Na passagem para o 3º milênio, ao
inaugurar o Grande Jubileu de 2000, o beato João Paulo II exortou os cristãos a
confiarem na vereda de Cristo, lembrando a estreiteza da via que em uma
história bimilenar foi capaz de vencer tantas sombras e perigos incontáveis,
ameaças e perseguições, e tantas outras incompreensões e falsas interpretações,
mas mesmo assim a luz fulgurante de Cristo chegou ao século 21 como um fato
incontestável: “Entramos por esta Porta, que representa Cristo mesmo: com
efeito, só Ele é o Salvador”. (1)
Esta verdade histórica chegou até
nós, a geração pós-Concílio Vaticano II, mas está hoje (e novamente) atacada de
modo intenso e sistêmico, por forças culturais, econômicas e políticas, no afã
de impor uma nova ordem mundial, destituída das premissas cristãs, ordem
imposta por diversas formas de manipulação, a pior de todas as violências. Uma
nova ordem não apenas política, mas também religiosa, de uma religiosidade
light, “sem dogmas, sem estruturas, sem hierarquias, sem morais rigorosas”,
como afirma monsenhor Juan Claudio Sanahuja, em seu livro Poder Global e Religião Universal” (Editora Ecclesiae). Uma leitura imprescindível, pela análise de
conjuntura de uma realidade pouco conhecida pelos próprios cristãos. Este novo
Leviatã, explica Sanahuja,
“procura, por
exemplo, a perversão dos menores, a anticoncepção, o aborto, a eutanásia, a
investigação com embriões humanos, a injusta legitimação jurídica de casais do
mesmo sexo, etc. A falsa espiritualidade da nova ordem procura ensinar às
crianças desde os cinco anos, a normalidade da homossexualidade e da
masturbação, e instrui-las no uso de preservativos e da pílula do dia seguinte,
mentalizando-os de que o aborto é um direito, como propõe a UNESCO”.
Para defender Jesus Cristo, caminho,
verdade e vida, o caminho não é fácil, nem seguro, recorda Sanahuja, na
introdução do livro. Não foi mesmo fácil em nenhum momento ao longo da
história. Afinal, quantas vezes o próprio Jesus teve de exortar os discípulos a
não ter medo, mesmo quando a tempestade parece fazer o barco soçobrar. E
completa:
“São muitos os poderosos inimigos que
enfrentamos, sendo irremediável o sofrimento pela verdade, inevitável também a
perseguição dos bons e a urgente necessidade do testemunho pessoal e social,
individual e coletivo, que como cristãos nos são exigidos”.
Tais exigências (de discernimento,
purificação e coerência de vida), no complexo contexto da atualidade, são
expostas com objetividade e visão de conjunto por monsenhor Juan Claudio
Sanahuja, na síntese que faz dos inúmeros desafios do momento histórico em
vivemos, enquanto cristãos, especialmente católicos. Ele alerta: “A crise
da Igreja é grave”.
Em "Poder Global e Religião
Universal" delineiam-se os aspectos, a profundidade e a amplitude da atual
crise, elucidando o processo e as estratégias de uma reengenharia social
anticristã, em curso, visando minar a sã doutrina católica, descontruindo
conceitos, para corroer, por dentro, as bases do edifício cristão, destituindo
a Igreja de sua identidade e força.
“Estamos em tempos de perseguição -
afirma Sanahuja - mas acima de toda consideração acomodatícia, a fidelidade a
Jesus Cristo nos exige defender, promover, ensinar, transmitir as verdades
imutáveis - os princípios inegociáveis - mas todos sabemos, leigos e clérigos,
que esse caminho é humanamente inseguro, porque ao não aceitar os esquemas
mentais politicamente corretos, recusamos ser incluídos na categoria de novo
cidadão, segundo o que a Nova Ordem define como paradigma da nova cidadania”, e
outros novos paradigmas éticos, especialmente o da reinterpretação dos direitos
humanos, que com sua hermenêutica ideologizada dá origem a “uma inifinidade de
pseudo-direitos ao serviço de políticas do projeto de domínio mundial”.
Completam ainda o panorama deste processo os novos paradigmas religiosos, que
geram a colonização das consciências. Visando um projeto de poder global, com
um pensamento único, mudando a cultura e a religião dos povos, colonizando as
consciências para conseguir cidadãos dóceis da nova ordem mundial”.
