São as duas
faces do nacionalismo. Ele tanto
pode ajudar a construir como a destruir
pode ajudar a construir como a destruir
Paul Johnson
O nacionalismo está em alta novamente
e os intelectuais suspeitam dele. Argumentam que o nacionalismo levou a duas
guerras mundiais no século XX, que proporciona um caminho fácil para aspirantes
a ditador e que induz ao racismo. Alguns também afirmam que ele é hostil à
verdadeira cultura, cujo caráter é internacional.
Examinemos essa última acusação. A
cultura certamente tende a tornar-se internacional. Foi essa a história da
civilização grega, da civilização latina que a sucedeu e se sustentou até a
Idade Média, e de todos os grandes estilos arquitetônicos, do românico e do
gótico até o "estilo internacional" das décadas de 1920 e 1930. O
pós-modernismo corrente é, em linhas gerais, o mesmo em todo o mundo. Um
movimento cultural tipicamente internacional, hoje novamente em voga, foi o da
art nouveau, ao redor de 1900: tão popular, com variações, em Paris, Barcelona,
Bruxelas, Praga e Milão quanto em Chicago, Rio de Janeiro e Cidade do México.
Mas é preciso dizer que os anais
históricos também demonstram, com toda clareza, que as culturas poderosas
tiveram sua origem em condições que associamos ao nacionalismo, às etnias e
mesmo ao racismo. A primeira cultura duradoura (ela se manteve por mais de 3
000 anos e suas manifestações ainda nos encantam hoje em dia) surgiu no antigo
Egito e certamente nasceu da autoconsciência dos egípcios, de seu sentido de
identidade, de unidade política e racial, sob comando do Deus-Faraó. O
hieróglifo que designa um egípcio é bastante diferente daquele que designa os
indivíduos de outras raças. Esses últimos não eram plenamente considerados
"pessoas", como os egípcios; não eram totalmente humanos. Um orgulho
imenso de seu país, de suas delícias e conquistas, estava por trás da suprema
autoconfiança que deu à arte egípcia seu estilo espetacular.
Os gregos, que tomaram dos egípcios
muitas de suas noções culturais, especialmente na arquitetura, eram ainda mais
cônscios de sua peculiaridade. Em vez de uma nação, eles eram uma coletividade
de cidades-Estado, uma liga de cidades. Mas sua unidade cultural, atestada
pelos dois grandes épicos de Homero e fortalecida durante as guerras
prolongadas contra os persas, tinha toda a energia do nacionalismo. Para ser
grego, não era necessário possuir sangue grego, mas a cidade precisava ter
todas as construções características daquela cultura: um estádio, um ginásio,
uma academia, um anfiteatro capaz de acomodar toda a população, um odeom e
assim por diante. Dessa forma, o indivíduo era membro da oikumene, a
civilização. Para além desse círculo iluminado de cultura, havia o que os
gregos chamavam de "caos", habitado pelos "bárbaros".
Internacionalismo
latino – O moderno nacionalismo europeu
brotou, no final da Idade Média, do internacionalismo latino que a cristandade
cultivou à medida que se espalhava pelo continente. Em toda parte, o que se viu
foi o florescimento de fortes características nacionais, associado ao
aparecimento de diferentes línguas e de estilos na construção e na pintura. O
Renascimento tornou-se internacional, mas em suas origens ele foi antes de mais
nada italiano – ou talvez seja mais correto dizer florentino. Seu patrono foi
Dante Alighieri que, por meio de seus poemas, deu dignidade escrita ao dialeto
de Florença, transformando-o em italiano, uma força nacionalista em si mesma.
Quando grandes poetas, teóricos políticos, historiadores e filósofos começaram
a escrever na língua local, e não em latim, o nacionalismo moderno nasceu e
ganhou voz.
