Por Nelson Rodrigues:
Em recente confissão, contei a minha visita à casa de uma grã-fina que,
de três em três meses, é capa de Manchete. E, de fato, sempre que Justino
Martins está em apertos, vai ao arquivo e apanha a cara da minha belíssima
anfitriã. O leitor nem desconfia que já viu a mesmíssima capa umas quinze
vezes. Não há nada mais parecido com uma grã-fina do que outra grã-fina. Por
dentro e por fora, todas se parecem. Quem viu uma, viu as outras.
Entro no palácio e nada descreve a minha
perplexidade. Conheço, de longa data, a dona da casa. Mas como identificá-la,
se lá todas se pareciam entre si como soldadinhos de chumbo? Cumprimentei umas
oito, na ilusão de que era a própria. Até que uma delas, ligeiramente mais
lânguida, ligeiramente mais afetada que as demais, suspirou: - “Até que enfim
veio à minha casa!”. Fez-se luz em meu espírito. Era aquela.
Bem. Estou-me perdendo no secundário em prejuízo do
essencial. O que eu queria dizer é que lá passei umas cinco horas. E, até o fim
da noite, só se ouviu um nome e só se falou de uma figura: Marx. Tudo era
marxista. O mordomo de casaca devia ser outro marxista. Idem, os garçons dos
salgadinhos, uísque e champanhe. E Marx não era apenas Marx. Não. De um momento
para outro, passou a ser “o velho”. Damas e cavalheiros diziam “o velho” com
uma salivação intensa.
Foi quando, a folhas tantas, alguém lembrou que “o
velho” era dado a furúnculos. Houve um frêmito de volúpia geral e
inconfessável. Parece meio difícil emprestar qualquer transcendência a uma
furunculose. Pois bem. Havia, ali, um tal clima marxista que os furúnculos do
“velho” pareciam mais resplandecentes do que as chagas de Cristo. Os decotes
palpitaram. Os cílios postiços tremeram. Havia como que uma voluptuosidade
difusa, valorizada, atmosférica. E, de repente, Marx deixava de ser o profeta,
o gênio, o santo. Parecia mais um fauno de tapete, torpe e senil. Ao passo que
as damas presentes seriam ninfas também de tapete.
Por aí se vê que uma simples furunculose pode
deflagrar um misterioso surto erótico. Saí de lá às quatro da manhã e sem me
despedir. Não foi incivilidade, absolutamente. É que eu reincidia na mesma
confusão visual. Como reconhecer a anfitriã, se todas as presentes eram
iguaizinhas umas às outras? Vim para casa e pensava em tudo o que vira e ouvira
no sarau grã-fino.
Eis o que eu pensava: “Como a nossa alta burguesia
é marxista!”. E não só a alta burguesia. Por toda parte, só esbarramos, só
tropeçamos em marxistas. Um turista que por aqui passasse havia de anotar em
seu caderninho: - “O Brasil tem 80 milhões de marxistas”. Hoje, o não-marxista
sente-se marginalizado, uma espécie de leproso político, ideológico, cultural,
etc. etc. Só um herói, ou um santo, ou um louco, ousaria confessar,
publicamente: - “Meus senhores e minhas senhoras, eu não sou marxista, nunca
fui marxista. E mais: - considero os marxistas de minhas relações uns débeis
mentais de babar na gravata”.
Mas contei o episódio da furunculose para concluir:
- como nós conhecemos Marx! E o conhecemos na sua intimidade doméstica,
prosaica e profunda. Somos autoridades em seus furúnculos. Do mesmo modo,
estamos informadíssimos sobre as suas tosses, bronquites, asmas, aerofagias
etc. etc. Resta apenas uma pergunta: - e teremos a mesma intimidades com os
seus escritos? Aqui se insinua a minha primeira dúvida.
Senão, vejamos. Há três ou quatro dias, fui eu a um
sarau político. Lá, como no grã-finismo, o marxismo reinava. Cheguei disposto
às provocações mais sórdidas. Meus bolsos estavam entupidos de notas. Reuni a
fina flor da “festiva” e comecei: “venham ouvir umas piadas bacanérrimas.
