O Homem que
amava os cachorros
Por Carlos I.
S. Azambuja
O texto abaixo transcrito relata um
trecho do treinamento a que foi submetido Ramon Mercader, o homem que
assassinou Trotski, em Coyoacán/México, em, 21 de agosto de 1940).
Foi extraído das fls 229 a 232 do livro “O Homem que Amava os Cachorros”,
do premiadíssimo escritor cubano Leonardo Padura. O livro tem 589 fls. Não é
uma obra de ficção. Narra a trajetória de Ramon Mercader que, como militante
comunista, recebeu treinamento na União Soviética e, por ordem de Stalin, a
tarefa de eliminar Leon Trotski. O livro foi editado em vários países: Espanha,
Portugal, França, Estados Unidos, Alemanha e no Brasil. Recebeu também diversos
prêmios internacionais.
A seguir um extrato da narrativa
sobre seu treinamento pela NKVD (em russo: НКВД, Народный
комиссариат внутренних дел, translit. Narodniy komissariat vnutrennikh diel;
em português: Comissariado do Povo para Assuntos Internos). Foi o Ministério do
Interior da URSS:
O marechal Koniev, chefe da
instalação secreta na qual foi ministrado treinamento a Ramon Mercader, olhou
para o novo aluno e disse:
- Até que se decida a sua nova identidade você será o Soldado 13. E, com um gesto quase teatral, rasgou o passaporte, para sobressalto de Ramon, que sentiu nitidamente como se transformava num fantasma sem nome, sem bússola, sem retrocesso, tal como confirmaram as últimas palavras do marechal. Não será ninguém.
- Até que se decida a sua nova identidade você será o Soldado 13. E, com um gesto quase teatral, rasgou o passaporte, para sobressalto de Ramon, que sentiu nitidamente como se transformava num fantasma sem nome, sem bússola, sem retrocesso, tal como confirmaram as últimas palavras do marechal. Não será ninguém.
Um dos assessores do marechal falou:
Você imagina a honra que representa ser o escolhido para tirar do mundo aquela
escória traidora de Trotski? Sabia que aquele renegado trabalha há 9 anos para
destruir a revolução e é uma ratazana imunda que se vendeu aos alemães e aos
japoneses? Que chegou a planejar envenenamentos em massa de operários
soviéticos, para semear o terror no país? Que sua filosofia aventureira pode
pôr em perigo o futuro do proletariado aqui, lá na Espanha e no mundo inteiro?
- O que não entendo é porque se
esperou até agora para acabar com esse traidor, disse Ramon.
- Você não precisa entender nada. Já
disse, Stalin tem suas razões, e nós, o dever de obediência. A propósito,
quantas vezes você ouviu nestes dias a palavra obediência?
- Não sei. Várias.
- E vai voltar a ouvir milhares de
vezes, porque é a mais importante.. Em seguida, vêm depois a fidelidade e a
discrição. Essa é a santíssima trindade e você deve gravá-la na testa porque
depois de ter ouvido o que eu lhe disse (preparar a saída de Trotski deste
mundo), como deve ter percebido, só há dois caminhos para você agora: um vai na
direção da glória e o outro na de um campo de trabalho, onde você não faz a
menor idéia do pouco que vale a vida de um pobre coitado que nem sequer tem
nome e é considerado um traidor...
Após entrarem na cabana, situada no
bosque onde se realizava o treinamento, o tenente Karmin, disse, num francês
claro:
- Soldado 13: antes de começar o
treinamento será submetido a diversas provas físicas e psicológicas para termos
um diagnóstico exato da sua pessoa. Se os resultados forem satisfatórios, como
esperamos, você vai começar a receber aulas de história do Partido Bolchevique,
de política internacional, de marxismo-leninismo e de psicologia. Também lhe
ensinaremos técnicas de sobrevivência, de interrogatório, de luta corpo a
corpo, aulas práticas cm várias armas de fogo e paraquedismo.
A parte mais importante do treino,
porém, será o trabalho com a personalidade. Vai aprender, antes de tudo, que
nunca mais voltará a ser a pessoa que você foi antes de chegar a esta base.
