Para muitos norte-americanos, em especial os do Sul, a palavra Angola é
sinónimo de uma das prisões com a pior das famas, conhecida por «Alcatraz do
Sul», construída em 1901. Considerada uma das prisões de máxima segurança dos
Estados Unidos, a Penitenciária Estadual da Luisiana foi construída nos
terrenos de uma antiga plantação para onde vinham trabalhar escravos oriundos
dessa região africana.
Mas a mesma palavra Angola serviu para batizar uma outra plantação, no
norte do país, no estado do Maryland, em memória daquele que terá sido o
primeiro escravo angolano a pisar terras da América do Norte, no século XVII.
Pode-se dizer que António, ou Anthony Johnson, entrou nas páginas da
história dos Estados Unidos graças à sua tenaz personalidade, extraordinária
capacidade de trabalho e uma vontade inequívoca em trilhar e vencer todas as
curvas e as valas da vida. Mas o acaso acabaria por dar o empurrão definitivo
nesse sentido.
António, dito O Negro
Em 1619, um jovem foi capturado por traficantes de escravos na região
atual de Angola e vendido a um comerciante ao serviço da Virginia Company, na
primeira colónia inglesa na América. António, O Negro, como era conhecido,
depois de chegar a Jamestown, a bordo de um barco holandês, foi vendido a
Edward Bennett, um plantador de tabaco inglês, para trabalhar na sua
propriedade, Warresquioake.
Segundo registos da época, em especial da House of Burgess, este terá
sido o primeiro grupo de africanos a chegar à Virgínia, como registou o colono
John Rolfe: «Por volta de Agosto último (1619) chegou um holandês que nos
vendeu vinte negros». Para além de António – o único que traz a referência a
Angola – chegaram no mesmo grupo uma mulher chamada Ângela e um homem, John
Pedro, de trinta anos, o que indica que também poderão ter a mesma origem.
O facto de António e os restantes africanos terem nomes cristãos poderá
ser um indicador de terem sido comprados na cidade de São Paulo de Luanda, onde
terão permanecido algum tempo. Os escravos vendidos na cidade para as Américas
embarcavam na baía e muitos eram capturados com a ajuda de naturais de Angola,
mestiços e mulatos, como retratou o escritor Pepetela no seu último livro A
Sul. O Sombreiro.
Este era ainda o tempo dos primeiros colonos de uma América virgem e
inocente, onde os seus poucos habitantes – europeus, índios, judeus, negros –
viviam pacificamente integrados na comunidade de Jamestown, fundada em 1607, na
então Colónia da Virgínia, regida por regras e leis muito próximas da tão
desejada Terra Prometida. Para se ter uma ideia, o censo de 1622-25 regista
vinte e três africanos a viver em Jamestown, descritos como criados e não como
escravos.
Antes de 1654, os africanos dos territórios da Virgínia e Maryland
tinham um estatuto mais próximo de trabalhadores contratados do que de
escravos; estavam ligados por um contrato com um período máximo de 12 anos, no
final do qual recebiam terras e utensílios agrícolas para se estabelecerem por
sua conta – onde e como quisessem.
A preocupação principal da coroa inglesa era conseguir gente disponível
para desbravar e povoar as vastas terras recentemente ocupadas e estabelecer o
máximo de colónias ao longo da costa leste do território americano.
António revelou-se um excelente trabalhador na plantação de Edward
Bennett e este não demorou muito a afeiçoar-se ao jovem recém-chegado. Como
prova da sua estima, Edward permitiu-lhe trabalhar um pequeno terreno junto das
suas terras, onde António começou também a cultivar tabaco, milho e a criar
algumas cabeças de gado, embora continuasse vinculado ao inglês pelo contrato
de trabalho.
Em março de 1622, a plantação de Bennett foi atacada por índios e 52
pessoas foram massacradas. Apenas António e mais quatro pessoas sobreviveram ao
ataque.
Nesse mesmo ano, uma nova leva de africanos chegou à Virgínia no navio
Margaret e António apaixonou-se por Mary, a única escrava dessa leva trazida
para trabalhar na plantação. António e Mary casaram-se e tiveram quatro filhos,
dois rapazes e duas raparigas, numa união próspera que duraria quarenta anos.
Documentos da época dizem que António não terá chegado a cumprir o
contrato até ao fim, tendo ganho a sua liberdade muito antes dos 12 anos
estipulados e comprado a liberdade da sua mulher. A primeira coisa que fez foi
mudar o nome para Anthony Johnson, adotando um novo apelido, sinal de que não
era mais propriedade de ninguém.
Depois de ganhar a sua liberdade, a família mudou-se para o interior da
Virgínia, para uma pequena quinta onde começou a criar gado.
