Há cerca de dois meses suicidou-se nos Estados Unidos um homem de
38 anos chamado David Reimer. Era tido como um dos pacientes mais famosos na
história recente da medicina, dado ter sido objeto de uma polêmica experiência
médica. Como não é um caso muito conhecido aqui no Brasil, inicialmente farei
um relato do mesmo e posteriormente farei alguns comentários a seu respeito.
A história
Em 1965, na cidade de Winnipeg, nos Estados Unidos, Janet e John Reimer,
um jovem casal de fazendeiros mal saído da adolescência deu à luz a Brian e
Bruce, um par de gêmeos. Aos 8 meses de idade, por indicação médica, as
crianças foram levadas a um hospital onde sofreriam uma circuncisão tida como
de rotina. Num episódio que nunca foi totalmente esclarecido, foi usada
uma agulha de eletrocauterização ao invés de um bisturi para retirar o prepúcio
de Brian, procedimento que destruiu completamente seu pênis.
Pouco depois, os pais de Brian e Bruce viram, por acaso, na televisão
uma entrevista com o psicólogo Dr. John Money, da Jonhs Hopkins University de
Baltimore, na qual ele asseverava que os bebês nasciam “neutros” e teriam sua
identidade definida como masculina ou feminina (identidade de gênero)
exclusivamente em função da maneira pela qual seriam criados Tal informação
lhes pareceu muito apropriada para a resolução do problema de Brian, o filho
mutilado. Logo procuraram aquele especialista, que imediatamente se dispôs a
atendê-los, quando indicou uma mudança cirúrgica de sexo, que, realizada,
transformou Brian numa menina, “Brenda”.
Money orientou os pais de que deveriam educar “Brenda” como menina,
agindo como se a criança tivesse nascido com o sexo feminino, sem mais falar do
que lhe tinha ocorrido de fato.
Os pais de Brian-Brenda não sabiam, mas Money - um psicólogo nascido na
Nova Zelândia no seio de uma família regida por rígidos preceitos protestantes
- era conhecido como uma espécie de guru da sexualidade e preconizava
comportamentos sexuais ousados, embora que compatíveis com o espírito da época
nos Estados Unidos, quando vigorava o protesto contra o Viet-Nam, o movimento
hippie questionava tradições culturais arraigadas e o movimento feminista
explodia com grande radicalidade. Money defendia os casamentos “abertos”, nos
quais os cônjuges poderiam ter amantes com consentimento mútuo; estimulava o
sexo grupal e bissexual, além de, em momentos mais extremados, parecer tolerar
o incesto e a pedofilia.
O interesse de Money no caso de Brian não poderia ser maior. Como
defendia a idéia de que as diferenças de comportamento entre os sexos eram
decorrentes de fatores sócio-culturais e não biológicos (nature versus
nurture) - tese aclamada pelas feministas de então -, a mutilação de Brian
oferecia-lhe uma excelente oportunidade de colocar à prova sua teoria. Havia -
em sua opinião - a indicação para a mudança cirúrgica de sexo, os pais
tratariam a criança conforme sua orientação e o experimento teria uma
contraprova natural, pois havia um irmão gêmeo idêntico, univitelino, que
serviria de controle.
Money tinha anteriormente colaborado nos procedimentos pioneiros de
“realinhamento sexual” (sex reassignment) em crianças com
hermafroditismo. Brian foi a primeira criança nascida normalmente (com
definição sexual masculina) a ser submetida a esse processo.
A acreditar nos vários relatos que Money publicou no correr dos anos 70,
a experiência teria sido um grande sucesso. Os gêmeos estavam felizes em seus
papeis estabelecidos: Bruce era um menino forte e levado; “Brenda”, sua
`irmã', era uma doce menininha. Em função dessa experiência, Money ficou mais
famoso. A revista TIME dedicou-lhe uma longa matéria e o incluiu num capítulo
sobre gêmeos em seu famoso livro Man & Woman, Boy & Girl.
Como inexplicavelmente deixou de publicar as evoluções do caso, o fato
chamou a atenção de um pesquisador rival, Dr. Milton Diamond, da Universidade
do Havaí, que procurou informações e reconstruiu a verdade sobre o mesmo,
publicando-o num artigo em coautoria com Keith Sigmundson, nos Archives
of Pediatrics and Adolescent Medicine.
