Memória não retém atrocidades do
comunismo
Por Míriam
Martinho
23 de agosto é o
Dia da Memória das vítimas de todos os regimes autoritários e totalitários, estabelecido porque, em 23/08/1939,
Hitler e Stálin, firmaram o pacto nazi-comunista de divisão da Europa. Mais
infos: http://bit.ly/mS3ag3
Entretanto, apesar dos laços
familiares que unem os dois monstros sanguinários do século passado, nazismo e
comunismo, apenas o nazismo foi definido como o Mal encarnado, mas não seu
irmão comunista. Tal fato tem possibilitado não só a falta de punição para os
criminosos vermelhos como também a permanência de suas ideias, entre nós, como
algo aceitável.
Como uma homenagem às vítimas do terror comunista,
mais de 100 milhões de pessoas (as cifras vêm aumentado com novas descobertas
de arquivos), transcrevo abaixo texto do cientista político francês, Alain
Besançon, que explica os porquês dessa diferença de tratamento entre os dois
gêmeos malignos. É longo, mas vale a pena a leitura. Notas ao fim do texto.
Memória não retém atrocidades do comunismo
Apesar de comunismo e nazismo serem `gêmeos
heterozigotos', a memória histórica só registra os horrores nazistas, enquanto
os comunistas caem no esquecimento
ALAIN BESANÇON[I] – Especial[II]
Existe um acordo bastante geral entre os historiadores sobre o grau de conaturalidade entre o comunismo do tipo bolchevique e o nacional-socialismo. Acho feliz a expressão de Pierre Chaunu: gêmeos heterozigotos. Essas duas ideologias assumiram o poder no século 20[1].
Existe um acordo bastante geral entre os historiadores sobre o grau de conaturalidade entre o comunismo do tipo bolchevique e o nacional-socialismo. Acho feliz a expressão de Pierre Chaunu: gêmeos heterozigotos. Essas duas ideologias assumiram o poder no século 20[1].
Elas têm por objetivo chegar a uma
sociedade perfeita, extirpando o princípio mau que se opõe a isso. Em um caso o
princípio maligno é a propriedade e, conseqüentemente, os proprietários, e
depois, como o mal subsiste após a "liquidação enquanto classe"
destes, a totalidade dos homens, corrompidos pelo espírito do
"capitalismo", que acaba de se insinuar dentro do próprio partido
comunista. No outro caso, o princípio maligno está localizado nas raças ditas
inferiores, em primeiro lugar os judeus, e depois, uma vez que o mal continua a
subsistir após seu extermínio, é preciso persegui-lo em outras raças, incluindo
a própria "raça ariana", cuja "pureza" está poluída.
Comunismo e nazismo invocam para sua legitimidade a autoridade da ciência.
Propõem-se a reeducar a humanidade e criar um homem novo.
Essas duas ideologias dizem-se
filantrópicas. O nacional-socialismo quer o bem do povo alemão e declara
prestar serviço à humanidade, exterminando os judeus. O comunismo leninista
quer diretamente o bem da humanidade inteira.
É o universalismo do comunismo que lhe
confere uma vantagem imensa sobre o nazismo, cujo programa não é exportável. As
duas doutrinas propõem ideais elevados, próprios para suscitar devoção
entusiasta e atos heroicos. Elas ditam, entretanto, também o direito e o dever
de matar. Para citar Chateaubriand e suas palavras aqui proféticas: "No
fundo desses diversos sistemas repousa um remédio heróico confesso ou
subentendido: este remédio é matar[2]." E Victor Hugo: "Você pode
matar este homem com tranquilidade."
Ou categorias inteiras de homens. Foi
o que essas doutrinas fizeram quando acederam ao poder, a uma velocidade
desconhecida na história. É por isso que, aos olhos daqueles que são estranhos
ao sistema, nazismo e comunismo são criminosos. Igualmente criminosos? Por ter
estudado a ambos e conhecendo os recordes de intensidade no crime do nazismo (a
câmara de gás) e em extensão do comunismo (mais de 70 milhões de mortes), o
gênero de perversão das almas e dos espíritos operada pelos dois, creio que não
devemos entrar nessa discussão perigosa. E que é preciso responder simplesmente
e com firmeza: sim, igualmente criminosos.
