Após o desmonte do
socialismo, Nicolas Buenaventura, engenheiro e professor, que hipotecou sua
vida ao comunismo, pois durante 40 anos fora membro do Comitê Central do
Partido Comunista Colombiano com o cargo de chefe da Seção de Educação de
Massas, explorou a fundo, numa autocrítica ácida e demolidora, através de um
texto - Que Pasó, Camarada? -, as razões da
catástrofe dos ”socialismos reais”.
Disse ele que os
comunistas sempre lutaram por um pedaço da democracia formal e burguesa. Sempre
defenderam, até a morte, a sua minguada liberdade de palavra, de imprensa, de
dissidência e de oposição. A liberdade de locomoção, de ir e vir, de empresa -
das empresas do partido -, dos camaradas, das associações, dos sindicatos. Cada
resquício de democracia tradicional, formal, era sagrado para eles.
“Defendíamos o
pedaço de pão velho, como diria Bertolt Brecht. Porém, isso nunca foi
considerado suficiente. Esse não era o objetivo. Era o meio. Queríamos o pão
inteiro. Defendíamos a democracia possível. Porém, quando chegasse o momento e
tudo mudasse, chegaria a hora da democracia real. Onde estava, então, o nosso
erro?
A verdade é que
sempre fizemos uma leitura muito óbvia, muito simples, da história da
democracia formal. Sempre raciocinamos assim: uma democracia sem pão, sem
escola, sem terra, puramente formal, é mentirosa.
E daí em diante,
dessa leitura simplista, vinha o resto, a grande dedução: primeiro o pão,
primeiro a roupa, primeiro a terra e a escola e, depois, só depois, viria... a
democracia.
Era assim que nós
encarávamos as coisas: sem pão, a democracia é uma mentira. Sem teto, sem
escola, sem o conhecimento, é mentirosa a democracia. De forma que tudo tem o
seu tempo, como diz a Santa Bíblia. Por agora, a saúde e a educação gratuitas.
Depois, só depois, a democracia.
Nunca dissemos isso assim, explicitamente, na Colômbia, em Cuba ou na União Soviética. Nunca dissemos isso com estas palavras precisas.
Nunca dissemos isso assim, explicitamente, na Colômbia, em Cuba ou na União Soviética. Nunca dissemos isso com estas palavras precisas.
Essa, porém, era a
essência da nossa democracia real. E era, por outro lado, a que melhor se
adaptava ao mundo do subdesenvolvimento, sem maior cultura política ou tradição
democrática. A esse mundo onde foi implantado e existiu o socialismo real”.
Então, para essa
viagem desde o pão à democracia real, do futuro - uma viagem
difícil; uma viagem, ademais, sem calendário -, para esse percurso tão
acidentado, um grupo de escolhidos, formado pelos melhores, entre os quais
Nicolas Buenaventura se encontrava, foi encarregado da direção. E esse grupo
construiu o instrumento que conduziria os oprimidos à Terra Prometida. Esse
instrumento denominava-se o Partido, assim, com inicial maiúscula.
“Não se tratava de
falar, de protestar ou de fazer oposição. Para isso havia sua hora, o seu
tempo. Tratava-se de construir a democracia real.
Depois, as coisas
aconteceram como já sabemos. É um fato e uma verdade. Primeiro faltou a
democracia, faltou a dissidência, faltou a oposição, faltou a minoria. Todos
eram maioria. Uma maioria ideal, plena, uniforme, de uma só cor, que pouco a
pouco foi se convertendo em unanimidade. Porém, o pão se acabou, veio a queda
de produção, a ineficiência e a obsolescência.
Primeiro, o Partido foi roubado na democracia. Depois também no pão.
Primeiro, o Partido foi roubado na democracia. Depois também no pão.
Dessa forma, nós,
comunistas, aprendemos muito duramente, para sempre, esta lição: a democracia
não tem ordem, não tem espera, não tem comissários políticos, nem delegação e
nem guardiões. A democracia somos cada um de nós. É você mesmo.
E mais: a democracia é o governo da maioria.É o contrário da pirâmide centralista do Partido, na qual a cúpula, isolada das bases, era sempre endeusada, convertendo-se em uma dinastia.
Em uma palavra: democracia é cada vez menos governo do Partido e do Estado, e mais autogoverno da sociedade civil.
E, paralelamente, com isso e junto com isso, estará o problema do pão, da escola, da terra e do Direito
E mais: a democracia é o governo da maioria.É o contrário da pirâmide centralista do Partido, na qual a cúpula, isolada das bases, era sempre endeusada, convertendo-se em uma dinastia.
Em uma palavra: democracia é cada vez menos governo do Partido e do Estado, e mais autogoverno da sociedade civil.