A verdade descrita por Diamond era muito diferente da versão sustentada
por Money. Desde os dois anos, “Brenda” rasgava suas roupas de menina e se
recusava a brincar com bonecas, disputando com o irmão Bruce seus brinquedos.
Na escola, era permanentemente hostilizada pelo comportamento masculinizado e
pela insistência em urinar de pé. Queixava-se insistentemente aos pais por não
se sentir como uma menina. Mantendo as orientações de Money, os pais diziam-lhe
que era uma “fase” que logo superaria.
Os pais levavam periodicamente os dois filhos para sessões de
“psicoterapia” com Money. Segundo consta, tais sessões foram profundamente
traumáticas para ambas as crianças. Nelas, possivelmente num esforço de
estabelecer as diferenças de comportamento sexual entre homem e mulher, Money
lhes mostrava fotos sexuais explícitas e teria feito as criançs encenarem
posições de coito. Esta última afirmação é rebatida por defensores de Money,
que a vêem como produto de “falsas memórias” por parte das crianças. Esses
defensores alegam que toda a conduta de Money deve ser entendida no contexto
cultural e médico da época, já que - na ocasião - as técnicas de reconstrução
artificial do pênis eram inexistentes ou rudimentares.
Quando “Brenda” tinha 14 anos, não agüentando mais a situação, os pais
consultaram um psiquiatra de sua cidade, que sugeriu dizer toda a verdade para
“Brenda”. Tal informação teve um efeito profundo e transformador.
Posteriormente, “Brenda” disse: “De repente, tudo fazia sentido. Ficava claro
por que me sentia daquela forma. Eu não estava louco”.
“Brenda” imediatamente se engajou numa busca do sexo perdido. Fez
inúmeras cirurgias para fechar sua vagina artificial, recompor a genitália
masculina com a implantação de próteses de pênis e testículos, retirar os seios
crescidos a base de estrógenos, além de iniciar tratamentos hormonais para
masculinizar sua musculatura. Significativamente, não retomou seu nome inicial
“Brian”, escolhendo chamar-se “David”.
Nesse ínterim, a mãe, que se sentia culpada e desorientada com a
situação da “filha”, tinha entrado em depressão e, a certa altura, tentara
suicídio. O pai desenvolveu um alcoolismo grave e o irmão gêmeo Bruce, começara
a usar drogas e a praticar atos delinquências ao atingir a adolescência.
“Brenda”, agora “David”, apesar de todas as cirurgias e da nova identidade
masculina, mergulhara também numa séria depressão e tentou suicídio pela
primeira vez aos 20 anos.
Quando tinha 30 anos, David foi encontrado por Diamond, que, como dito
acima, desconfiara do motivo que levara Money a interromper, sem maiores
explicações, o relato de um caso que reputava de tanto sucesso. David soube
que, até então, seu caso era mundialmente conhecido, apresentado na literatura
médica como um grande sucesso e usado para legitimar procedimentos de alteração
cirúrgica de sexo em crianças hermafroditas ou que sofreram algum tipo de
mutilação. Tal como Diamond e Sigmundsen, David ficou indignado com tal
impostura, e resolveu colaborar com aqueles dois profissionais, dando origem ao
trabalho que recolocou a verdade em circulação, engajando-se numa campanha para
evitar que outros passassem pelos mesmos sofrimentos que ele tivera de
suportar. O trabalho de Diamond foi largamente divulgado e chegou à grande
mídia, jornais e televisões norte-americanos.
Foi assim que John Colapinto, redator da revista Rolling Stone,
tomou conhecimento da vida de David. Tendo em vista entrevistá-lo, Colapinto
procurou David e desse encontro surgiu a idéia de escrever sua biografia, que
tomou o nome de As Nature made him - The Boy who was raised as a girl.
Os lucros da publicação foram divididos meio-a-meio entre Colapinto e David,
assim como sua venda para o cinema, já que o livro despertou o interesse do
diretor Peter Jackson de Lord of the rings (“O Senhor dos
Anéis”). No momento, o estúdio Dreamworks de Spielberg,
desenvolve um projeto para futura realização.
David se casara com uma bondosa mulher que o suportou por 14 anos.
