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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O caso de David Reimer e a questão da identidade de gênero

Por Sérgio Telles

Há cerca de dois meses suicidou-se nos Estados Unidos um homem de 38 anos chamado David Reimer. Era tido como um dos pacientes mais famosos na história recente da medicina, dado ter sido objeto de uma polêmica experiência médica. Como não é um caso muito conhecido aqui no Brasil, inicialmente farei um relato do mesmo e posteriormente farei alguns comentários a seu respeito.

A história

Em 1965, na cidade de Winnipeg, nos Estados Unidos, Janet e John Reimer, um jovem casal de fazendeiros mal saído da adolescência deu à luz a Brian e Bruce, um par de gêmeos. Aos 8 meses de idade, por indicação médica, as crianças foram levadas a um hospital onde sofreriam uma circuncisão tida como de rotina. Num episódio que nunca foi totalmente esclarecido, foi usada uma agulha de eletrocauterização ao invés de um bisturi para retirar o prepúcio de Brian, procedimento que destruiu completamente seu pênis.

Pouco depois, os pais de Brian e Bruce viram, por acaso, na televisão uma entrevista com o psicólogo Dr. John Money, da Jonhs Hopkins University de Baltimore, na qual ele asseverava que os bebês nasciam “neutros” e teriam sua identidade definida como masculina ou feminina (identidade de gênero) exclusivamente em função da maneira pela qual seriam criados Tal informação lhes pareceu muito apropriada para a resolução do problema de Brian, o filho mutilado. Logo procuraram aquele especialista, que imediatamente se dispôs a atendê-los, quando indicou uma mudança cirúrgica de sexo, que, realizada, transformou Brian numa menina, “Brenda”.

Money orientou os pais de que deveriam educar “Brenda” como menina, agindo como se a criança tivesse nascido com o sexo feminino, sem mais falar do que lhe tinha ocorrido de fato.

Os pais de Brian-Brenda não sabiam, mas Money - um psicólogo nascido na Nova Zelândia no seio de uma família regida por rígidos preceitos protestantes - era conhecido como uma espécie de guru da sexualidade e preconizava comportamentos sexuais ousados, embora que compatíveis com o espírito da época nos Estados Unidos, quando vigorava o protesto contra o Viet-Nam, o movimento hippie questionava tradições culturais arraigadas e o movimento feminista explodia com grande radicalidade. Money defendia os casamentos “abertos”, nos quais os cônjuges poderiam ter amantes com consentimento mútuo; estimulava o sexo grupal e bissexual, além de, em momentos mais extremados, parecer tolerar o incesto e a pedofilia.

O interesse de Money no caso de Brian não poderia ser maior. Como defendia a idéia de que as diferenças de comportamento entre os sexos eram decorrentes de fatores sócio-culturais e não biológicos (nature versus nurture) - tese aclamada pelas feministas de então -, a mutilação de Brian oferecia-lhe uma excelente oportunidade de colocar à prova sua teoria. Havia - em sua opinião - a indicação para a mudança cirúrgica de sexo, os pais tratariam a criança conforme sua orientação e o experimento teria uma contraprova natural, pois havia um irmão gêmeo idêntico, univitelino, que serviria de controle.

Money tinha anteriormente colaborado nos procedimentos pioneiros de “realinhamento sexual” (sex reassignment) em crianças com hermafroditismo. Brian foi a primeira criança nascida normalmente (com definição sexual masculina) a ser submetida a esse processo.

A acreditar nos vários relatos que Money publicou no correr dos anos 70, a experiência teria sido um grande sucesso. Os gêmeos estavam felizes em seus papeis estabelecidos: Bruce era um menino forte e levado; “Brenda”, sua `irmã', era uma doce menininha. Em função dessa experiência, Money ficou mais famoso. A revista TIME dedicou-lhe uma longa matéria e o incluiu num capítulo sobre gêmeos em seu famoso livro Man & Woman, Boy & Girl.

Como inexplicavelmente deixou de publicar as evoluções do caso, o fato chamou a atenção de um pesquisador rival, Dr. Milton Diamond, da Universidade do Havaí, que procurou informações e reconstruiu a verdade sobre o mesmo, publicando-o num artigo em coautoria com Keith Sigmundson, nos Archives of Pediatrics and Adolescent Medicine.