Vamos limpar você por dentro.É um trabalho lento e difícil, mas, se for capaz
de vencê-lo, você estará em condições de receber qualquer uma das
personalidades que for escolhida para esta missão. Essa personalidade ainda não
está determinada, mas, seja ela qual for, você nunca mais voltará a ser
espanhol, nem deverá falar em espanhol, muito menos em catalão. Por ora, falará
em francês e pensará em francês. Trataremos que até sonhe em francês. Nossos
especialistas vão ajudá-lo nesse objetivo, mas, repito, a sua vontade é
essencial para ser bem sucedido.
O Soldado 13 pensou que as
expectativas fossem por demais elevadas, mas concordou em silêncio, pois já
pressentia que todo aquele conhecimento poderia ser útil para a sua missão.
(...) Em poucas semanas, o Soldado 13
começou a notar uma mudança nas cores de sua consciência. Enquanto as aulas teóricas
enchiam seu cérebro de argumentos filosóficos, históricos e políticos para que
sua fé se tornasse inabalável, as sessões com os psicólogos iam drenando sua
mente dos lastros de experiências, lembranças, temores e ilusões, forjados ao
longo de uma via e de um passado que se desprendia como se o esfolassem.
Espantava-o comprovar como a sua
história pessoal começava a ser uma nuvem confusa e que até acontecimentos
recentes, como as últimas recomendações que lhe fizeram, pareciam tão nebulosas
que às vezes se perguntava se não os teria vivido noutra existência, remota e
turva.
Foi nesses meses que Ramon começou realmente a deixar de ser Ramon e só voltaria a sê-lo quando o homem em que o transformaram estivesse se asfixiando e, para salvá-lo, fosse necessário vir à tona o velho Ramon Mercader. Mas nunca mais voltou a ser o mesmo Ramon Mercader del Rio...
Foi nesses meses que Ramon começou realmente a deixar de ser Ramon e só voltaria a sê-lo quando o homem em que o transformaram estivesse se asfixiando e, para salvá-lo, fosse necessário vir à tona o velho Ramon Mercader. Mas nunca mais voltou a ser o mesmo Ramon Mercader del Rio...
O homem que em seu passado nebuloso
tinha adotado, com o seu romantismo juvenil, os ideais comunistas, começava
agora a incorporar uma fé cientificamente sustentada, cuja materialização era a
nova sociedade soviética, onde o homem atingira, finalmente, o grau máximo de
sua dignidade. A luta revolucionária, intuitiva e desordenada, que empreendera
contra a oligarquia, a burguesia, o fascismo e os traidores, caracterizou-se,
com uma nova coerência e fundamentos na necessidade histórica da luta do
proletariado para materializar a utopia da igualdade e na missão do Partido de
dirigir essa grande contenda.
Aprendeu que, se
aquela luta, por momentos, podia parecer impiedosa, era sempre justa. Nas
raízes de cada uma dessas idéias espreitavam as teorias e práticas stalinistas,
a sabedoria e a visão estratégica do camarada Stalin, o secretário-geral que se
erguia sobre a história, à frente dos proletários do mundo, como o herdeiro
genial de Marx, Engels e Lenin. A convicção de que o futuro da humanidade
pertencia ao socialismo transformou-se em seu credo e aprendeu que, para que a
União Soviética atingisse esse futuro, qualquer sacrifício, qualquer ação
estavam historicamente justificados e não era admissível a menor dissidência.
Nesse ponto, incorporaram aos seus estudos as lições de ódio classista e,
visualizando esses inimigos de classe, suas convicções tornaram-se mais
sólidas.
(...) Quando, no fim
de novembro, Grigoriev reapareceu na base, o Soldado 13 já era, até onde os
treinadores podiam certificar, um homem de mármore, convencido da necessidade
de cumprir qualquer missão de que fosse incumbido, forjado para resistir em
silêncio a assédios diversos, dotado de um ódio visceral aos inimigos
trotskistas e apto a ser transformado na pessoa que lhe atribuíssem.
A satisfação de
seus instrutores era visível, porque o diamante bruto descoberto por Grigoriev
parecia ser agora uma pedra maravilhosa, brilhante em todas as suas faces: a
política, a filosófica, a lingüística, a física e a psicológica, blindada com a
melhor das couraças, porque era um homem capaz de guardar segredo, de explorar
seu ódio, de não sentir compaixão e de morrer pela causa.Uma máquina obediente
e impiedosa.
Foi essa a
transformação por que passou Ramon Mercader Del Rio, o homem que assassinou
Leon Trotski.
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