Jacob Burckhardt: Profeta da Nossa Época
Por Otto Maria Carpeaux
A Glória, já se disse, é o conjunto dos
mal-entendidos que se criam em torno de um nome. Muitas vezes esses
mal-entendidos formam um denso nevoeiro, donde surge um busto de gesso, o ídolo
das Obras Completas, cobertas de poeira: é o caso dos "clássicos". Às
vezes esses nevoeiros desaparecem, de súbito, para permitir uma ressurreição
surpreendente: é o caso dos "poetas malditos". É muito raro que o véu
se levante pouco a pouco, oferecendo o espetáculo de uma renovação incessante,
toda a história de uma glória: é o caso de Jacob Burckhardt.
Os seus contemporâneos conheciam-no pouco. A
posteridade imediata reconheceu o grande historiador da civilização, para
depois enganar-se profundamente sobre as suas teorias. Para nós, no momento que
atravessamos, tornou-se o conselheiro íntimo da nossa angústia. Amanhã será um
profeta, o último dos profetas talvez, já que o tempo não terá mais futuro. Eis
quatro etapas da história de uma glória. O caminho para a compreensão está
traçado.
A sua biografia é muito simples. Filho de
uma velha família patrícia de Basiléia, nascido em 1818, consagra-se aos
estudos mais diversos. Uma incursão no jornalismo político fracassa. De 1844 a
1893, ensina história das belas-artes na velha Universidade da sua cidade
natal, pouco conhecido do público, mas muito estimado dos seus colegas.
Burckhardt ama a sua cidade, as estreitas ruas medievais, os telhados e torres,
observatório do grande mundo batalhador fuori le mura, a cidade íntima,
pátria; só a abandona para viagens à Itália, país da sua nostalgia, nunca
atenuada. Recusa cargos honrosos nas grandes universidades alemãs, traço de
profunda significação que compreenderemos depois. Enfim, velho e fatigado,
retira-se da atividade para morrer docemente num dia de agosto de 1897. Uma
vida fora vivida.
Como explicar essa mistura dum patrício
reservado e dum pequeno-burguês afável, dum professor pedante e dum poeta
fracassado? Essa decifração revelará algumas surpresas. Os seus alunos também
se surpreenderam, quando da primeira visita protocolar de um estudante: o sábio
inabordável falava na intimidade o dialeto rude, quase humorístico, dos suíços,
regalava o seu convidado com bons vinhos, explicava as suas coleções
artísticas, tocava ao piano o seu querido Mozart, para enfim queixar-se dos
seus criados. Oh! que velho epicurista, esse professor de história, esse
historiador de segunda ordem! Até faz rir: ele teria, no seu auditório, chorado
lágrimas de crocodilo, ao recordar as obras perdidas da Antiguidade, destruídas
pelos bárbaros; não será isso um anacronismo, no nosso século iluminado? Um dia
o bom velho foi encontrado morto, bem morto. Mas atentai: ele voltará.
Alguns anos depois da sua morte voltava, por
uma segunda edição surpreendente, o grande historiador da Civilização da
Renascença na Itália. O livro, quase despercebido quando seu autor estava
vivo, esse livro imenso, reconstrução integral de um século, de uma civilização
desaparecida, esse livro é uma primeira revelação e cria o primeiro desses
mal-entendidos que fazem uma glória. O livro provoca uma moda européia, o culto
do Renascimento, a adoração dos grandes animais ferozes de gênio artístico. O
burguês de dinheiro, ansioso por uma árvore genealógica, acredita reconhecer-se
nesses homens geniais que devem tudo a si mesmos. Hoje, nos palácios e nas
casas burguesas da Europa os móveis à Renascença, tipo 1890, são obstáculos à
circulação, colecionadores de poeira. Mas os filhos desses burgueses ainda não
se despiram do costume renascentista dos seus pais: misturando o fraco poema de
Gobineau e as visões de Spengler, esses "señoritos", para
empregar a expressão de Ortega y Gasset, fazem-se confirmar pelo professor de
seus pais, confirmam os seus próprios princípios maquiavélicos e desumanos,
para se tornar, cada um deles, o seu próprio condottiere. Seria
necessário fechar este livro, grande e perigoso, e escrever na sua capa: É
proibido citá-lo!
Não se queria do Burckhardt morto senão
Renascimento. Mas alguns discípulos fiéis não paravam de pesquisar nos seus
manuscritos. Apareceu enfim a História da civilização grega. Mais uma
vez, uma revelação. Está definitivamente destruído o idílio dos anacreônticos,
o mundo ideal da alegria olímpica; e acha-se descoberto o bas-fond da
alma helênica, o pessimismo de um Sófocles, o desespero de um Tucídides, a
angústia de um Platão. A arte grega não é senão um grito de dor transfigurado
em mármore.
