Por
Hermes Rodrigues Nery
Exmo.
Senador Anibal Diniz, que preside estes trabalhos, Ministro Gilberto Carvalho,
Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Prof. Leonardo
Avritzer, professor de Ciência Política da UFMG, Prof. Dalmo Dallari, professor
da USP, Prof. José Matias Pereira, professor de Administração Pública da UnB,
senadores e demais aqui presentes. Cumprimento a mesa e pelo vejo serei a única
voz dissonante, o que é salutar para o debate democrático, que nos leva à
reflexão, que é justamente o objetivo desta audiência pública.
Gostaria
de começar lembrando aqui aos senhores a perplexidade de Aristide Lobo, quando
descreve o que aconteceu no golpe de 15 de novembro de 1889, dizendo que o povo
assistiu tudo aquilo bestializado, isto é, alheio ao que aconteceu, sem ter
tido nenhuma participação efetiva naquela quartelada; mas sofreu depois as
consequências do novo regime, com a própria crise econômica decorrente do
encilhamento, e os excessos do florianismo, por exemplo, "com desprezo
pelas regras jurídicas"1. Naquela que foi "a primeira grande mudança
de regime político após a Independência"2, quiseram os golpistas
justificar o que fizeram dizendo que "se tratava da implantação de um
sistema de governo que se propunha, exatamente, trazer o povo para o proscênio
da atividade política"3. E os fatos mostraram depois, de que se tratou
mesmo de uma falácia. "Havia algo mais na política do que simplesmente um
povo bestializado"4, mas forças oligárquicas se voltaram contra o Brasil,
gerando as aberrações da República Velha. E que perduram aqui hoje, com novas
formas (mais sutis, mais danosas) na Nova República; na mesma práxis do
Executivo asfixiar o Legislativo, no pior exercício do mandonismo, no afã de um
grupo de poder que sufoca as liberdades individuais, e as demais expressões
[este que se torna uma facção, favorecida por um presidencialismo que tende a
um absolutismo, e que recorre à retórica da democracia, como discurso apenas
para justificar que esse determinado grupo imponha a sua ideologia totalitária,
usando categorias sociais artificiais, [ou mesmo estratos sociais vulneráveis
como curral eleitoral, com base no populismo e no clientelismo] para legitimar
seus interesses de poder, que nada são democráticos. Isso já é conhecido na
história, desde a Antiguidade.
"E
quando, em lugar do povo - dizia Sócrates, na ágora ateniense - é, como numa
oligarquia, uma reunião de algumas pessoas que decreta o que se deva fazer,
como se chama isso?"5 E responde: Violência e ilegalidade, mesmo revestida
de artifícios e sofismas, da retórica, estratégia essa bem conhecida. "-
Que são então Péricles, a violência e a ilegalidade? Não são atos pelos quais o
mais forte, em vez de convencer o mais fraco, obriga-o a fazer o que lhe
convém?"6 Onde um determinado grupo político quer se impor e asfixiar
todos os demais. Com o Estado Novo, prevaleceu isso também: o poder do
caudilho, como o de hoje, com Lula e seu grupo de poder, declaradamente
socialista.
Afonso
Arinos de Mello Franco, que foi senador desta casa, constituinte, que ajudou a
fazer a atual Carta Magna, destaca "as deturpações sofridas pela expressão
democracia"7, lembrando Lênin, quando dizia que que "a República dos
Sovietes, dos representantes dos operários, soldados e camponeses é o tipo mais
elevado de instituição democrática"8. E observa que "a franqueza de
Lênin é cruel e completa, mas também são patentes os seus erros [os erros da
Rússia espalhados pelo mundo], fundados em ilusões da crença ideológica
marxista"9, que o PT, de modo especial, carrega com obsessão e obstinação,
em por em prática tais erros já condenados pela História, de triste memória,
nos países aonde tais erros foram adotados. E ensina Afonso Arinos que "a
democracia direta (como querem agora o governo do PT com o Decreto 8243/20140
de fato nunca foi praticada e dela hoje restam somente alguns resquícios
históricos"10. Isso porque a democracia, sr. Presidente, "conta com
indiscutíveis bases morais"11, e aonde faltam essas bases, não há como
existir democracia, mas a corrosão da democracia, que leva à demagogia, à
anarquia, à dissolução das instituições [desde a primeira e a principal de
todas elas, a família], à barbárie e à toda espécie de violência.