João Paulo II, gigante da fé, com
profundo realismo, destacou num dos documentos mais importantes do Grande
Jubileu, “nossa responsabilidade pelos males atuais” (2), salientando que
“entre as sombras e em primeiro plano pode ser assinalado o fenômeno da negação
de Deus em suas muitas formas”. (3) E explica:
“O que repercute particularmente é
que essa negação, especialmente em seus aspectos mais teóricos, é um processo que
surgiu no mundo ocidental. Ligada ao eclipse de Deus está uma série de
fenômenos negativos, como a indiferença religiosa, a ausência difusa do senso
do transcendente da vida humana, um clima de secularismo e de relativismo
ético, a negação do direito da criança não-nascida à vida - às vezes
sancionadas por legislações abortistas” (4), entre outros fatores. O fato é que
“vivendo ‘como se Deus não existisse’, o homem perde o sentido não só do
mistério de Deus, mas também do mistério do mundo, e do mistério do seu próprio
ser”. (5)
Nesse sentido, cabe lembrar Joseph
Ratzinger, em "Dominus Iesus", quando destacou que “o Reino diz
respeito a todos: às pessoas, à sociedade, ao mundo inteiro. Trabalhar pelo
Reino significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino, que está presente na
história humana e a transforma. Construir o Reino quer dizer trabalhar para a
libertação do mal, sob todas as suas formas”. (6) Este é o sentido da história
e que a Igreja faz parte, como via de salvação. “O mal tem poder através da
liberdade do Homem e cria então as suas estruturas. Porque existem,
manifestamente, estruturas do mal”. (7) De modo mais claro, Bento XVI exclamou:
“como estamos todos na realidade presos pelas potências que de um modo anônimo
nos manipulam”. (8) E ressalta: “O núcleo de toda a tentação (...) é colocar
Deus de lado, o qual, junto às questões mais urgentes da nossa vida, aparece
como algo secundário, se não mesmo supérfluo e incômodo”(9), pois as estruturas
do mal visam “ordenar; construir um mundo de um modo autônomo, sem Deus;
reconhecer como realidade apenas as realidades políticas e materiais e deixar
de lado Deus, tendo-o como uma ilusão: aqui está a tentação que de muitas
formas hoje nos ameaçam”. (10)
Sanahuja deixa evidente nesta obra
que há uma subversão silenciosa para concretizar um projeto de poder global,
que se realiza impondo novos paradigmas éticos, especialmente aos países
membros da ONU. Para Hiroshi Nakajima, diretor geral da Organização Mundial da
Saúde, “a ética judaico-cristã não poderá ser aplicada no futuro”. As forças
ideológicas anticristãs atuam de modo sutil e sofisticado, especialmente no
campo semântico: “mudar o significado e o conteúdo das palavras é uma
estratégia para que a reengenharia social seja aceita por todos, sem protestar”,
explica Sanahuja, por isso, “o significado da linguagem internacional muda
continuamente”.
Os cristãos percebem uma
“estranheza”, mas não conseguem de imediato constatar o que está acontecendo, e
muitos então acabam fazendo o jogo do inimigo: crescem as divisões internas, os
desentendimentos entre os fiéis, a evasão, os escapismos, a dispersão, etc. E
também o desânimo e o ceticismo, e a adesão às soluções fáceis, aos apelos
emocionalistas, ao conformismo e até ao indiferentismo. E então o que fazer?
“Estamos outra vez perante um novo começo” (11), destacou Joseph Ratzinger. E
reforça:
“a tarefa de crer
inteiramente a partir da liberdade e na liberdade e de crer, dando testemunho
contra um mundo exausto, também traz novas esperanças, novas possibilidades de
uma expressão cristã. É precisamente uma era de um cristianismo
quantitativamente reduzido que pode levar a uma nova vivacidade desse
cristianismo mais consciente”. (12)
A Igreja - como sinal de
contradição, vai se tornando “a Igreja de uma minoria”. (13) E é a
esperança desse cristianismo mais consciente que vemos despontar na obra de
Sanahuja, que não fica apenas no diagnóstico da situação, mas indica com
clareza atitudes para o enfrentamento daquilo que nos ameaça, para evitar
ambiguidades e tibiezas, a fragilização da fé transformada em apostasia.
A leitura deste livro, portanto,
elucida questões importantes para a vida dos cristãos do nosso tempo,
permitindo uma melhor compreensão não apenas do turbilhão de desafios a nossa
frente, bem como um entendimento cada vez mais agudo do mistério da Igreja no
mundo, a partir da missão a ela confiada por Jesus Cristo. A Igreja
poderá combalir e ficar até extenuada, mas é promessa de Nosso Senhor que as
portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Mas tudo isso exige de nós
vigilância, discernimento e fé operante. Refutando Nakajima, temos a convicção
de que "a fé cristã tem muito mais futuro do que as ideologias que a
convidam para abolir-se de si mesma". (14)
Notas:
1. http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/homilies/1999/documents/hf_jp-ii_hom_25121999_po.html
2. Comissão Teológica Internacional, Memória e Reconciliação - A Igreja e as culpas do passado, p. 53, Ediçoes Loyola, São Paulo, 2000.
3; Ibidem.
4. Ibidem.
5. Evangelium Vitae, 22.
6. Dominus Iesus, 19 (http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.html)
7. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 176, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
8. Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré, v. 1, p. 35, 3ª reimpressão, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, 2008.)
9. Ibidem.
10. Ib. p. 41.
11. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 212, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
12. Ibidem.
13. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 209, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
14. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 205, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
2. Comissão Teológica Internacional, Memória e Reconciliação - A Igreja e as culpas do passado, p. 53, Ediçoes Loyola, São Paulo, 2000.
3; Ibidem.
4. Ibidem.
5. Evangelium Vitae, 22.
6. Dominus Iesus, 19 (http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.html)
7. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 176, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
8. Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré, v. 1, p. 35, 3ª reimpressão, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, 2008.)
9. Ibidem.
10. Ib. p. 41.
11. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 212, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
12. Ibidem.
13. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 209, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
14. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra - O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro milênio - Um Diálogo com Peter Seewald, p. 205, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
Hermes Rodrigues Nery é coordenador da Comissão Diocesana em Defesa da
Vida e do Movimento Legislação e Vida, da Diocese de Taubaté. Especialista em
Bioética, é pós-graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
E-mail: hrneryprovida@gmail.com
"Nova Ordem
Mundial" o perigo que ameaça o Cristianismo
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