UMA PERGUNTA
O que indagamos é o seguinte: como é
possível nos dias de hoje que a memória histórica os trate com desigualdade e a
ponto de parecer esquecer o comunismo? A respeito desta desigualdade não
precisamos nos estender. Desde 1989, a oposição polonesa, liderada pelo primaz
da Igreja Católica, recomendava o esquecimento e o perdão.
Na maioria dos países que saíram do
comunismo nunca se falou em castigar os responsáveis que haviam matado, privado
da liberdade, arruinado, embrutecido seus súditos durante duas ou três
gerações. Salvo na Alemanha Oriental e na República Checa, os comunistas foram
autorizados a continuar seu jogo político, o que lhes permitiu retomar o poder
aqui e ali. Na Rússia e em outras repúblicas, os membros do corpo diplomático e
da polícia foram mantidos. No Ocidente, essa anistia de fato foi julgada
favoravelmente.
Comparou-se a confirmação da
nomenklatura à evolução dos antigos jacobinos.
Há algum tempo, a mídia voltou a
falar naturalmente da "epopéia do comunismo". [3] O passado
kominterniano do Partido Comunista, devidamente exposto e documentado, não o
impede de ser aceito pela democracia francesa.
Em comparação, a damnatio memoriae
(supressão da memória do condenado à morte por crime infamante) do nazismo,
longe de conhecer a menor prescrição, parece agravar-se todos os dias. A vasta
biblioteca aumenta a cada ano.
Museus, exposições alimentam - e com
razão - o horror do crime.[4]
Consultemos, na Minitel, o serviço de
documentação de um grande vespertino. [5] Selecionemos a partir de
palavras-chave os "assuntos", que foram processados de 1990 a 14 de
junho de 1997, dia de minha consulta. Para "nazismo", havia 480
ocorrências. Para "stalinismo", 7. Para "Auschwitz", 105.
Para "Kolyma", 2, para "Magadan", 1, para
"Koroupaty", 0. Para "fome na Ucrânia" (5 a 6 milhões de
mortos, em 1933), 0. Essa pesquisa só tem um valor indicativo.
Alfred Grosser, a respeito de seu
livro La Mémoire et L'Oubli (A Memória e o Esquecimento), declarava em
1989: "O que peço é que quando pesamos a responsabilidade dos crimes
passados, apliquemos os mesmos critérios a todos."[6] É verdade, mas
é muito difícil e é como simples historiador e não como juiz que eu queria hoje
apenas sine ira ac studio (sem ira
nem parcialidade), tentar interpretar os fatos. Não posso sonhar em esgotar o
assunto. Mas posso pelo menos enumerar uma lista não limitativa de fatores.
SETE EXPLICAÇÕES
1 - O nazismo é mais bem conhecido que
o comunismo porque o armário de cadáveres foi aberto pelas tropas aliadas e
porque vários povos europeus ocidentais tiveram com ele uma experiência direta.
Perguntei com freqüência a platéias de estudantes se tinham tomado conhecimento
da fome artificial organizada na Ucrânia em 1933. Eles nunca haviam ouvido
falar nisso. O crime nazista foi principalmente físico. Não contaminou
moralmente suas vítimas e suas testemunhas, das quais não se exigia uma adesão
ao nazismo. Ele é portanto demarcável, flagrante. A câmara de gás concebida
para exterminar artificialmente uma porção delimitada da humanidade é um fato
único. O Gulag, o Laogai continuam envoltos em mistério e permanecem como
objeto distante, indiretamente conhecido. Uma exceção: o Camboja, cujas pilhas
de mortos descobrimos na atualidade[7].
2 - O povo judeu assumiu a memória da
Shoah. É para ele uma obrigação moral que se inscrevia na longa memória de
perseguições: uma obrigação religiosa ligada ao louvor ou à interrogação
apaixonada, à maneira de Jó, do Senhor que prometeu proteger seu povo e pune a
injustiça e o crime. A humanidade inteira deve, portanto, agradecer à memória
judia por ter conservado piedosamente os arquivos da Shoah[8]. O enigma existe
para os povos que esqueceram - e falarei disso no momento certo. Acrescentemos
o fato de que o mundo cristão procede desde esse acontecimento a um exame de
consciência e sente-se intimamente atingido por uma ferida indelével.[9]
3 - A inclusão do nazismo e do
comunismo no campo magnético polarizado pelas noções de direita e de esquerda.