O
decreto 8243/2014 mostrou uma face sombria do projeto de poder do PT, e isso
não é de hoje, mas desde seu nascedouro, quando ainda se gestava, nos anos 70,
no CEBRAP (com recursos da Fundação Ford), já prevendo isso: usar as OnGs para
o aparelhamento de setores estratégicos
da sociedade, com metodologia gramsciana, para, aos poucos, irem
ocupando postos (nas Universidades, na imprensa, nos partidos, até chegar hoje,
quando praticamente quase todos os partidos são títeres de forças
internacionais, articuladas para impor na América Latina a agenda socialista, a
agenda controlista, uma agenda globalista.
O
que se quer com o Decreto 8243/2014 não é o aprimoramento da democracia,
alargando as suas possibilidades de expressão, como vem dizendo o Sr. Ministro
Gilberto Carvalho, em seus pronunciamentos. Mas o Decreto visa inviabilizá-la,
com "um conjunto de barbaridades jurídicas"12, que tornam os
movimentos sociais - como diz Erick Vizollli - "controlados por partidos
de esquerda"13, em especial pelo próprio PT. Estrangulamento da democracia
no Brasil, que quer significar este Decreto, e não a sua promoção, como
propagandeia na mídia os falazes do PT. E elucida Vizolli: "Sociedade
Civil para o Decreto significa movimentos sociais"14. E acrescenta:
"Não se enganem: a intenção do Decreto 8243/2014 é justamente abrir espaço
para a participação política de tais movimentos e 'coletivos'. O 'cidadão' em
nada é beneficiado"15.
O
Decreto altera profundamente a ordem constitucional e o equilíbrio entre os
três poderes, pois cria conselhos em toda a parte, com poder deliberativo. Tal
alteração não poderia ser proposta por decreto [já aí está a sua
inconstitucionalidade]. O Decreto instaura a democracia direta, que jamais foi
pretendida pela Constituição de 1988. O Decreto esvazia e desmoraliza o
Congresso. E isso esta Casa não pode permitir. Esta Casa tem o dever constitucional
de defender o Legislativo, robustecê-lo, pois assim estará protegendo a
sociedade brasileira da gula de poder, dos que querem se favorecer dos ardis do
referido Decreto e dar assim esse golpe contra a democracia brasileira.
E
acrescenta Vizolli: "A institucionalização de conselhos pelo Decreto
8243/2014 leva à ascensão política instantânea de 'revolucionários
profissionais', pessoas que dedicam suas vidas inteiras à atividade partidária,
em uma tática já antecipada por Lênin em seu panfleto "Que Fazer", de
1902 (capítulo 4c). Vamos supor por um momento que o Decreto seja um texto bem
intencionado, que de fato pretenda 'inserir a sociedade civil' dentro de
decisões políticas (como, aliás, afirma o diretor de Participação Social da
Presidência da República em artigo d'O Globo). Ora, quem exatamente teria tempo
para participar de 'conselhos', 'comissões', 'conferências' e 'audiências'?