Ouçam, ouçam!”. E, de repente, tornei-me extrovertido, plástico, histriônico,
como um camelô da rua Santa Luzia. Promovia idéias como quem vende laranjas,
canetas-tinteiro, pentes, isqueiros, calicidas.
Logo juntou gente. E comecei a ler frases de
recente leitura: - “O imperialismo é a tarefa dos povos dominantes – Alemanha,
França, Inglaterra, Estados Unidos”. Estes últimos “eram o país mais
progressista do mundo”. “Contra o imperialismo russo, a salvação é o imperialismo
britânico.” Outra: - “O defeito dos ingleses é que não são bastante
imperialistas”. Quanto à história, “avança de leste para oeste”. O colonialismo
é progressista porque os povos domináveis e colonizáveis só têm para dar “a
estupidez primitiva”. O budismo é “o culto bestial da natureza”.
E que dizer da China? É uma “civilização que
apodrece”. Por outro lado, a vitória dos Estados Unidos sobre o México, em
1848, foi uma felicidade para o próprio México. Dizia o autor, que eu citava: -
“Presenciamos a conquista do México e regozijamo-nos, porque este país, fechado
em si mesmo, dilacerado por guerras civis e negando-se a toda evolução, seja
precipitado violentamente no movimento histórico. No seu próprio interesse,
terá de suportar a tutela que, desde esse momento, os Estados Unidos exercerão
sobre ele”.
Por outro lado, é maravilhosa a sujeição da Índia à
Inglaterra. “A Alemanha é um povo superior e os latinos e os eslavos, mera
gentalha.” Ainda sobre os eslavos: - “Povos piolhentos, estes dos Bálcãs, povos
de bandidos”. Os búlgaros, em especial, são “um povo de suínos” que “melhor
estariam sob o domínio turco”. Em suma: todos esses povos eslavos são “povos
anões”, “escórias de uma civilização milenar”. Mais ainda: - “A expansão russa
para o Ocidente é a expansão da barbárie” etc. etc.
Durante duas horas li para a “festiva”. Por fim,
embolsei as notas e, arquejante, falei: - “Vocês ouviram. O autor ou autores
citados já morreram. Quero saber se teriam coragem de cuspir na cova de quem
escreveu tudo isso?”. E outra pergunta: - “Quem pensa assim, e escreve assim, é
um canalha? Respondam”. Em fulminante resposta, todos disseram: - “É um
canalha!”. Ainda os adverti: - “Calma, calma. São dois os autores! Vocês têm
certeza de que são dois canalhas? E canalhas abjetos?”. Não houve uma única e
escassa dúvida. Os marxistas ali presentes juraram que os autores eram
“canalhas” e abjetos. E, então, só então, alcei a fronte e anunciei: - “Agora
ouçam os nomes dos canalhas”. Pausa e disse: - “Marx e Engels”. Fez-se na sala
um silêncio ensurdecedor. Repeti: “Marx e Engels, os dois pulhas, segundo
vocês”.
Tudo aquilo estava em ‘Marx et la politique
internationale’, por Kostas Papaloanou etc. etc. Os dois, Marx e Engels, eram
paladinos fanáticos do imperialismo, do colonialismo, admiradores dos ianques,
russófobos. Disseram mais: - “A revolução proletária acarretará um implacável
terrorismo até o extermínio desses povos eslavos”.
Os marxistas que me ouviam eram poetas, romancistas,
sociólogos, ensaístas. Intelectuais da mais alta qualidade. E entendiam tanto
de Marx quanto de um texto chinês de cabeças para baixo. Eis a verdade: somos
analfabetos em Marx, dolorosamente analfabetos em Marx.
Crônica publicada em O
Globo em 3.05.1968 - Extraído do Blog do Contra.
Mais artigo do Nelson Rodriques, aqui
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