A morte de amigos e
pessoas ilustres é uma fatalidade com a qual jamais nos reconciliamos. Por mais
que saibamos ser parte inevitável da condição humana, o sentimento de revolta
que nos atinge é tanto mais pronunciado quanto mais a essa pessoa estamos presos
por laços de afeto e admiração. Foi assim que reagi à notícia do falecimento de
Alain Peyrefitte, com o qual havia marcado um encontro, no início do mês
passado, para comunicar-lhe os esforços do Instituto Liberal do Rio de Janeiro
no sentido de publicar um de seus livros. Homem extremamente discreto, até o
último momento Peyreffite escondeu a moléstia que o consumia. Disseram-me que
na antevéspera de seu falecimento, ainda foi entregar ao editor as provas
finais de sua última obra, o terceiro volume de C'Était De Gaulle.
Escritor, político
ativo e teórico, membro do Institut e da Academia Francesa, senador, oito vezes
ministro, maire da cidade medieval de Provins, Peyrefitte era uma combinação
excepcional daquele ideal platônico, tão freqüentemente frustrado, de filósofo
e governante ao mesmo tempo. Julgo que, como amiúde ocorre, acabou preferindo
as letras ao exercício do poder. Em sua enormemente prolífica atividade como
escritor, dedicou-se a três temas favoritos, com um quarto ocasional.
Foi em primeiro
lugar o cronista de De Gaulle e alguns de seus contemporâneos o compararam a
outros, como Commines, Saint Simon e Las Cases, os de Luís XI, Luís XIV e
Napoleão. No terceiro volume, por falar nisso, esperemos que faça referência à
viagem do general à América do Sul em 1966 em que, presumivelmente,
encontraremos observações sobre nosso país. Como historiador de um dos períodos
mais importantes da história moderna da França (e da Europa), Peyrefitte tem
seu nome já consagrado como intérprete do renascimento de sua pátria após o
colapso que a afetou na primeira metade do século. Inicialmente diplomata,
formado na famosa ENA, a escola superior que prepara a elite da administração
francesa, e havendo alcançado o grau de ministro plenipotenciário, serviu em Bonn,
na Cracóvia e na Conferência de Bruxelas após o que, em 1958, entrou para a
política, sendo sucessivamente reeleito deputado até tornar-se senador em 1995.
Como um dos mais
fiéis gaullistas, foi ministro da Informação e ministro da Ciência e Tecnologia
Atômica (1966/67), em cuja capacidade contribuiu para a entrada da França no
clube fechado das potências nucleares. Como ministro da Educação, colocou-se no
centro do chienlit estudantil de maio de 1968, que conseguiu conter sem
violência.
Foi como ministro
da Justiça (Garde des Sceaux) que Peyrefitte visitou o Brasil, em outubro de
1978, com o presidente Giscard d'Estaing, quando tive a honra de conhecê-lo,
interessado como estava em um de seus primeiros e mais importantes livros, Le
Mal Français, publicado dois anos antes. Traduzido para o inglês, e para o
espanhol e italiano com o título O Mal Latino, tenho tentado em vão interessar
editoras brasileiras na soberba análise crítica empreendida por Peyrefitte, já
agora como sociólogo, dos fundamentos religiosos, culturais e morais dos males
que têm prejudicado o desenvolvimento e a modernização de toda a área latina.
Tocqueville e Weber
- Revela-se aí fiel discípulo de Tocqueville e Weber. Responsabiliza inclusive
a contra-reforma, como fazemos nós, liberais brasileiros, e a tradição do
autoritarismo absolutista pelas mazelas que embaraçam, senão impedem, nossa
emergência como democracias liberais, abertas ao mercado e sobrepujando o ranço
patrimonialista de nossa estrutura social. Creio que em nenhuma outra obra de
sociologia as origens de nossos vícios coletivos foram tão objetiva e
sabiamente perscrutados em suas profundas raízes culturais ou psicossociais.
Talvez seja o vezo weberiano da crítica ao romanismo centralizador e
interventor de nossa estrutura sócio-política o motivo das suspeitas de que
alimentasse convicções huguenotes.