O fenômeno é complexo. De um lado, a idéia de esquerda acompanha a entrada
sucessiva das classes sociais no jogo político democrático. Mas é preciso
observar que a promoção da classe operária americana excluiu a idéia
socialista, e a classe operária inglesa, alemã, escandinava, espanhola, ao
mesmo tempo que aumentava seu poder, opôs uma recusa majoritária à idéia
comunista. Foi apenas na França e na Checoslováquia, imediatamente antes da
guerra, e mais tarde na Itália, que o comunismo pode pretender se identificar
com o movimento operário e tornar-se, assim, um dos membros de direito da
esquerda. Acrescentemos que na França, como lembrou François Furet,
historiadores como Mathiez, admiradores da Grande Revolução, fizeram
imediatamente um paralelo entre Outubro de 1917 e 1792, comparando o terror
bolchevique com o terror jacobino.
Por outro lado, muitos historiadores
de antes da guerra tinham uma consciência viva das raízes socialistas ou
proletárias do fascismo italiano e do nazismo alemão. Invoco o testemunho de
Elie Halévy em seu livro clássico, História do Socialismo Europeu,
publicado em 1937. O capítulo III da quinta parte é dedicado ao socialismo na
Itália fascista. O capítulo IV, ao nacional-socialismo. Este último regime, ao
dizer-se anticapitalista, despojando ou eliminando as antigas elites; ao
conferir a si próprio uma forma revolucionária, tinha algum motivo para constar
em uma história do socialismo, o que hoje seria inconcebível.
4 - A guerra, ao amarrar uma aliança
militar entre as democracias e a União Soviética, enfraqueceu as defesas
imunológicas ocidentais contra a idéia de comunismo, apesar de serem muito
fortes no momento do pacto Hitler-Stalin, e provocou uma espécie de bloqueio
intelectual. Para empreender uma guerra com o coração, uma democracia precisa
que seu aliado tenha um certo grau de respeitabilidade; se necessário, ela lhe
empresta. O heroísmo militar soviético assumia, encorajado por Stalin, uma
forma puramente patriótica e a ideologia comunista, mantida na reserva, ficava
escondida. Ao contrário da Europa Oriental, a Europa Ocidental não havia tido a
experiência direta da chegada do Exército Vermelho. Esta foi, portanto, vista
como libertadora, da mesma forma que os outros exércitos aliados, o que não
correspondia à visão dos bálticos, nem dos poloneses. Os soviéticos foram
juízes em Nuremberg.[10] As democracias concordaram com sacrifícios muito
pesados para abater o regime nazista. Só aceitaram depois sacrifícios mais
leves para conter o regime soviético e, por fim, para ajudá-lo a manter-se,
movidas pelo afã da estabilidade. O nazismo desabou por si mesmo, e sobre seu
próprio vazio, sem que as democracias tivessem muito a ver com isso. Sua
atitude não podia ser a mesma, nem seu julgamento igual nem sua memória
imparcial.
5 - Um dos grandes sucessos do regime
soviético é ter difundido e imposto pouco a pouco sua própria classificação
ideológica dos regimes políticos modernos. Lenin os reduzia à oposição entre
socialismo e o capitalismo. Até os anos 30, Stalin conservou essa dicotomia. O
capitalismo, também chamado de imperialismo, englobava os regimes liberais, os
regimes social-democratas, os regimes fascistas e, finalmente, o
nacional-socialismo. Isso permitia aos comunistas alemães equilibrar a balança
entre os "social-fascistas" e os nazistas. Mas, ao decidir a política
dita das frentes populares, a classificação passou a ser a seguinte: o
socialismo (ou seja, o regime soviético), as democracias burguesas (liberais e
social-democratas) e finalmente o fascismo. Sob o nome de fascismo estavam
agrupados o nazismo, o fascismo de Mussolini, os diversos regimes autoritários
que dominavam na Espanha, em Portugal, na Áustria, na Hungria, na Polônia, etc.
e, finalmente, as extremas direitas dos regimes liberais. Uma cadeia contínua
ligava, por exemplo, Chiappe a Hitler, passando por Franco, Mussolini, etc. A
especificidade do regime nazista foi apagada. Além disso, ele estava fixado à
direita, sobre a qual projetava sua luz negra. Tornou-se a direita absoluta,
enquanto o sovietismo era a esquerda absoluta.