E, paralelamente, com isso e junto com isso, estará o problema do pão, da escola, da terra e do Direito
Nós, do Partido
Comunista, havíamos tapado, afogado, o pensamento de Marx com a tradução de um
montão de manuais de marxismo-leninismo.
Vivemos sempre em
um partido que não fez outra coisa, durante mais de meio século, senão
instalar-se na porta da revolução, convencido, com a maior certeza, de que esse
era o seu lugar, acabando por receber, por isso, o castigo mais duro.
Todas as revoluções
neste século, em qualquer parte do mundo, utilizaram a violência para moer a
antiga máquina, para quebrar o poder militar entrincheirado no capital. Tudo
era uma grande festa.
Porém, mesmo após
cumprir o seu papel demolidor, rompendo as antigas cadeias, mesmo após forçar
as portas dos cárceres, a violência não cessou, não se deteve e
institucionalizou-se.
Eu vivi isso muitas
vezes, na Colômbia, na Nicarágua, na China e em Cuba. Experimentei o
poder local guerrilheiro e vivi o poder opressor e absolutamente arbitrário dos
donos do novo poder. E tudo me parecia lógico. O novo dia, após anos de
obscuridade, surgiria enredado em fios invisíveis de medo à cidade, ao povo, à
vereda, ao camarada, ao guerrilheiro, ao dirigente. O novo poder não se
equivoca. Ele conhece os traidores, os colaboradores, os cúmplices passivos, os
que nunca fizeram nada, os que não moveram um dedo. Ele conhece a todos.
Esse, todavia, não
foi o problema, pois essa dinâmica é própria de todas as revoluções. Isso não
foi o mais grave no nosso caso, na história do socialismo real. O grande
problema nunca foi, entre nós, a violência revolucionária e criadora, que se
prolongou, quase sempre, além do seu tempo.
O grande problema,
o verdadeiro problema, o problema real e profundo, teve lugar mais adiante e
foi de outra natureza. Trata-se do esquema do socialismo real. O do esquema
sacralizado, o do esquema que converte um possível processo histórico, uma
hipótese de trabalho a verificar, em lei, norma e sentença. Essa racionalidade
seca e fria, inaugurada pelo stalinismo, gerou inflexivelmente uma nova
violência que matou metodicamente todas as primaveras revolucionárias e aguou todas
as grandes festas do nosso século
E agora, eu me
pergunto, depois de todo esse cataclismo: quando, em que momento, por que, nos
convertemos a essa idéia, à idéia desse socialismo de bruxos, desse socialismo
que deveria desmantelar o capitalismo como uma alternativa violenta,
inevitável? Quando se atravessou em nosso caminho essa idéia tão fácil do
Estado todo-poderoso, proprietário único, com todo o poder ao ombro, como se
fosse um fuzil? Quando e como se impôs entre nós o mito do Estado como panacéia
e a estadolatria? Esse mito, que se transformou em miséria sacralizada e
repartida?”
Foi esse o
depoimento de Nicolas Buenaventura, que dedicou 40 anos de sua vida ao partido
da classe operária.
Uma curiosidade: na
década de 90, logo após o desmantelamento do socialismo real, em um muro, em
Quito, Equador, foi pichada por comunistas a seguinte inscrição: “Ahora que
teníamos todas las respuestas se cambiaram las preguntas”.
A partir de então,
um sem número de defensores da causa, em todos os quadrantes, entregam-se a uma
autocrítica devastadora, chegando, desolados, invariavelmente a uma mesma
conclusão: os que progrediram no partido da classe operária foram os
burocratas, os secretários, os maiores culpados pelo desmantelamento do
socialismo real.
Onde quer que
existisse um partido comunista, o modesto burocrata sempre observava, desde a
sua mesa, quase com admiração, como chegavam à sede do partido os
revolucionários, os heróis da agitação social, que imediatamente eram recebidos
pelos chefes. O agitador, o brilhante lutador, apenas notava o burocrata porque
fora convencido de que ele era a alma da burocracia partidária.
Passam-se os anos.
O herói revolucionário, o agitador de massas, líder nas greves, nas passeatas,
nas colagens de cartazes e nas pichações, na distribuição de panfletos e outras
tarefas menos nobres, continuava indo à sede do partido. Algumas vezes até para
ser repreendido e instado a fazer uma autocrítica. O burocrata, no entanto,
prosseguia ali, impassível, porém já em uma mesa maior. Antes manejava uma
velha máquina de escrever expropriada pelo revolucionário, brilhante lutador.
Agora, na era da informática, passava as idéias e decisões do partido
diretamente ao computador. Continuava, no entanto, obsequioso e admirador do
ativista.
Passam-se mais
alguns anos. O agitador tem orgulho de seu passado glorioso, das prisões e
perseguições que sofrera; da clandestinidade longe da família e dos amigos, e
das eventuais vitórias revolucionárias. É uma legenda, respeitado e admirado
dentro do partido.