Peyrefitte,
infelizmente, não estendeu suas pesquisas sociológicas à América Latina e,
particularmente ao Brasil como eu esperava, após a segunda visita que realizou
a nosso país, em 1987, a convite do Estado e da Associação Comercial de S.
Paulo. Nessa ocasião lhe servi de intérprete, em conferência pronunciada na
Avenida Paulista, e de cicerone no Rio e Brasília. Estava, na ocasião,
acompanhado do filho mais moço, Benoit. Ao invés, o ilustre acadêmico preferiu
desviar sua atenção para um outro tema que desde então o fascinou.
Paixão de aprender
- Sofrendo, como notou o jornalista e autor liberal Guy Sorman, da "paixão
de aprender", Peyrefitte publicou uma série de obras sobre a China, que
visitou mais de uma dúzia de vezes. Talvez tenha almejado realizar para os
chineses o mesmo que Tocqueville com sua De la Démocratie en Amérique. Em 1973,
parafraseando uma frase célebre de Napoleão publicou Quand la Chine
s_Éveillera... le Monde Tremblera. Esse livro foi seguido de Chine Immuable,
L_Empire Immobile (1989), La Tragédie Chinoise (após o episódio do massacre de
estudantes na Praça da Paz Celestial) e de um pequeno ensaio, com fotografias,
terminando com La Chine s_Est Éveillée (1996), ocasião em que manteve uma longa
entrevista com o atual presidente chinês Jian Zemin.
Em todos esses
ensaios, julgo tenha o autor compensado seu deslumbramento com o Império do
Meio (Djung Guó), graças a uma crítica objetiva da complexa problemática
levantada pela necessidade da China se abrir ao mundo global, enquanto procura
preservar sua identidade confuciana e a difícil unidade do povo de Han, de mais
de 1 bilhão de pessoas.
Teimosia oriental -
O Império Imóvel foi publicado em português em 1997 pela Casa Jorge Editorial
do Rio. Acompanhado de mais três volumes complementares, relata a embaixada
chefiada em 1792/94 por lorde Macartney, na primeira e frustrada tentativa dos
ingleses de provocarem a abertura do imenso império, então governado por seu
último grande imperador, Kien Long. A China obstinava-se na arrogância de ser a
potência mundial hegemônica, postura estimulada pela desconfiança da classe
dominante imperial mandchú. Os volumes anexos cobrem uma enorme documentação
relativa às reações dos jesuítas de Pequim, dos ingleses e dos próprios
chineses àquela missão diplomática sui-generis - que demorou dois anos e
comportou o envio de uma esquadra e 2.000 homens de comitiva. Macartney não
pôde contornar, contudo, a teimosa insistência dos mandarins no sentido de lhe
exigir o humilhante kowtow, as nove prosternações diante do Filho do Céu,
obrigatórias para os representantes dos vassalos.
Surpresa -
Peyrefitte manifestou sua surpresa quando descobriu que eu conhecia a extrema
pertinência desse episódio, no relacionamento entre o Ocidente e Ásia.
Expliquei-lhe que minha carreira se iniciou na China (1940/42 e 1947/49) e que,
durante anos, estudei sua história e cultura. O que destaca a tese central da
obra é o contraste entre a inflexível imobilidade e introversão autárquica dos
chins, postergando durante dois séculos a abertura do Império Central, até o
esforço de modernização encetado por Deng Xiaoping - e a flexibilidade com que,
em meados do século 19, os japoneses se adaptaram à inevitável globalização. Se
o Japão é hoje a segunda potência econômica do mundo enquanto só agora "a
China acorda para fazer tremer o mundo", a origem do descompasso se coloca
nas peripécias dessa missão diplomática.
