MEMÓRIAS DE UM
EX-ESCRITOR (XXIII)
Por Janer Cristaldo, segunda-feira, agosto 02, 2004
Em post passado, prometi comentar a covardia
de Erico Verissimo, em relação à grande peste do século. Quem acompanha minhas
crônicas no Midiasemmascara, já
conhece a história. Para quem não as acompanha, la revoilà. Quem
levantou a lebre foi Sérgio Faraco, em seu livro Lágrimas na Chuva. O livro relata período de pouco mais de ano
vivido pelo autor em Moscou, em 1963 e 64. "Depois de uma série de conflitos
com chefetes políticos ligados aos partidos brasileiro e soviético" -
diz-nos o editor na orelha - "Faraco foi internado em regime de reclusão,
sob pesada bateria de medicamentos, numa clínica de reeducação. Era este, na
época, um procedimento de rotina em relação àqueles que se rebelavam contra o
ultra-esquerdismo do Partido".
Ora, quais foram os gestos de rebeldia do heróico
mártir gaúcho? Pelo que lemos em sua memória, foram basicamente duas atitudes:
mantinha relações com uma russinha e insistia em escutar Wagner a todo volume
em seu dormitório. Fora isso, em uma viagem à Armênia, demonstrou insólita
coragem ao perguntar a um mandalete local como podiam avançar na automação do
que quer que fosse, se as moradias não dispunham de vasos sanitários e as
necessidades eram feitas nos quintais, em latrinas. A tradutora nem sabia o que
era latrina. Ou seja, os armênios não haviam chegado sequer ao conceito de
latrina. Em função disto, o rebelde escritor foi enviado a uma clínica de
reeducação, onde dispunha de quarto individual, com chuveiro e vaso sanitário
(um progresso em relação à Armênia) e mais uma enfermeira que vinha pegar-lhe a
mãozinha quando deprimido. Gulag classe A, com direito a cafuné. Pra dissidente
algum botar defeito.
Do alto desta omissão, quarenta anos nos
contemplam. Há quatro décadas, Faraco sentiu na carne o preço a ser pago, na
União Soviética, por pequenas molecagens. Escritor, não lhe terá sido difícil
imaginar o quanto custava qualquer discordância com a linha do Partido. Agora, já
em idade provecta, a tardia madalena alegretense demonstra sua coragem
denunciando fato ocorrido nos 60. Seu depoimento, se feito na época, seria de
extraordinário valor para sua geração. Seria o relato insuspeito de um
militante comunista que, em sua viagem iniciática ao paraíso soviético, fora
tratado como doente mental apenas por escapadelas a uma disciplina absurda,
típica de seminários católicos. Seria oportuníssimo, logo após 64.
Erico Veríssimo pergunta a Faraco se não pensava
escrever sobre sua estada na União Soviética. "Respondi que, de fato,
tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou
pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante
narrá-la, enquanto vivíamos, no Brasil, sob uma ditadura militar. Ele tinha
razão" - diz Faraco. Ora, os militares lutavam para que o Brasil não
virasse o imenso gulag que o futuro escritor então testemunhara. Em função de
um regime que jamais o pôs na prisão, mesmo sendo comunista, Faraco silencia
sobre o regime comunista que o internou em um hospital psiquiátrico, mesmo
sendo comunista.
A história se repete. Em 1929, o escritor romeno
Panaïti Istrati publicou Vers l'autre
flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. Os originais deste
livro levaram Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo:
"Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas
devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro.
Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as
publique jamais". Istrati teve suas Obras
Completas publicadas pela Gallimard, exceto Vers l'autre flamme. Que só foi republicado, na democrática Paris
... em 1980. Volto aos anos 60, Brasil. Erico Verissimo, conivente com a
barbárie comunista, repassa a Faraco o covarde conselho.
Escritor, Faraco intuiu o que Erico há muito já
intuíra. Se dissesse uma só palavrinha contra a Santa Madre Rússia, adeus
editoras, adeus honras literárias, adeus imprensa amiga, adeus resenhas e teses
universitárias. O gaúcho de Alegrete, que não teve sequer a hombridade de
despedir-se da humilde moscovita que o aquecera nos seus dias cinzas às margens
do Volga, baixa a crista. Mas seu livro tem um grande mérito: nos revela a
cumplicidade com a tirania do escritor gaúcho tido como campeão da liberdade.
Não por acaso, a universidade e imprensa gaúchas idolatram Erico.
A História é um lago que seca. Ao descerem, suas
águas trazem à tona monstros insuspeitos. Todos os escritores gaúchos foram
cúmplices da peste marxista, sem exceção. Dyonélio, por exemplo, após a
evidência dos gulags, passou a escrever sobre a antiga Grécia. Foi o mesmo
movimento espiritual de Faraco, que refugiou-se em Urartu, na Armênia. Josué
Guimarães foi caixeiro-viajante a serviço de Pequim e Moscou. Até as pedras da
Rua da Praia sabiam que estes senhores eram comunistas, mas ai de quem o
dissesse em público. Seria execrado como delator e expulso do rol dos vivos.
Covardes e omissos foram também todos os demais
que, sem pertencerem ao Partido, silenciaram sobre os crimes do comunismo.
Mário Quintana, por exemplo, refugiava-se em uma frase cômoda: "eu não
entendo de problemas sociais". Moacyr Scliar foi premiado pela ditadura de
Fidel Castro. Ou seja, desde há muito se preparava para entrar na Academia
Brasileira de Letras, aprazível reduto de viúvas do stalinismo. Já que estamos
comentando o assunto: filho de Verissimo, Verissiminho é. Luis Fernando, o
rebento, apóia toda ditadura, desde que de esquerda. Apenas dois gaúchos, em
todos os cem anos do século passado, ousaram escrever contra a barbárie. Um foi
o jornalista Orlando Loureiro, que publicou A Sombra do Kremlin, livro que comentei dois ou três capítulos
atrás. Procure nos sebos: editora Globo, 1954, dez anos antes da viagem do
alegretense deslumbrado. O outro é este que vos escreve, que tem denunciado o
marxismo desde os dias em que Faraco passeava pelas ruas da nova Jerusalém.
Fonte: Cristaldoblogspot
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