A verdade descrita por Diamond era muito diferente da versão sustentada por Money. Desde os dois anos, “Brenda” rasgava suas roupas de menina e se recusava a brincar com bonecas, disputando com o irmão Bruce seus brinquedos. Na escola, era permanentemente hostilizada pelo comportamento masculinizado e pela insistência em urinar de pé. Queixava-se insistentemente aos pais por não se sentir como uma menina. Mantendo as orientações de Money, os pais diziam-lhe que era uma “fase” que logo superaria.

Os pais levavam periodicamente os dois filhos para sessões de “psicoterapia” com Money. Segundo consta, tais sessões foram profundamente traumáticas para ambas as crianças. Nelas, possivelmente num esforço de estabelecer as diferenças de comportamento sexual entre homem e mulher, Money lhes mostrava fotos sexuais explícitas e teria feito as criançs encenarem posições de coito. Esta última afirmação é rebatida por defensores de Money, que a vêem como produto de “falsas memórias” por parte das crianças. Esses defensores alegam que toda a conduta de Money deve ser entendida no contexto cultural e médico da época, já que - na ocasião - as técnicas de reconstrução artificial do pênis eram inexistentes ou rudimentares.

Quando “Brenda” tinha 14 anos, não agüentando mais a situação, os pais consultaram um psiquiatra de sua cidade, que sugeriu dizer toda a verdade para “Brenda”. Tal informação teve um efeito profundo e transformador. Posteriormente, “Brenda” disse: “De repente, tudo fazia sentido. Ficava claro por que me sentia daquela forma. Eu não estava louco”.

“Brenda” imediatamente se engajou numa busca do sexo perdido. Fez inúmeras cirurgias para fechar sua vagina artificial, recompor a genitália masculina com a implantação de próteses de pênis e testículos, retirar os seios crescidos a base de estrógenos, além de iniciar tratamentos hormonais para masculinizar sua musculatura. Significativamente, não retomou seu nome inicial “Brian”, escolhendo chamar-se “David”.

Nesse ínterim, a mãe, que se sentia culpada e desorientada com a situação da “filha”, tinha entrado em depressão e, a certa altura, tentara suicídio. O pai desenvolveu um alcoolismo grave e o irmão gêmeo Bruce, começara a usar drogas e a praticar atos delinquências ao atingir a adolescência. “Brenda”, agora “David”, apesar de todas as cirurgias e da nova identidade masculina, mergulhara também numa séria depressão e tentou suicídio pela primeira vez aos 20 anos.

Quando tinha 30 anos, David foi encontrado por Diamond, que, como dito acima, desconfiara do motivo que levara Money a interromper, sem maiores explicações, o relato de um caso que reputava de tanto sucesso. David soube que, até então, seu caso era mundialmente conhecido, apresentado na literatura médica como um grande sucesso e usado para legitimar procedimentos de alteração cirúrgica de sexo em crianças hermafroditas ou que sofreram algum tipo de mutilação. Tal como Diamond e Sigmundsen, David ficou indignado com tal impostura, e resolveu colaborar com aqueles dois profissionais, dando origem ao trabalho que recolocou a verdade em circulação, engajando-se numa campanha para evitar que outros passassem pelos mesmos sofrimentos que ele tivera de suportar. O trabalho de Diamond foi largamente divulgado e chegou à grande mídia, jornais e televisões norte-americanos.

Foi assim que John Colapinto, redator da revista Rolling Stone, tomou conhecimento da vida de David. Tendo em vista entrevistá-lo, Colapinto procurou David e desse encontro surgiu a idéia de escrever sua biografia, que tomou o nome de As Nature made him - The Boy who was raised as a girl. Os lucros da publicação foram divididos meio-a-meio entre Colapinto e David, assim como sua venda para o cinema, já que o livro despertou o interesse do diretor Peter Jackson de Lord of the rings (“O Senhor dos Anéis”). No momento, o estúdio Dreamworks de Spielberg, desenvolve um projeto para futura realização.

