Como investigar o mito da terra plana ajuda os
professores de História da Ciência?
Primeiro, como historiador, eu tenho que admitir que isso nos diz algo
sobre o estado precário da História. A História é precária por três razões: a
boa é que é extraordinariamente difícil determinar “o que realmente aconteceu”
em qualquer série de eventos; a ruim é que o conhecimento histórico é
geralmente descuidado; a razão mais temível é que muito do conhecimento
histórico consiste em contorcionismo de evidências para encaixá-las em modelos
ideológicos. Como exemplos podemos apontar as produções históricas do início e
meados do século XX, a respeito do nazismo e do comunismo.
As distorções mais comuns em nossos dias são produzidas pelos
incessantes ataques de escritores seculares à cristandade e a religião de modo
geral, principalmente durante o último século e meio, ataques estes,
responsáveis pela atual zombaria que se faz do Cristianismo em meios acadêmicos
e jornalísticos.
Um curioso exemplo de descuido com o passado com a intenção de difamar
os cristãos é um erro histórico amplamente reconhecido, um erro que a
Historical Society of Britain, há alguns anos, listou em um curto compêndio das
mais propagadas ilusões históricas. É a noção de que as pessoas acreditavam que
a terra era plana — especialmente os cristãos medievais.
É preciso estabelecer que, com raríssimas exceções, nenhuma pessoa
educada na história da Civilização Ocidental do terceiro século a.C. em diante,
acreditava que a terra era plana.
A noção de uma terra redonda aparece, pelo menos, seis séculos antes de
Cristo, com Pitágoras, seguido por Aristóteles, Euclides e Aristarco, em meio a
outros que observaram a esfericidade da Terra. Ainda que existissem algumas
discordâncias — Leukippos e Demócrito, por exemplo — , nos tempos de
Eratóstenes (300 a.C.), Crates (200 a.C.), Strabo (300 a.C.), e Ptolomeu (100
d.C.), a esfericidade da terra era aceita por todos os Gregos e Romanos educados.
A situação não foi diferente com o advento do Cristianismo. Alguns
poucos — pelo menos dois, no máximo cinco — pais do cristianismo primitivo
negaram a esfericidade da terra ao interpretar passagens como Salmos 104:2–3,
como se tivessem significado geográfico, ao invés de metafórico. Por outro
lado, dezenas de milhares teólogos cristãos, poetas, artistas e cientistas,
adotaram a ideia de uma terra esférica durante a história do cristianismo,
tanto em seu início, quanto no período medieval e moderno da Igreja. O ponto é:
nenhuma pessoa educada acreditava no contrário.
Historiadores da ciência tem provado esse ponto por, pelo menos, 70
anos (mais recentemente Edward Grant, David Lindber, Daniel Woodward e Robert
S. Westman), sem fazer avanços práticos notáveis contra o erro. Crianças em
idade escolar nos EUA, Europa e Japão aprendem essa mesma velha tolice. Como e
por que esse absurdo surge?
Em minhas pesquisas, eu procurei entender o quão velha é a ideia de que
cristãos medievais acreditavam que a terra era plana. Eu, obviamente, não
encontrei essa crença entre os cristãos medievais. Nem entre os protestantes
anti-católicos. Nem em Copérnico ou Galileu ou seus seguidores, que haviam
demonstrado a superioridade do modelo heliocêntrico, mas não de uma terra
esférica. Eu tinha certeza que iria encontrar isso entre os filósofos do século
XVIII, ou entre todos os críticos do cristianismo, mas nenhuma palavra. Eu
ainda estava atônito a procura do surgimento dessa ideia.
Ninguém antes de 1830 acreditava que os medievais criam em uma
terra plana.
A ideia foi estabelecida, quase contemporaneamente, por um francês e um
americano, entre os quais eu não pude encontrar conexões, além do fato de ambos
estarem em Paris no mesmo momento. O primeiro foi Antoine-Jean Letronne
(1787–1848), um acadêmico de fortes preconceitos anti-religiosos, que estudou
geografia e patrística e que inteligentemente utilizou-se dos dois para difamar
os pais da Igreja e seus sucessores medievais como se eles acreditassem na
terra plana, em sua obra On the Cosmographical Ideas of the Church Fathers
(1834). O americano não foi outro senão nosso conhecido contador de
estórias, Washington Irving (1783–1859), que adorava escrever ficções
históricas mascaradas de História. Suas produções absurdas sobre os primeiros
anos de Nova Iorque e da vida de Washington foram seguidas por sua história de
Cristóvão Colombo (1828). Foi ele quem inventou a imagem indelével do jovem
Colombo, um “simples marinheiro” que apareceu perante uma platéia de obscuros
inquisidores, cercado por teólogos no Concílio de Salamanca, todos estes criam,
segundo Irving, que a Terra era plana como um prato. Bom, sim, houve uma
reunião em Salamanca em 1491, mas a versão de Irving, para citar um distinto
historiador moderno de Colombo, é “pura fantasia. Washington Irving aproveitou
sua oportunidade para uma cena pitoresca”, criou um relato fictício desse
“concílio universitário inexistente” e “deixou sua imaginação o levar
completamente… a estória toda é um absurdo enganoso e malicioso.”
Mas agora, por que os falsos apontamentos de Letronne e Irving se
fixaram e, ainda nos anos 1860, começaram a ser propagados em escolas e
apostilas como se fossem verdades?
A resposta é que essa falsidade sobre a terra esférica se tornou uma
colorida e inesquecível parte de uma longa mentira: o mito da eterna guerra
entre ciência (bem) e religião (mal) por toda a história do Ocidente. Essa
vasta teia de pantomimas e patuscadas foi inventada e propagada pelo
influente historiador John Draper (1811–1882) e seus prestigiosos seguidores,
como Andrew Dickson White (1832–1918), o presidente da Cornell University, que
fez questão de que esse embuste fosse perpetuado em textos, enciclopédias, e
mesmo em supostos cursos, até os nossos dias. Uma versão viva da mentira pode
ser encontrada na obra The Discoverers, de Daniel Boorstin’s, encontrada
em qualquer livraria ou biblioteca.
A razão para promover a mentira a respeito da esfericidade e a ideia
geral de que religião e ciência são inimigas naturais e eternas na sociedade
Ocidental, é a defesa do Darwinismo.
A resposta é, na verdade, mais complicada que essa simples afirmação. A mentira
da terra plana é munição contra criacionistas. O argumento é simples e
poderoso, senão elegante: “Olhe como esses cristãos são estúpidos. Eles
estão sempre no caminho da ciência e do progresso. Esse pessoal que nega a
evolução hoje é da mesma laia que aquelas pessoas idiotas que, por pelo menos
mil anos, negou que a Terra era redonda. Quão estúpido você pode ser?”
Mas essa não é a verdade.
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