos
necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a lista de fregueses
diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.
Antigamente, dizia-se
que a marca da Século Vinte era tão confiável quanto a marca de quilates num
lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que
eles pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais
e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder
sobrenatural que os manteria ricos, tal como havia enriquecido seu pai. Mas
quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar
uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum
defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um
motor nem dado, se ele ostentasse o selo da Século Vinte.
E, no final,
nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm
mesmo intenção de pagar. Mas Gerald Starnes, dopado por sua própria
publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo
que os empresários comprassem nossos motores, não porque eles fossem bons, mas
porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.
Àquela altura
qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam
conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina,
quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De
que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no
hospital? De que ela adiantaria para os passageiros de um avião, quando os
motores pifassem em pleno vôo? E se eles comprassem nossos produtos não por
causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto,
bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital,
o fabricante daquele avião?
Pois era esta a
lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo
o mundo. Se era este o resultado quando essa lei era aplicada numa única
cidadezinha onde todo mundo se conhecia, pode-se imaginar o que aconteceria em
escala mundial? Pode-se imaginar o que aconteceria se tivéssemos de viver e
trabalhar afetados por todos os desastres e toda a malandragem do mundo?
Trabalhar -- e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, nós é que
teríamos de pagar.
Trabalhar --
sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas
roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer
problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo.
Trabalhar --
sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não
tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade.
Trabalhar --
tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que nunca vamos
conhecer, cujas necessidades jamais vamos conhecer, cuja capacidade e preguiça
e desleixo e desonestidade são coisas que jamais vamos saber nem temos direito
de questionar -- enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai
consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESTA lei moral que se
deve aceitar? ISTO é um ideal moral?
Olhe, nós
tentamos -- e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira
assembléia à última, e acabou da única maneira que podia acabar: com a
falência. Na nossa última assembléia foi Ivy Starnes que tentou manter as
aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia
fracassado porque o resto do país não o havia aceitado; que uma única
comunidade não poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e
que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era
suficientemente boa para que ele desse certo.
Um rapaz -- o
mesmo que fora punido por dar uma boa idéia no primeiro ano -levantou-se,
enquanto todos os outros permaneciam calados, e andou até Ivy Starnes no
tablado. Não disse nada. Cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre
plano e a Século Vinte.
Frase de Ayn Rand
Frase de Ayn Rand
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