Criminalidade - O
quarto tema que interessou o eminente escritor francês foi o problema da
Justiça e da criminalidade no mundo moderno, fruto de sua experiência como
ministro da Justiça. Les Chevaux du Lac Ladoga - la Justice entre les Extrêmes
apareceu em 1982 e lhe custou caro: quase foi morto por uma bomba terrorista
que explodiu na frente de sua residência, em Provins, sacrificando seu
motorista. Peyrefitte defende uma legislação mais rigorosa contra bandidos,
assassinos e terroristas - antecipando a idéia central que estamos emergindo da
Idade das Guerras para entrar na Idade do Crime.
Mas retornemos
agora ao tema principal das preocupações de Peyrefitte, expresso em escritos
que vão desde 1947, Le Sentiment de Confiance, ao Du Miracle en Économie e,
finalmente, a La Société de Confiance, de 1995. Com tradução patrocinada pelo
Instituto Liberal, essa obra será brevemente publicada pela Editora Topbooks,
sob o comando esclarecido e corajoso de José Mário Pereira e com tradução
primorosa de Cylene Bittencourt.
Comentemos a
questão levantada por Peyrefitte. Num artigo de 2 de março de 1997, Roberto
Campos se pergunta por que, apesar das cerebrizações de economistas e
sociólogos, o desenvolvimento econômico continua a ser essencialmente um
mistério. Campos oferece como exemplos de problemas não esclarecidos o
despertar da China de um sono de 500 anos, o "milagre brasileiro" da
década dos 70 que desembocou na "década perdida" dos 80, e os
"dominós" asiáticos que se tornaram "dínamos".
A pergunta
levantada é daquelas a que inúmeros pesquisadores têm tentado responder desde
que, em 1776, Adam Smith pesquisou As Causas da Riqueza das Nações, ora
salientando o ambiente cultural; ora favorecendo o tipo de estrutura
institucional no mercado aberto; ora apontando para a iniciativa de governantes
excepcionais que, convencidos dos méritos superiores da receita do livre câmbio
sobre o planejamento socialista centralizador e uma pertinaz tradição
patrimonialista, tomaram a iniciativa de atos concretos de sábia política,
graças aos quais um surto de desenvolvimento milagrosamente se registou. Estou,
neste caso, pensando especialmente em Pinochet, no Chile, e em Deng Xiaoping,
na China. As duas nações registram índices inéditos de desenvolvimento
acelerado, que a "crise" atual não parece haver senão temporariamente
interrompido.
Um caso particular
que desperta nossa curiosidade é o da França. Trata-se, afinal de contas, da
quarta economia mundial (depois dos EUA, Japão e Alemanha). É também uma nação
que, por não se decidir francamente nem por um lado, nem pelo outro, continua
dividida, angustiada e sofrendo de uma espécie de incurável moléstia social. A
pátria de Alain Peyrefitte não parece haver superado a fatídica cisão esquerda
X direita que a dialética do jacobinismo revolucionário em 1793 engendrou, com
seu contraponto no bonapartismo ditatorial; nem tampouco o absolutismo ("O
Estado sou Eu") herdado do Rei Sol, Luís XIV.
Para a integração
profícua na comunidade regional e num mundo globalizado, deve todo cidadão
convencer-se que a liberdade de iniciativa, a confiança na honestidade dos
outros, o espírito inventivo e o estado de direito, forte e limitado, são
definidos como as causas da riqueza coletiva - não havendo outras.
Ora, foi justamente
Peyrefitte quem melhor procurou analisar o que chama le mal français. Ao
vislumbrar as condições da sociedade de confiança que favorece o progresso, o
grande ensaísta enfrentou um de seus maiores desafios. No esforço hercúleo de
penetrar no "mistério" ou "milagre" do desenvolvimento (uma
de suas obras prévias chama-se, justamente, Du Miracle en Économie), nosso
amigo é o maior participante francês num debate ardente que data da publicação,
em 1835/40, da Démocratie en Amérique e, em 1905, de um das obras fundamentais
da sociologia moderna, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Falsidades
perversas - A polêmica que esses livros provocaram muito longe ainda está de se
esgotar - e confesso me haver dedicado, com furor, a promovê-la no Brasil. O
propósito weberiano era escaparmos das perversas falsidades do determinismo
materialista que fez a fortuna inidônea do marxismo. Peyrefitte elaborou
extensamente o tema da preeminência dos fatores morais, desde a publicação
daquele primeiro título há 20 anos, até seus mais recentes. E é esta obra
fundamental precisamente, a Sociedade de Confiança, que foi precedida de um
compte-rendu do colóquio internacional, realizado no Institut de France em
setembro de 1995 - em que me surpreendendi com a identidade dos problemas
levantados, na França e no Brasil, quanto às condições morais e culturais do
desenvolvimento e às políticas adequadas a seu sucesso.