Obviamente, não o cidadão comum, que gasta seu dia trabalhando, levando seus
filhos para a escola e saindo com os amigos. Tempo é um fator escasso, e a
maioria das pessoas simplesmente não possui horas de sobra para participar
ativamente de decisões políticas - é exatamente por isso que representantes são
eleitos para essas situações. Quem são as exceções? Não é difícil saber. Basta
passar em qualquer sindicato ou diretório acadêmico: ele estará cheio de
'revolucionários profissionais', cuja atividade política extraoficial acabou de
ser legitimada por decreto presencial"16. Por isso, me referi aqui no
início à perplexidade de Aristides Lobo, quando disse que o povo assistiu tudo
bestializado, alheio a tudo, como hoje, quando o governo do PT, com o Decreto
8243/2014 quer alijar das instâncias decisórias o povo, para garantir
apaniguados no partido do governo, o acesso às instâncias decisórias;
apaniguados estes que formarão os "coletivos", a sociedade civil. O
Decreto, como afirmou o jornalista Reinaldo Azevedo, cria assim "duas
categorias de brasileiros: os que tem direito de participar da vida pública e os
que não tem. Alguém dirá: Ora, basta integrar um movimento social, mas isso
implicará , necessariamente, ter de se vincular a um partido político"17.
"Exatamente
por estes motivos, Sr. Presidente, tal forma de organização, confere a
extremistas de esquerda possibilidades de participação política muito mais
amplas do que eles teriam em uma lógica democrática 'verdadeira', na qual ela
seria reduzida a praticamente zero"18. Mas com a institucionalização da
participação popular, que o Decreto quer garantir, estará o povo alijado do
poder decisório, e Estado e Nação ficarão reféns dos tais
"coletivos". Como bem lembra o Dr. Ives Gandra da Silva Martins, que
me indicou para aqui representá-lo, nesta audiência pública. "As comissões
e os conselhos, segundo o texto oficial, deverão ser formados pela sociedade
civil. Entende-se sociedade civil [está lá no texto do Decreto], "por
cidadãos, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não
institucionalizados, suas redes e organizações"18, como os tentáculos do
polvo de Lautréamont. "Dizem que qualquer pessoa do povo pode participar,
mas sabemos que o povo não é articulado. Articulados são eles, que entrarão
nessas comissões"19. E mais: "Quando eles falam de participação da
sociedade, todos nós sabemos que essas
comissões serão de grupos articulados, com os movimentos dos Sem Terra e dos
Sem Teto e outros, que tem mentalidade favorável à Cuba, à Venezuela"20.
Por isso, o povo continuará alijado e, mais uma vez, bestializado, assistindo a
tudo isso [esse golpe que é o Decreto 8243/2014], sem entender de nada do que
está acontecendo.
O
que ocorre com o Decreto? A corrosão da democracia, que favorece o populismo, o
clientelismo, a subserviência e a acomodação, a tibieza de iniciativas pessoas,
a dependência do Estado para tudo, este paternalismo estatal que se aproveita
da vulnerabilidade social, para manipular pessoas e instituições, tornando
desprezíveis as liberdades públicas e privadas. Como afirma o Prof. Olavo de
Carvalho, em seu livro "Tudo o que você precisa saber para não ser um
idiota", "a possibilidade mesma de iniciativas sociais independentes
foi praticamente eliminada, na medida em que a regulamentação das OnGs as
transformou em extensões da administração estatal (exatamente o que quer o
Decreto 8243/2014) e em instrumentos de manipulação de massas"21. Os
coletivos são isso: "construtores revolucionários de uma sociedade
socialista"22. E o que querem? Não o bem comum, conforme o Direito
Natural; não a estabilidade [estamos aí já vendo os sinais apreensivos da crise
econômica], não a coesão social, a garantia
e a promoção das liberdades individuais, da valorização cultural, que
civiliza, mas a banalização da vida, em todos os sentidos, o triunfo do
homem-massa, o barateamento e nivelamento por baixo, de tudo e de todos, porque
"a ação do poder revolucionário, é precisamente , a ruptura do
direito"23 [e especialistas já demonstraram a inconstitucionalidade do
Decreto] "e, portanto, da legalidade, que é o domínio da lei"24.