David se casara com uma bondosa mulher que o suportou por 14 anos. Cansada de seu caráter soturno, melancólico, ela propôs a separação. Poucos dias depois, David foi matou-se com um tiro. Estava com 38 anos.

Outros elementos poderiam ter contribuído para seu gesto. Seu irmão Bruce, com quem estava brigado, se suicidara dois anos antes, com uma overdose de medicação para esquizofrenia, um diagnóstico que lhe haviam dado. Além do mais, David perdera todas suas economias advindas dos direitos autorais de sua biografia e futuro filme nela baseado num investimento indicado por um amigo.

É verdade que o suicídio de David Reimer poderia ser atribuído a cargas genéticas, já que sabemos da depressão de sua mãe e do grave alcoolismo de seu pai, sem mencionar o suicídio de seu irmão gêmeo. Mas é difícil ignorar o peso das circunstâncias trágicas que se abateram sobre essa família.

Diga-se que, ao ser divulgado o suicídio de David Reimer, Money, que continua como professor emeritus na Johns Hopkins University, foi procurado pela imprensa mas não quis manifestar-se.

Comentários

1 - A primeira observação diz respeito à conduta ética de Money. Partindo de alguns pressupostos teóricos, elabora uma hipótese sobre a organização da identificação de gênero sexual. Ao ser presenteado pelo acaso com um caso que possibilita testá-la na realidade, não hesita em realizá-la.

Até aí, parece-me que Money se comporta dentro dos limites da ética científica.

Dela se afasta inteiramente ao sonegar os dados que evidenciavam o fracasso de sua experiência e ao forjar um sucesso inexistente. Dessa forma, criminosamente induzia em erro a comunidade médica, que, desconhecendo os resultados da experiência, seria levada a aplicá-la em novos casos semelhantes ao de David Reimer.

Não fora o trabalho detetivesco de Diamond, tudo ficaria encoberto.

Os motivos que levariam Money a agir dessa forma ficam como matéria de especulação. Mas podemos afirmar que títulos institucionais importantes não dão garantia de honestidade intelectual e moral a seus portadores.

2 - O malogro da experiência de Money poderia levar à conclusão de que a definição da identidade de gênero (masculino ou feminino) depende basicamente de fatores orgânico-biologicos e genéticos. Mas essa seria uma conclusão errada. Money se equivocou ao pressupor como opostos e mutuamente excludentes os fatores culturais e biológicos, quando eles interagem sinérgicamente. Outro erro fundamental de Money foi não levar em conta a dimensão inconsiente do psiquismo humano, como veremos a seguir.

Uma primeira observação que salta aos olhos quando lemos a conduta de Money é seu descaso com o inevitável luto provocados em todos, nos pais e nas crianças, pela grave mutilação do bebê Brian. Ao invés de acolher sua depressão e ajudá-los a elaborá-la, Money faz uma proposta que tem todos os elementos de uma reação maníaca - desconsidera o impacto da perda e onipotentemente se propõe a criação de um novo bebê, não mais um menino mutilado e sim uma menina sadia. Mais ainda, aconselha que o assunto seja esquecido e acredita que os pais conseguiriam criá-la como uma menina, sem levar em conta que o fato era de conhecimento da família e seus amigos.

Como Money ignora o inconsciente e suas formações, desconhece sua decisiva participação na constituição do sujeito e de sua identidade sexual.

Teoricamente, os pais terão mais possibilidades de transmitir para os filhos uma boa identidade de gênero - entenda-se por isso uma identidade sexual conforme com o sexo biológico - tanto mais terão elaborado - eles mesmos - seus complexos de castração e de édipo. Mais os próprios pais estão satisfeitos com sua própria identidade de gênero, mais eles conseguirão fazer com que os filhos se adeqüem às suas próprias identidades de gênero. Dizendo de outra forma: a influência da educação e da cultura sobre a identidade de gênero de uma criança, não depende da deliberação consciente e voluntária dos pais e sim de seus desejos e conflitos inconscientes.