No livro, o
pensador francês coroou seu trabalho monumental com um estudo histórico e
sociológico exaustivo da ética de livre iniciativa e incentivos ao setor
privado da economia, suscetíveis de assegurarem o progresso. Renovando com o
inquérito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de
descobrir, na liberdade e na simpatia, o segredo do progresso, ele acentua o
paralelismo entre o que chama a "divergência" religiosa entre os
latinos, autoritários, patrimonialistas e desconfiados - e os holandeses e
anglo-saxões, mais liberais, mais tolerantes, mais racionais e livres, e
nutrindo maior confiança nos méritos da troca e divisão do trabalho.
Questão de
confiança - A divergência explicaria o ritmo diverso de crescimento e progresso
das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um
lado, pelos sentimentos de confiança dos cidadãos uns nos outros; e, do outro,
pela capacidade do estado de direito de fazer cumprir o princípio pacta sunt
servanda. Pois não devem os contratos e a propriedade ser respeitados, sendo a
honestidade pressuposto de toda transação econômica?
O descompasso
histórico no ritmo de desenvolvimento se foi acentuando. Peyrefitte compara,
por exemplo, o take-off inglês a partir do século 18 com o declínio espanhol.
Chegando a nossos dias, diagnostica a mentalidade desconfiada, com o
pressuposto generalizado que, até prova em contrário, todo o mundo é desonesto
e sem-vergonha, se não pertence a nosso círculo de amizades e família. Os
governantes podem ser tacanhos, mas só a eles o povo acredita que cabe a tarefa
altruísta de nos salvar do egoísmo entranhado de todo capitalista. E insiste no
fato de que a resistência enfadonha a qualquer inovação e o conservadorismo
inquisitorial da Igreja cooperam para erguer barreiras burocráticas e impasses
legais a qualquer oportunidade de avanço nos países obedientes à ética
tridentina sob a qual fomos educados e sofremos.
Introversão -
Peyrefitte amplia e aprofunda estudos setoriais que, em The Moral Basis of a
Backward Society, foram realizados pelo sociólogo americano Edward Banfield ao
analisar o comportamento familista, desconfiado e introvertido numa aldeia do
mezzogiorno italiano, dominada pela Máfia; e pelo nipo-americano Francis
Fukuyama que, em seu livro Trust, tenta explicar o sucesso das sociedades da
Ásia oriental por motivações oriundas da disciplina da moral confuciana.
Os dados
elementares do desenvolvimento são a liberdade, a criatividade e a
responsabilidade. Mas utilizar os recursos da liberdade com autonomia
individual e explorar essas virtudes na fase educacional da vida fazem supor
uma confiança muito forte no homem, trabalhando dentro das normas de uma
sociedade livre. É esse o fator, por excelência, do desenvolvimento.
Querer o
desenvolvimento, o progresso, o enriquecimento do país comporta, na conclusão
do livro, a "confiança na confiança". Peyrefitte é otimista. O tom
hortativo do trabalho representa o esforço de um homem que, tendo ao morrer
alcançado o topo da elite intelectual francesa, incentiva seus compatriotas à
superação dos traços culturais viciosos que configuram o "mal
francês". Estamos em suma, em presença de um novo Tocqueville cujo valor e
reputação tenderão, estou certo, a crescer e se estender fora do âmbito da
língua e cultura francesas.
Fonte: O Estado de
S. Paulo, Domingo, 19 de dezembro de 1999
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