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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS – Autor LEONARDO PADURA

O Homem que amava os cachorros

Por Carlos I. S. Azambuja

O texto abaixo transcrito relata um trecho do treinamento a que foi submetido Ramon Mercader, o homem que assassinou Trotski, em  Coyoacán/México, em, 21 de agosto de 1940). Foi extraído das fls 229 a 232 do livro “O Homem que Amava os Cachorros”, do premiadíssimo escritor cubano Leonardo Padura. O livro tem 589 fls. Não é uma obra de ficção. Narra a trajetória de Ramon Mercader que, como militante comunista, recebeu treinamento na União Soviética e, por ordem de Stalin, a tarefa de eliminar Leon Trotski. O livro foi editado em vários países: Espanha, Portugal, França, Estados Unidos, Alemanha e no Brasil. Recebeu também diversos prêmios internacionais.

A seguir um extrato da narrativa sobre seu treinamento pela NKVD (em russo: НКВД, Народный комиссариат внутренних дел, translit. Narodniy komissariat vnutrennikh diel; em português: Comissariado do Povo para Assuntos Internos). Foi o Ministério do Interior da URSS:

O marechal Koniev, chefe da instalação secreta na qual foi ministrado treinamento a Ramon Mercader, olhou para o novo aluno e disse:
- Até que se decida a sua nova identidade você será o Soldado 13. E, com um gesto quase teatral, rasgou o passaporte, para sobressalto de Ramon, que sentiu nitidamente como se transformava num fantasma sem nome, sem bússola, sem retrocesso, tal como confirmaram as últimas palavras do marechal. Não será ninguém.

Um dos assessores do marechal falou: Você imagina a honra que representa ser o escolhido para tirar do mundo aquela escória traidora de Trotski? Sabia que aquele renegado trabalha há 9 anos para destruir a revolução e é uma ratazana imunda que se vendeu aos alemães e aos japoneses? Que chegou a planejar envenenamentos em massa de operários soviéticos, para semear o terror no país? Que sua filosofia aventureira pode pôr em perigo o futuro do proletariado aqui, lá na Espanha e no mundo inteiro?

- O que não entendo é porque se esperou até agora para acabar com esse traidor, disse Ramon.

- Você não precisa entender nada. Já disse, Stalin tem suas razões, e nós, o dever de obediência. A propósito, quantas vezes você ouviu nestes dias a palavra obediência?

- Não sei. Várias.

- E vai voltar a ouvir milhares de vezes, porque é a mais importante.. Em seguida, vêm depois a fidelidade e a discrição. Essa é a santíssima trindade e você deve gravá-la na testa porque depois de ter ouvido o que eu lhe disse (preparar a saída de Trotski deste mundo), como deve ter percebido, só há dois caminhos para você agora: um vai na direção da glória e o outro na de um campo de trabalho, onde você não faz a menor idéia do pouco que vale a vida de um pobre coitado que nem sequer tem nome e é considerado um traidor...

Após entrarem na cabana, situada no bosque onde se realizava o treinamento, o tenente Karmin, disse, num francês claro:

- Soldado 13: antes de começar o treinamento será submetido a diversas provas físicas e psicológicas para termos um diagnóstico exato da sua pessoa. Se os resultados forem satisfatórios, como esperamos, você vai começar a receber aulas de história do Partido Bolchevique, de política internacional, de marxismo-leninismo e de psicologia. Também lhe ensinaremos técnicas de sobrevivência, de interrogatório, de luta corpo a corpo, aulas práticas cm várias armas de fogo e paraquedismo.

A parte mais importante do treino, porém, será o trabalho com a personalidade. Vai aprender, antes de tudo, que nunca mais voltará a ser a pessoa que você foi antes de chegar a esta base. Vamos limpar você por dentro.É um trabalho lento e difícil, mas, se for capaz de vencê-lo, você estará em condições de receber qualquer uma das personalidades que for escolhida para esta missão. Essa personalidade ainda não está determinada, mas, seja ela qual for, você nunca mais voltará a ser espanhol, nem deverá falar em espanhol, muito menos em catalão. Por ora, falará em francês e pensará em francês. Trataremos que até sonhe em francês. Nossos especialistas vão ajudá-lo nesse objetivo, mas, repito, a sua vontade é essencial para ser bem sucedido.