E
é por isso que o golpe que se quer com o Decreto 8243/2014 lembra a quartelada
de 89. Golpe este altamente sofisticado, porque travestido de roupagem
sedutora: em nome da democracia, querem instaurar a ditadura petista, querer se
implantar o socialismo e o comunismo neste País, com apoio internacional. E
esta Casa de Leis precisa se posicionar para sustar o Decreto, para
salvaguardar a democracia, para salvaguardar a liberdade neste País, para
evitar a sovietização em curso, com as conhecidas conseqüências desse processo.
O
debate da questão que motivou esta audiência pública, relevantíssimo para a
reflexão sobre o que está pondo em xeque a democracia neste País, nos leva a
dizer alto e em bom tom: não permita esta Casa de Leis este atentado á
democracia brasileira. É hora dos homens e mulheres deste País, que tem amor ao
Brasil, dos que sabem do sentido e do valor do patriotismo, para se posicionar
em defesa da democracia, da liberdade, do respeito às instituições, também
desta Casa Legislativa, sempre em vista a dignidade da pessoa, de cada pessoa
humana. Muito obrigado.
Notas:
1.
Afonso Arinos de Mello Franco, Problemas Político Brasileiros, p. 150, Livraria
José Olympio Editora, 1975, Rio de Janeiro.
2.
José Mutilo de Carvalho, Os Bestializados - O Rio de Janeiro e a República que
não foi .p. 11, Companhia das Letras, 2204, São Paulo.
3.
Ibidem.
4.
Ib. p. 13.
5.
Sócrates, Os Pensadores, p. 93, Editora Nova Cultural Ltda, 1999, São Paulo.
6.
Ibidem.
7. Afonso Arinos de Mello Franco, Problemas
Político Brasileiros, p. 25, Livraria José Olympio Editora, 1975, Rio de
Janeiro.
8.
Ibidem.
9.
Ib. p. 17.
10.
Ib. p. 26.
11.
Ib. p. 26.
12.
Editorial do jornal O Estado de São Paulo, Mudança de Regime por Decreto,
30.05.2014
(http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,mudanca-de-regime-por-decreto-imp-,1173217)
13.
Erick Vizolli, "Afinal, o que é esse tal decreto 8.243?"
(http://erickvizolli.jusbrasil.com.br/artigos/121548022/afinal-o-que-e-esse-tal-decreto-8243)
14.
Ibidem.
15.
Ibidem.
16.
Ibidem.
17.
Reinaldo de Azevedo, "Dilma decidiu extinguir a democracia por decreto. É
golpe". Veja on line, 29.05.2014
(http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/dilma-decidiu-extinguir-a-democracia-por-decreto-e-golpe/)
18.
Erick Vizolli, "Afinal, o que é esse tal decreto 8.243?"
(http://erickvizolli.jusbrasil.com.br/artigos/121548022/afinal-o-que-e-esse-tal-decreto-8243)
19.
Victória Broto, "Ives Gandra alerta: decreto 8.243 é ditatorial",
Diário do Comércio, 03.06.2014 (http://www.dcomercio.com.br/2014/06/03/ives-gandra-alerta-decreto-8243-e-ditatorial).
20.
Ibidem.
21.
Olavo de Carvalho, "Tudo o que você precisa saber para não ser um
idiota" (Org. Felipe Moura Brasil), p. 173, Editora Record, Rio de
Janeiro.
22.
Mark Mazower, "Continente Sombrio - A Europa no século XX", p. 271,
Companhia das Letras, 2001, São Paulo.
23. Afonso Arinos de Mello Franco, Problemas
Político Brasileiros, p. 31, Livraria José Olympio Editora, 1975, Rio de
Janeiro.
24. Ibidem.
Fonte: LIBERTATUM
Reações ao Decreto 8.243 — a
sociedade ainda respira. Até quando? Leia aqui.
Esse Decreto foi Revogado pelo Decreto nº 9.759, de 2019
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