De acordo com registos da época, Anthony e Mary eram respeitados na sua
comunidade e reconhecidos pelo seu «trabalho árduo e pelos serviços prestados»,
como ficou registado na declaração de um tribunal, a propósito de uma disputa
de terras. Ao longo dos anos, a ambição de Anthony não parou e o angolano
rapidamente se tornou um grande proprietário, ao adquirir 125 hectares de
terras para si e para os seus filhos.
A história da vida de António teria sido igual à de milhões de outros
negros levados para as Américas não fosse uma teimosia sua levada até ao
limite.
Anthony compra Casor
Cada vez mais próspero, Anthony decidiu contratar cinco trabalhadores e
um escravo africano, de nome John Casor, para trabalhar nas suas terras.
Expirado o prazo contratual, Anthony recusou libertar Casor, alegando que o
tinha comprado e não contratado. Este decidiu então pedir ajuda a um agricultor
branco local, chamado Robert Parker, reivindicando os seus direitos.
Revoltado, Parker decidiu dar apoio e proteção a Casor. O processo
contra Casor parecia não vir a ter um desfecho favorável e Anthony decidiu
mudar de estratégia: deu entrada no tribunal com um processo contra Parker,
alegando que este mantinha ilegalmente em seu poder e ao seu serviço um
trabalhador que ainda estava vinculado a ele, Anthony. Casor, por sua vez,
tentava provar em tribunal que era apenas um trabalhador contratado e não um
escravo. Os juízes coloniais ficaram sem saber como resolver o caso. Pela
primeira vez os tribunais da Colónia da Virgínia viam-se confrontados com uma
situação em que uma pessoa reivindicava para si outra pessoa como propriedade
sua.
O tribunal decidiu a favor de Parker, libertando Casor, mas apenas
temporariamente, pois de imediato reviu a sua decisão e declarou que Casor
deveria retornar ao seu antigo dono, Anthony Johnson. E sendo Casor propriedade
de Anthony Johnson estava ao seu serviço para o resto da vida, como veio, de
facto, a acontecer.
Um precedente histórico
Para os historiadores norte-americanos, com esta decisão do tribunal,
Anthony Johnson ou António, o angolano, tornava-se o primeiro proprietário de
escravos da América. O tribunal abria assim um histórico precedente: Casor
tornava-se no primeiro indivíduo reconhecido pelas autoridades na América como
escravo, na Colónia da Virgínia, o que traria consequências terríveis para os
africanos nos três séculos seguintes.
Em 1653, um incêndio de enormes proporções destruiu a maior parte da
plantação da família de Johnson, obrigando-o a pedir ao tribunal uma isenção no
pagamento de impostos, pois mal tinham para viver. Dois anos mais tarde, talvez
fugindo aos vizinhos brancos hostis que lhe cobiçavam as terras, Anthony e
Mary, juntamente com os filhos John e Richard, mudaram-se para Somerset County,
em Maryland, a norte.
Aqui, na região ainda pouco povoada de Wicomico Creek, Anthony e a
família chegaram com 14 cabeças de gado e oito ovelhas. Arrendaram uma fazenda
com 120 hectares (Tonies Vineyard), para cultivar tabaco, onde Anthony viveria
até à sua morte, em 1670. A viúva Mary viveria ainda por mais dois anos.
Mas apesar de ser um homem inteligente, trabalhador e dinâmico, aos
olhos dos outros Anthony nunca deixou de ser o que era: um homem negro. Logo
após a sua morte, a maior parte das suas terras foram anexadas por um
agricultor branco, aproveitando uma decisão de um tribunal local que dizia que
«por ser negro, Anthony Johnson não era considerado um cidadão da Colónia da
Virgínia», e assim as suas terras passavam para as mãos da coroa inglesa.
Em 1677, John Johnson Jr., neto de Anthony e Mary, herdou os últimos 22
hectares do que restava das terras de Anthony e batizou a fazenda de «Angola»,
em memória à terra ancestral do avô, António. John Jr. não teve filhos e depois
de 1730 os registos da família de Anthony Johnson desaparecem por completo dos
arquivos.
Contrariando a ideia do proprietário de escravos negros ser
exclusivamente branco, o precedente aberto por Johnson – um negro proprietário
de escravo negro –, haveria de fazer alguma «escola» em alguns estados
escravocratas do sul dos Estados Unidos. A maior parte dos negros que
escravizaram os seus irmãos eram, na verdade, mulatos filhos dos proprietários
brancos nas grandes plantações.
Segundo um censo de 1830, a maioria dos negros livres proprietários de
escravos vivia no Estado do Luisiana e eram plantadores de cana-de-açúcar. Ao
todo, estes antigos escravos chegavam a possuir mais de 10 mil escravos nos
estados da Luisiana, Maryland, Carolina do Sul e Virgínia.
Publicado originalmente
na revista Africa 21, Março 2013 - por Joaquim Arena
Quer saber mais sobre este assunto, leia
este artigo de Robert Zimmerman: Our Own Mad Clockwork, aqui
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