Cansada de seu caráter soturno, melancólico, ela propôs a separação. Poucos
dias depois, David foi matou-se com um tiro. Estava com 38 anos.
Outros elementos poderiam ter contribuído para seu gesto. Seu irmão
Bruce, com quem estava brigado, se suicidara dois anos antes, com uma overdose de
medicação para esquizofrenia, um diagnóstico que lhe haviam dado. Além do mais,
David perdera todas suas economias advindas dos direitos autorais de sua
biografia e futuro filme nela baseado num investimento indicado por um amigo.
É verdade que o suicídio de David Reimer poderia ser atribuído a cargas
genéticas, já que sabemos da depressão de sua mãe e do grave alcoolismo de seu
pai, sem mencionar o suicídio de seu irmão gêmeo. Mas é difícil ignorar o peso
das circunstâncias trágicas que se abateram sobre essa família.
Diga-se que, ao ser divulgado o suicídio de David Reimer, Money, que
continua como professor emeritus na Johns Hopkins University,
foi procurado pela imprensa mas não quis manifestar-se.
Comentários
1 - A primeira observação diz respeito à conduta ética de Money.
Partindo de alguns pressupostos teóricos, elabora uma hipótese sobre a organização
da identificação de gênero sexual. Ao ser presenteado pelo acaso com um caso
que possibilita testá-la na realidade, não hesita em realizá-la.
Até aí, parece-me que Money se comporta dentro dos limites da ética
científica.
Dela se afasta inteiramente ao sonegar os dados que evidenciavam o
fracasso de sua experiência e ao forjar um sucesso inexistente. Dessa forma,
criminosamente induzia em erro a comunidade médica, que, desconhecendo os
resultados da experiência, seria levada a aplicá-la em novos casos semelhantes
ao de David Reimer.
Não fora o trabalho detetivesco de Diamond, tudo ficaria encoberto.
Os motivos que levariam Money a agir dessa forma ficam como matéria de
especulação. Mas podemos afirmar que títulos institucionais importantes não dão
garantia de honestidade intelectual e moral a seus portadores.
2 - O malogro da experiência de Money poderia levar à conclusão de que a
definição da identidade de gênero (masculino ou feminino) depende basicamente
de fatores orgânico-biologicos e genéticos. Mas essa seria uma conclusão
errada. Money se equivocou ao pressupor como opostos e mutuamente excludentes
os fatores culturais e biológicos, quando eles interagem sinérgicamente. Outro
erro fundamental de Money foi não levar em conta a dimensão inconsiente do
psiquismo humano, como veremos a seguir.
Uma primeira observação que salta aos olhos quando lemos a conduta
de Money é seu descaso com o inevitável luto provocados em todos, nos pais e
nas crianças, pela grave mutilação do bebê Brian. Ao invés de acolher sua
depressão e ajudá-los a elaborá-la, Money faz uma proposta que tem todos os
elementos de uma reação maníaca - desconsidera o impacto da perda e
onipotentemente se propõe a criação de um novo bebê, não mais um menino
mutilado e sim uma menina sadia. Mais ainda, aconselha que o assunto seja
esquecido e acredita que os pais conseguiriam criá-la como uma menina, sem
levar em conta que o fato era de conhecimento da família e seus amigos.
Como Money ignora o inconsciente e suas formações, desconhece sua
decisiva participação na constituição do sujeito e de sua identidade sexual.
Teoricamente, os pais terão mais possibilidades de transmitir para os
filhos uma boa identidade de gênero - entenda-se por isso uma identidade sexual
conforme com o sexo biológico - tanto mais terão elaborado - eles mesmos - seus
complexos de castração e de édipo. Mais os próprios pais estão satisfeitos com
sua própria identidade de gênero, mais eles conseguirão fazer com que os filhos
se adeqüem às suas próprias identidades de gênero. Dizendo de outra forma: a
influência da educação e da cultura sobre a identidade de gênero de uma
criança, não depende da deliberação consciente e voluntária dos pais e sim de
seus desejos e conflitos inconscientes.