A Inglaterra e a língua inglesa são
um caso interessante. Até o começo do século XIV, a linguagem das cortes e da
cultura na Inglaterra era o francês (ou o latim). Então, o começo da Guerra dos
100 Anos com a França isolou o país das influências continentais e atiçou o
fogo do nacionalismo. A Coroa adotou o inglês em seus pronunciamentos, o
Parlamento votou o Estatuto dos Requerimentos, tornando ilegal a condução de
casos judiciais em outra língua que não o inglês, e os escritores se voltaram
para o vernáculo. Ao final do século, o primeiro grande poeta popular da ilha,
Geoffrey Chaucer, havia escrito sua obra-prima, os Contos de Canterbury,
inteiramente em inglês. Paralelamente, a Inglaterra desenvolveu sua própria
versão da arquitetura gótica. E a primeira obra-prima dessa escola, em
Gloucester, comemorou a vitória inglesa em Crécy sobre os franceses – um
exemplo perfeito de nacionalismo que alcança expressão cultural.
Processos semelhantes aconteceram em
Portugal, que desenvolveu o estilo manuelino, na Espanha, com o plateresco, e
na França, com o flamboyant. Como na Inglaterra, o nacionalismo foi reforçado
por grandes obras na língua local. Cervantes, na Espanha, e Rabelais, na
França, produziram livros populares em vernáculo, livros que se tornaram
emblemáticos da cultura nacional. Martinho Lutero tanto respondeu ao fogo do
nacionalismo germânico quanto ajudou a aumentá-lo, criando uma nova liturgia
eclesiástica na Alemanha. Ainda mais notável foi a conexão entre cultura nacional
e independência lingüística em Portugal, onde Camões contou a história do país
em Os Lusíadas, primeira criação maior da literatura portuguesa.
Invenção do
finlandês – O nacionalismo tanto constrói
quanto destrói cultura. Na Alemanha, no começo do século XIX, ele foi uma
reação ao imperialismo napoleônico, que era cultural ao mesmo tempo que
político. Ele foi também uma das forças na origem da literatura e da arte
românticas. Mas o nacionalismo também causou um retrocesso no sentido da
Kultur, a cultura pagã das florestas e dos deuses nórdicos, que tinha fortes
semitons raciais. Com o tempo, essa vertente encontrou expressão violenta no
imperialismo germânico e finalmente em Hitler, que, note-se bem, dava apoio à
Kultur e denunciava a "civilização", que ele equiparava a
"cosmopolitismo" e "judaísmo internacional".
Em pequenos países ou entre povos que
buscam a independência, o nacionalismo e a cultura local se equivalem. Isso é
verdade entre os bascos, por exemplo, e também entre os estonianos e os letões.
Na Finlândia, onde até recentemente a classe governante falava sueco e a Rússia
era politicamente dominante, o finlandês teve de ser inventado como linguagem
escrita por dois professores alemães de filologia, de modo que a cultura
nacional pudesse emergir pari passu com a independência política.
Em países multiculturais como o
Brasil e os Estados Unidos, o nacionalismo e a identidade cultural que o
acompanha são ingredientes necessários de unidade. Uma das razões pelas quais
federações como a Iugoslávia e a União Soviética não deram certo foi sua falta
de unidade cultural. A mesma ameaça pesa sobre a União Européia. Certa vez,
durante uma entrevista coletiva, o então presidente francês Charles De Gaulle
se referiu à "Europa de Dante, Goethe e Chateaubriand". Eu atalhei:
"E de Shakespeare." "Ah, sim, Shakespeare também", disse
ele. Mas o que De Gaulle estava empregando era a linguagem do nacionalismo
cultural de velho estilo. A União Européia ainda precisa forjar sua dimensão
cultural: aí está seu ponto fraco, talvez fatal. No estágio atual do
desenvolvimento humano, um elemento de nacionalismo é necessário aos grandes
empreendimentos, incluídos aí os empreendimentos culturais. Devemos, no
entanto, lembrar a importante lição da história: o nacionalismo é um bom servo,
mas um mau senhor.
Fonte: Veja
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