A atitude inconsciente da mãe de David Reimer sobre sua identidade sexual provavelmente era o oposto daquela das mães de travestis e transexuais descritas por Robert Stoller. A mãe de Reimer nunca teria rejeitado a masculinidade do filho e não teria aceitado tratá-lo como menina, embora externamente cumprisse com as obrigações impostas por Money. Seu desejo inconsciente era de ter um filho homem, e isso terminou por acontecer, apesar de todos os empecilhos. As mães de travestis e transexuais, como mostra detalhadamente Stoller, são mulheres que não toleram a masculinidade do filho e a destroem de várias maneiras.

Diz ele: “Vimos que um homem anatomicamente normal pode tornar-se masculino e acreditar-se homem, ou feminino e acreditar-se mulher, surgindo o resultado de ambas situações da psicodinâmica de sua família. Por volta do primeiro ano de vida, ele irá desenvolver as raízes fundamentais e aparentemente inalteráveis de sua masculinidade ou feminilidade e os processos pelos quais passou, ao invés de serem inevitáveis, serão o resultado das personalidades de seus pais e da maneira como eles se relacionam com o menino, física e psicologicamente. Desta maneira, o destino de uma pessoa pode, sob alguns aspectos, estar muito mais fora do alcance de suas mãos do que o poderia indicar o conceito usual de uma dinâmica inconsciente”.- em “A Experiência Transexual” - p.37 (grifos meus).

Em seu outro livro, “Masculinidade e Feminilidade - Apresentações de Gênero” (Artes Médicas - Porto Alegre - 1993), diz Stoller: “A identidade de gênero nuclear resulta, em minha opinião, do seguinte: I) Uma força biológica, genética (...); II) A designação do sexo no nascimento: a mensagem que a aparência dos genitais externos do bebê leva àqueles que podem designar o sexo - o médico que está atendendo e os pais - e os efeitos inequívocos subseqüentes desta designação para convencê-los do sexo da criança; III) A influência incessante das atitudes dos pais, especialmente das mães, sobre o sexo daquele bebê, e a interpretação dessas percepções por parte do bebê - pela sua capacidade crescente de fantasiar - como acontecimentos, isto é, experiências motivadas, significativas; IV) fenômenos bio-psíquicos, efeitos pós-natais precoces causados por padrões habituais de manejo do bebê (...),esse item está ligado com o III, mas é listado à parte por ênfase e para distingui-lo dos processos mentais; V) desenvolvimento do ego corporal (...)confirmando para o bebê as convicções dos pais a respeito do sexo de seu filho”. (p.30)(grifos meus).

A revista VEJA de 16/06/04 traz a notícia de um garoto alemão de 13 anos que será o mais jovem paciente a trocar de sexo por não se sentir identificado com o masculino.. Qual seria a diferença entre o desejo desse garoto, que está biologicamente habilitado para o exercício da masculinidade e dela abdica, desejando uma operação que o deixe com o sexo trocado, e o desejo de David Reimer, que tão bravamente lutou para recuperar seu sexo perdido? A possível resposta, como vimos acima, residiria no desejo consciente e inconsciente dos pais e na forma como eles encaravam o sexo desse garoto.

A rejeição consciente e deliberada por parte de determinadas mães frente a definição sexual de seus filhos é bem documentada por Stoller em seus vários casos. Historicamente, lembra o caso do poeta alemão Rainer Maria Rilke, que “foi criado exatamente como uma menina, até os seis anos, por sua mãe (e inteiramente contra os desejos de seu pai, que queria que ele fosse um soldado) para compensar a perda de uma irmã mais velha do menino, que morreu na infância. Isso é descrito com detalhes no livro Die Jugend Rainer Maria Rilke, de Carl Sieber, Insel-Verlag, 1932. (A Experiência Transexual - Robert J. Stoller - Imago - Rio - 1982). Lembramos ainda o caso de Oscar Wilde, que até os dez anos foi tratado “no que dizia respeito a roupas, hábitos e companhias” como uma menina. (Oscar Wilde, Richard Ellman, Companhia das Letras, 1987, p.27)

Voltando ao caso David Reimer, não é difícil constatar o efeito desagregador e mortífero que a mutilação acidental e a conseqüente experiência de Money teve sobre toda a família, culminando com o suicídio dos dois gêmeos.

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