O fato espantoso é que, num país como
a França, essa classificação tenha se incrustado na consciência histórica.
Consideremos os manuais franceses de história, destinados ao ensino secundário
e superior. A classificação é geralmente a seguinte: o regime soviético; as
democracias liberais, com sua esquerda e sua direita; os fascismos, ou seja o
nazismo, o fascismo italiano, o franquismo espanhol, etc.
É uma versão atenuada da vulgata
soviética. Em compensação, não encontramos com freqüência nesses manuais a
classificação correta, sobre a qual os historiadores atuais estão de acordo,
mas que havia sido proposta desde 1951 por Hannah Arendt, ou seja: o conjunto
dos dois únicos regimes totalitários, comunismo e nazismo, os regimes liberais,
os regimes autoritários (Itália, Espanha, Hungria, América Latina) que dizem
respeito às categorias clássicas da ditadura e da tirania descritas desde
Aristóteles.[11]
O mal sempre esteve centrado nos
nazistas
A memória do comunismo permanece
confusa, mas a das atrocidades na Alemanha é recorrente
6 - A fraqueza dos grupos capazes de
conservar a memória do comunismo.
O nazismo durou 12 anos. O comunismo
europeu, dependendo dos países, entre 50 e 70 anos. A duração tem um efeito
auto-anistiante. Durante esse tempo imenso, a sociedade civil foi atomizada, as
elites foram sucessivamente destruídas, substituídas, reeducadas. Todo mundo,
ou quase, de cima para baixo, adulterou, traiu, degradou-se moralmente. E, mais
grave ainda, a maior parte daqueles que teriam condições de pensar foi impedida
de conhecer sua história e perdeu a capacidade de análise. Ao ler a literatura
russa de oposição, que é a única literatura verdadeira do país, ouvimos uma
queixa pungente, a expressão comovente de um desespero infinito, mas quase
nunca encontramos uma análise racional.[12] A consciência do comunismo é
dolorosa, mas permanece confusa.
Hoje, os jovens historiadores russos
interessam-se pouco por esse período condenado ao esquecimento e ao repúdio. O
Estado, aliás, esconde os arquivos. O único setor que poderia ter conservado a
memória lúcida do comunismo é o da dissidência, nascida por volta de 1970. Mas
ela se decompôs rapidamente em 1991 e não foi capaz de participar do novo poder.
Foi por essa razão que sua tentativa de criar um memorial não deitou raízes nem
pôde desenvolver-se.
É de fato necessário que o órgão que
tem por função conservar a memória atinja uma certa massa crítica, pelo número,
o poder, a influência. Os armênios não atingiram de forma alguma uma certa
massa crítica.[13] E menos ainda os ucranianos, os casaques, os chechenos, os
tibetanos, sem falar de tantos outros.
CONSCIÊNCIA MORAL
Nada é tão problemático, após a
dissolução de um regime totalitário, quanto a reconstituição da consciência
moral e da capacidade intelectual normais de um povo. A esse respeito a
Alemanha pós-nazista encontrava-se em melhor posição que a Rússia
pós-soviética. A sociedade civil não teve tempo de ser destruída em
profundidade. Julgada, punida, desnazificada pelos Exércitos ocidentais, ela
foi capaz de acompanhar esse movimento de purificação, julgar-se a si mesma,
lembrar-se e arrepender-se.
Não foi assim na Europa Oriental, e o
Ocidente tem sua parte de responsabilidade nisso. Quando os comunistas russos
transformaram sua posse geral dos bens em propriedade legítima, quando
legitimaram seu poder de fato pelo sufrágio universal, quando substituíram o
leninismo pelo nacionalismo mais chauvinista, o Ocidente julgou inoportuno
pedir-lhes explicações. Foi o pior que poderiam ter feito pela Rússia. A
ubiqüidade das estátuas de Lenin nas praças públicas da Rússia é apenas o sinal
visível de um envenenamento das almas cuja cura levará anos.