A atitude inconsciente da mãe de David Reimer sobre sua identidade
sexual provavelmente era o oposto daquela das mães de travestis e transexuais
descritas por Robert Stoller. A mãe de Reimer nunca teria rejeitado a
masculinidade do filho e não teria aceitado tratá-lo como menina, embora
externamente cumprisse com as obrigações impostas por Money. Seu desejo
inconsciente era de ter um filho homem, e isso terminou por acontecer, apesar
de todos os empecilhos. As mães de travestis e transexuais, como mostra
detalhadamente Stoller, são mulheres que não toleram a masculinidade do filho e
a destroem de várias maneiras.
Diz ele: “Vimos que um homem anatomicamente normal pode tornar-se
masculino e acreditar-se homem, ou feminino e acreditar-se mulher, surgindo o
resultado de ambas situações da psicodinâmica de sua família. Por volta do
primeiro ano de vida, ele irá desenvolver as raízes fundamentais e
aparentemente inalteráveis de sua masculinidade ou feminilidade e os processos
pelos quais passou, ao invés de serem inevitáveis, serão o resultado das
personalidades de seus pais e da maneira como eles se relacionam com o menino,
física e psicologicamente. Desta maneira, o destino de uma pessoa pode, sob
alguns aspectos, estar muito mais fora do alcance de suas mãos do que o poderia
indicar o conceito usual de uma dinâmica inconsciente”.- em “A Experiência
Transexual” - p.37 (grifos meus).
Em seu outro livro, “Masculinidade e Feminilidade - Apresentações de
Gênero” (Artes Médicas - Porto Alegre - 1993), diz Stoller: “A identidade de
gênero nuclear resulta, em minha opinião, do seguinte: I) Uma força biológica,
genética (...); II) A designação do sexo no nascimento: a mensagem que a
aparência dos genitais externos do bebê leva àqueles que podem designar o sexo
- o médico que está atendendo e os pais - e os efeitos inequívocos subseqüentes
desta designação para convencê-los do sexo da criança; III) A influência
incessante das atitudes dos pais, especialmente das mães, sobre o sexo daquele bebê,
e a interpretação dessas percepções por parte do bebê - pela sua capacidade
crescente de fantasiar - como acontecimentos, isto é, experiências motivadas,
significativas; IV) fenômenos bio-psíquicos, efeitos pós-natais precoces
causados por padrões habituais de manejo do bebê (...),esse item está ligado
com o III, mas é listado à parte por ênfase e para distingui-lo dos processos
mentais; V) desenvolvimento do ego corporal (...)confirmando para o bebê as
convicções dos pais a respeito do sexo de seu filho”. (p.30)(grifos meus).
A revista VEJA de 16/06/04 traz a notícia de um garoto alemão de 13 anos
que será o mais jovem paciente a trocar de sexo por não se sentir identificado
com o masculino.. Qual seria a diferença entre o desejo desse garoto, que está
biologicamente habilitado para o exercício da masculinidade e dela abdica,
desejando uma operação que o deixe com o sexo trocado, e o desejo de David
Reimer, que tão bravamente lutou para recuperar seu sexo perdido? A possível
resposta, como vimos acima, residiria no desejo consciente e inconsciente dos
pais e na forma como eles encaravam o sexo desse garoto.
A rejeição consciente e deliberada por parte de determinadas mães frente
a definição sexual de seus filhos é bem documentada por Stoller em seus vários
casos. Historicamente, lembra o caso do poeta alemão Rainer Maria Rilke, que
“foi criado exatamente como uma menina, até os seis anos, por sua mãe (e
inteiramente contra os desejos de seu pai, que queria que ele fosse um soldado)
para compensar a perda de uma irmã mais velha do menino, que morreu na
infância. Isso é descrito com detalhes no livro Die Jugend Rainer Maria Rilke,
de Carl Sieber, Insel-Verlag, 1932. (A Experiência Transexual - Robert J.
Stoller - Imago - Rio - 1982). Lembramos ainda o caso de Oscar Wilde, que até
os dez anos foi tratado “no que dizia respeito a roupas, hábitos e companhias”
como uma menina. (Oscar Wilde, Richard Ellman, Companhia das Letras, 1987,
p.27)
Voltando ao caso David Reimer, não é difícil constatar o efeito desagregador
e mortífero que a mutilação acidental e a conseqüente experiência de Money teve
sobre toda a família, culminando com o suicídio dos dois gêmeos.
Fonte: psychiatry on line brasil
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