O Soldado 13 pensou que as expectativas fossem por demais elevadas, mas concordou em silêncio, pois já pressentia que todo aquele conhecimento poderia ser útil para a sua missão.

(...) Em poucas semanas, o Soldado 13 começou a notar uma mudança nas cores de sua consciência. Enquanto as aulas teóricas enchiam seu cérebro de argumentos filosóficos, históricos e políticos para que sua fé se tornasse inabalável, as sessões com os psicólogos iam drenando sua mente dos lastros de experiências, lembranças, temores e ilusões, forjados ao longo de uma via e de um passado que se desprendia como se o esfolassem.

Espantava-o comprovar como a sua história pessoal começava a ser uma nuvem confusa e que até acontecimentos recentes, como as últimas recomendações que lhe fizeram, pareciam tão nebulosas que às vezes se perguntava se não os teria vivido noutra existência, remota e turva.
Foi nesses meses que Ramon começou realmente a deixar de ser Ramon e só voltaria a sê-lo quando o homem em que o transformaram estivesse se asfixiando e, para salvá-lo, fosse necessário vir à tona o velho Ramon Mercader. Mas nunca mais voltou a ser o mesmo Ramon Mercader del Rio...

O homem que em seu passado nebuloso tinha adotado, com o seu romantismo juvenil, os ideais comunistas, começava agora a incorporar uma fé cientificamente sustentada, cuja materialização era a nova sociedade soviética, onde o homem atingira, finalmente, o grau máximo de sua dignidade. A luta revolucionária, intuitiva e desordenada, que empreendera contra a oligarquia, a burguesia, o fascismo e os traidores, caracterizou-se, com uma nova coerência e fundamentos na necessidade histórica da luta do proletariado para materializar a utopia da igualdade e na missão do Partido de dirigir essa grande contenda.

Aprendeu que, se aquela luta, por momentos, podia parecer impiedosa, era sempre justa. Nas raízes de cada uma dessas idéias espreitavam as teorias e práticas stalinistas, a sabedoria e a visão estratégica do camarada Stalin, o secretário-geral que se erguia sobre a história, à frente dos proletários do mundo, como o herdeiro genial de Marx, Engels e Lenin. A convicção de que o futuro da humanidade pertencia ao socialismo transformou-se em seu credo e aprendeu que, para que a União Soviética atingisse esse futuro, qualquer sacrifício, qualquer ação estavam historicamente justificados e não era admissível a menor dissidência. Nesse ponto, incorporaram aos seus estudos as lições de ódio classista e, visualizando esses inimigos de classe, suas convicções tornaram-se mais sólidas.

(...) Quando, no fim de novembro, Grigoriev reapareceu na base, o Soldado 13 já era, até onde os treinadores podiam certificar, um homem de mármore, convencido da necessidade de cumprir qualquer missão de que fosse incumbido, forjado para resistir em silêncio a assédios diversos, dotado de um ódio visceral aos inimigos trotskistas e apto a ser transformado na pessoa que lhe atribuíssem.

A satisfação de seus instrutores era visível, porque o diamante bruto descoberto por Grigoriev parecia ser agora uma pedra maravilhosa, brilhante em todas as suas faces: a política, a filosófica, a lingüística, a física e a psicológica, blindada com a melhor das couraças, porque era um homem capaz de guardar segredo, de explorar seu ódio, de não sentir compaixão e de morrer pela causa.Uma máquina obediente e impiedosa.

Foi essa a transformação por que passou Ramon Mercader Del Rio, o homem que assassinou Leon Trotski.

Fonte: AlertaTotal

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