ACIDENTE METEOROLÓGICO
Do lado ocidental, a vulgata histórica
deixada pelo Komintern das frentes populares está longe de ser apagada. O fato
de a idéia leninista ter sido envolvida pela idéia de esquerda, que teria
todavia horrorizado Kautski, Bernstein, Léon Blum, Bertrand Russell e mesmo
Rosa Luxemburgo, faz com que hoje essa idéia seja equiparada a um avatar
infeliz, ou a uma espécie de acidente meteorológico dessa mesma esquerda, e
agora que ela desapareceu, permanece como um projeto respeitável que não deu
certo.
7 - A amnésia do comunismo leva à
hipermnésia do nazismo e, reciprocamente, quando a memória simples e justa
basta para condenar um e outro. É um traço da má consciência ocidental, há
séculos, que o centro do mal absoluto deve encontrar-se em seu seio. A opinião
mudou sobre essa localização. O mal se localizou umas vezes na África do Sul do
apartheid, na América da Guerra do Vietnã. Mas sempre esteve centralizado na
Alemanha nazista. [14]
A Rússia, a Coréia, a China e Cuba
eram sentidas como externas, ou empurradas para fora na medida em que se
preferia desviar os olhos. O vago remorso que acompanhava esse abandono era
compensado por uma vigilância, uma concentração ferrenha da atenção sobre tudo
que tinha entrado em contato com o nazismo, sobre Vichy em primeiro lugar ou
sobre essas idéias perversas que supuram em alguns núcleos das extremas
direitas européias.
O PERIGO DAS FALSIFICAÇÕES
Um dos traços do século 20 é não
apenas - além de sua história ter sido horrível, no que diz respeito ao
massacre do homem pelo homem - que a consciência histórica, o segundo explica o
primeiro, teve uma dificuldade particular em orientar-se corretamente.
George Orwell observou que muitos se
haviam tornado nazistas por um horror motivado do bolchevismo, e comunistas por
um horror motivado do nazismo.
Isto mostra o perigo das
falsificações históricas. Presenciamos uma que se está formando e seria pena se
legássemos ao próximo século uma história deturpada.
O inverossímil, o impensável - Para
concluir, uma esperança. Foram necessários anos para se tomar uma consciência
completa do nazismo porque ele superava tudo o que acreditávamos ser possível e
a imaginação humana foi impotente para compreendê-lo. Isso poderia também
acontecer com o comunismo, cujas obras abriram um abismo igualmente profundo, e
foram protegidas, como Auschwitz o foi até o ano de 1945, pelo inverossímil,
pelo incrível, pelo impensável. O tempo, cuja função é desvendar a verdade,
desempenhará talvez, mais uma vez, seu papel. (A.B.)
[1] Ambas têm suas raízes na filosofia romântica
alemã, embora não pertençam à mesma família. Os grandes filósofos românticos
não têm evidentemente nenhuma responsabilidade sobre estes rebentos bastardos e
monstruosos.
Gêmeos eles são certamente, entre seu nascimento
existe uma distância de aproximadamente 15 anos - da ascensão de um e de outro
ao poder. Isto faz com que o nazismo seja analisável em parte (só em parte,
pois ele não se reduz a isso) a uma reação ao bolchevismo. Imitou-o em várias
de suas instituições: polícia política, campos de concentração, propaganda.
Inversamente, algumas vezes Stalin seguiu a escola
de Hitler. Assim, foi "A Noite dos Longos Punhais" que lhe sugeriu o
grande expurgo que começou em dezembro de 1934. Generosamente, ele multiplicou
o número de vítimas por mil.
[2] E Chateaubriand acrescenta: "Massacrem
impiedosamente tudo que impede o gênero humano de avançar. A cura de todos os
males, diz o homem, é a morte. Mas a morte deixa viver o mal e só mata o
perverso; o céu havia dito: É a paciência. A paciência mata o mal e deixa
morrer o perverso" (Memórias de Além Túmulo. IV, XII, 7).
[3] Os voluntários das Brigadas Internacionais
receberam na França o status de antigos combatentes. Alguns deles, depois de
ter combatido na Espanha, permaneceram em casa durante todo o tempo em que os
alemães ocuparam seus países.
[4] O menor contato intelectual com o nazismo,
mesmo em uma época em que sua criminalidade não era ainda conhecida ou estava
apenas em gestação, basta para desonrar artistas e escritores célebres, como
Cioran. No mesmo ano em que as atividades de Cioram antes da guerra eram
reveladas, as obras de Aragon eram publicadas na Pléiade, em meio a um concerto
unânime de louvores, sem que se fizesse referência, a não ser para desculpá-lo,
a sua longa performance stalinista.