Em suas idas ao
Comitê Central, continua a ser recebido por aquele mesmo funcionário. Porém,
com o passar do tempo, já algo mais que um simples burocrata, pois fora
elevado, por cooptação, ao cargo de Secretário de Agitação e Propaganda (Agitprop,
na terminologia partidária) ou Secretário de Organização, com poderes,
portanto, para remover o agitador, o brilhante ativista, de um lugar para
outro. Já, então, o burocrata encara o velho lutador de forma diferente, pois
agora lhe dá ordens, e o famoso princípio do centralismo democrático faz com
que essas ordens não sejam discutidas.
Posteriormente,
passados mais alguns anos, o lutador, o ativista, o brilhante lutador, comprova
que o Secretário passou a integrar o Comitê Central, cooptado em lugar de um
companheiro falecido. E que, assim, tornou-se membro da privilegiada nomenklatura partidária,
passando a ter direito a passagens aéreas, férias anuais na Criméia e a
matricular seus filhos na Universidade de Amizade dos Povos Patrice Lumumba, na
Escola de Ballet de Leningrado e em outras do paraíso soviético.
O que se passou? Nada. Apenas o tempo.
O que se passou? Nada. Apenas o tempo.
O ativista,
brilhante lutador, conserva seu passado, porém já não é útil, pois está “queimado”,
seja por ter se tornado excessivamente conhecido da polícia, seja porque
militantes mais jovens já murmuram contra seus antiquados e ultrapassados
métodos de trabalho. Protestará, e então lhe recordarão, como se fosse um
membro da juventude comunista, que o partido da classe operária possui um
Estatuto que exige disciplina férrea e que, mais uma vez, deverá
autocriticar-se.
Ao fazê-lo, a que
conclusão chegará? Que sua vida política já está - como o partido e a própria
doutrina -, no descenso da derrota, pois sonhou ser um chefe e não passou de um
“quadro”; sonhou tornar-se um teórico doutrinador e limitou-se, em toda
a sua vida, a assimilar as palavras-de-ordem alheias, nas quais, hoje, ninguém
mais acredita.
Agora, resta ao
velho lutador, ao agitador, ao herói revolucionário, curar as cicatrizes e
desilusões e, como Lenin, indagar: o que fazer? Enquanto não
encontra uma resposta, engaja-se, como tantos outros, no esporte da moda:
atirar pedras nos patriotas que impediram que a Pátria fosse transformada em um
pleonasmo: uma “democracia popular.”
O que ocorre é que
jamais a militância política nos partidos da esquerda revolucionária poderá ser
a mesma militância arquitetada pelo Partido Bolchevique. A impressionante
explosão dos meios de comunicação de massa modificou profundamente os padrões
de sociabilidade, diminuindo o peso das ruas, das assembléias, das passeatas,
dificultando a mobilização das chamadas massas, além do que a atual caminhada,
sem volta, para a globalização da economia, ao invés de concentrar
trabalhadores, dispersa-os em unidades produtivas, mantendo-os mais preocupados
com seus interesses espontâneos imediatos.
Até o início da
década de 70, pelo menos, os comunistas cultivavam a imagem do militante
abnegado, totalmente dedicado à “causa”, disciplinado, que colocava em
segundo plano sua vida pessoal - quando não abria mão dela - em função de um
ideal: a vitória da revolução que abriria caminho para a emancipação da
humanidade.
O militante era,
antes de tudo, o soldado de uma causa, o homem do partido, quase o “homem-novo”
idealizado por Marx. Extremamente ideologizado, sempre dava razão ao partido,
ou àquele que, no momento, o encarnasse: Lenin, Stalin, Mao, Prestes e tantos
outros. O militante forjou-se no interior de partidos militarizados.
Determinado, capaz de tudo suportar, de jogar todas as suas fichas na utopia,
de sufocar a individualidade em nome de sua dissolução no universo do coletivo
construído pelo partido.
Todavia, é certo
que o militante pós-Guerra Fria, pós-”perestroika” e pós-”glasnost”,
pós-socialismo real, jamais será o mesmo, pois não mais seguirá cegamente seus
líderes; espera que o partido imagine outros caminhos de mobilização, pois não
mais poderá insistir, simplesmente, em “colocar as massas nas ruas” .
Definitivamente, os
modelos de militância que marcaram os setores mais radicais da esquerda por
cerca de 70 anos se esgotaram. Figuras como o bolchevique, o agitador
anarquista, o guerrilheiro urbano, o soldado-partido, não mais existirão,
pois as regras que regulavam o funcionamento dos coletivos que constituíam
essas figuras “jurássicas” foram derrubadas. Uma dessas regras, a
fundamental, foi aquela que a Rainha Vermelha, do livro “Alice no País das
Maravilhas”, bradava: “Primeiro a sentença; depois o veredicto!!”
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
Fonte: Alerta Total
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