[5] Código: 3617 LMDOC.
[6] Le Figaro, 16 de novembro de 1989.
[7] Nunca ouvi dizer que os jornalistas que
aprovaram a "libertação de Phnom Penh" e elogiaram Pol Pot,
torturados pelo remorso, tenham entrado para o convento.
[8] O célebre filme sobre a Shoah, disse-me Henri
Amoureux, nunca foi projetado na União Soviética, nem mais tarde na Rússia. No
tempo do sovietismo era proibido fazer menção aos judeus em particular, uma vez
que de acordo com a classificação geral dos regimes, só existem "vítimas
do fascismo". Hoje, existe talvez a preocupação de não suscitar entre os
espectadores a lembrança de fatos semelhantes de que foram testemunhas.
[9] Não é o caso dos muçulmanos, que não se sentem
tão atingidos.
[10] Sabemos que o procurador soviético quis a
condenação dos dirigentes nazistas pelo crime de Katyn. Os juízes americanos,
ingleses e franceses conseguiram que esta questão, sobre a qual já tinham aliás
uma opinião formada, não fosse levantada. Foi preciso esperar a queda do
comunismo na Rússia para que a responsabilidade do governo soviético fosse
oficialmente reconhecida. Nenhum dos que cometeram o crime foi processado.
[11] Temos de notar aqui duas outras versões. A
primeira, que foi em um determinado momento preferida por De Gaulle, tendia a
afastar o fato ideológico. Permanecia, portanto, o fato nacional e a tradição
histórica, a Rússia, a Alemanha, o acordo das nações, a simetria dos dois
impérios - o russo e o americano. Esta interpretação possuía um certo valor
prático, mas deixava de lado muitos fatos e expunha a alguns perigos. A segunda
teve, após o Concílio Vaticano II, um certo sucesso no mundo cristão. Ela
aceitava mais ou menos conscientemente a versão soviética, na medida em que
admitia o fato de que o mundo estivesse dividido entre uma sociedade socialista
e uma sociedade capitalista. Ora, não existe sociedade socialista, só existem
regimes de tipo soviético, e, por outro lado, o mundo ocidental não se deixa
reduzir ao conceito de capitalismo. Feita esta concessão, restava propor a
utopia de uma terceira via diferente e eqüidistante do socialismo e do
capitalismo, eles próprios sem outra realidade nem substância, a não ser
ideológica.
[12] É isto que faz o valor de um texto como o de
Andrei Amalrik: A União Soviética Sobreviverá em 1984?, tradução para o francês
de Michel Taru e prefácio de Alain Besançon (Fayard, 1970) e alguns dos ensaios
de Alexandre Zinoviev.
[13] Sabemos que eles não conseguem fazer com que a
Turquia reconheça o genocídio de que foram vítimas em 1915.
[14] Um exemplo, na edição de Esprit de junho de
1997, dedicada aos problemas religiosos de nosso tempo, fala-se freqüentemente
no mal absoluto tal como ocorreu em nosso século. A referência é sempre o
nazismo, e nem uma vez, por mais que eu tenha lido este número, ao comunismo,
embora os autores não tenham provavelmente simpatia por este regime. Mas não
pensaram nisto em suas análises.
[I] Cientista político, o francês Alain Besançon
(Paris, 25 de
abril de 1932) notabilizou-se,
como professor da Universidade de Paris ( É diretor de estudos da
Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, entre outras
instituições), por seus
profundos estudos e conhecimento da história da Rússia e da antiga União
Soviética. Antigo
comunista na época do stalinismo, passou a adotar uma posição crítica à
ideologia comunista e outras ideologias totalitárias.
Sem formação de economista, ele conseguiu fazer uma
das análises mais bem estruturadas do funcionamento da economia da ex-União
Soviética, desde os tempos de Lenin, com uma visão própria. Como um dos
historiadores franceses mais originais, ele agiu como um cirurgião, afastando
pouco a pouco os tecidos, para expor a "raiz profunda do mal". Em
1981, num seminário sobre filosofia política em São Paulo, ele previu o
desmoronamento da URSS. "É melhor morar numa favela de São Paulo do que em
Leningrado", disse
[II] Publicado
em O Estado de São Paulo - 15/02/98
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