É certo que esse mundo helênico, visto
através de um temperamento schopenhaueriano, está impregnado da consciência
cívica de Burckhardt, cidadão-patrício de uma pequena república medieval, agora
radicalmente democratizada. O mistério do pessimismo antigo, de acordo com
Burckhardt, é o martírio da polis, da cidade, desaristocratizada,
despida dos seus fundamentos religiosos, apóstata, vítima da tirania demagógica.
Se bem que não chegando à compreensão dum Fustel de Coulanges, Burckhardt
fornece o primeiro exemplo de sociologia religiosa, logo mal compreendido como
programa de renovação política e cultural, sobre as bases de uma nova religião.
O autor deste mal-entendido não é outro senão Nietzsche, jovem colega de
Burckhardt na Universidade de Basiléia. Durante toda a sua vida Nietzsche
tentou basear as suas doutrinas nas idéias de Burckhardt: durante toda a sua
vida Nietzsche tentou conseguir a amizade do velho professor. Tudo em vão. A
última carta do filósofo, já louco, é dirigida a Burckhardt: "Agora, você
é, tu és o mestre!" Esse "tu" nunca foi retribuído. Mas a falsa
interpretação ficou.
Por fim a herança de manuscritos inéditos
devolve o tesouro mais precioso: as Considerações sobre a História Universal.
É o manuscrito de um curso universitário feito sob a impressão da guerra de
1870, sob a impressão da queda da civilização francesa e do advento do império
militar dos alemães. Contam que, ouvindo durante a aula o falso boato de que o
Louvre havia sido incendiado com todos os seus tesouros artísticos, Burckhardt
chorou diante dos seus alunos indolentes. Não seriam coisas impossíveis na
nossa época ilustrada? Esperem! Daqui a alguns anos aparecerá um livro sobre a
guerra, sobre as grandes crises, sobre a felicidade e sobre a desgraça na
história, sobre a verdadeira e a falsa grandeza humana, um livro que será o
breviário e o consolo de uma geração sem esperança: a nossa geração.
Sobretudo, algumas passagens quase
proféticas fizeram deste livro o último apoio espiritual de milhares de
intelectuais da Europa Central.
Burckhardt não queria profetizar. Procurou
somente as reações invariáveis dos homens diante dos seus destinos históricos.
Fixados os traços, acontece que reaparecerão num mundo que Burckhardt, para sua
felicidade, não chegou a ver.
Quando nos consola dizendo que os males da
história são sempre maiores que os nossos, ao mesmo tempo desfaz beneficamente
as nossas ilusões de progresso. Acha a guerra inevitável; mas "o que não é
certo é que a uma guerra ou a qualquer invasão suceda necessariamente uma
renovação, uma ressurreição. O nosso planeta é talvez bem velho; não se prevê
como grandes povos, petrificados nas suas civilizações, recomeçariam as suas vidas;
assim povos desapareceram e outros desaparecerão... Muitas vezes, a defesa mais
justa torna-se inútil, e já é muito se Roma concorre para celebrar a glória de
Numância e se o vencedor se ressente da grandeza do vencido" (p. 164).
Sente-se Marco Aurélio nestas palavras.
A guerra é o auge dessas convulsões que
sacodem periodicamente a humanidade: as crises. Burckhardt é sobretudo o
criador da noção moderna de crise, à qual se subordinarão todas as teorias
posteriores.
A crise é a passagem das massas por um
período de soberania; massas incapazes de compreender e de conservar o que foi,
incapazes de conceber e de construir o que será. A crise é uma fase
intermediária entre a democracia nascente e a democracia abolida, única época
da democracia realizada; segue-se-lhe o despotismo, que restabelece a ordem, a
ordem dos cemitérios, cemitério daquilo que não voltará nunca. Foi Burckhardt
quem primeiro descreveu a hora decisiva, quando a crise explode:
"Subitamente o processo subterrâneo evolve com terrível rapidez; evoluções
que levariam, em outro caso, séculos a se realizarem, cumprem-se num mês, numa
semana, como fantasmas. Soa a hora, e a infecção se espalha num instante, sobre
centenas de milhas e sobre as populações mais diversas, que não se conhecem umas
às outras... Aos protestos acumulados contra o passado juntam-se terrores
imaginários, e à vontade de tudo mudar se junta a vontade de vingar-se dos
vivos, em lugar dos mortos, os únicos inacessíveis" (pp. 168-171).
Evitando os psicologismos fáceis, Burckhardt não se presta às generalizações de
um Le Bon, como também a sua superior erudição histórica evita as teorias
cíclicas de um Sorel. Burckhardt nem louva nem censura: comprova; mas
notar-se-á nas suas palavras sobre os mortos, inacessíveis aos terrores do
futuro, um suspiro de alívio.
Burckhardt conhece, pois, o terrível caráter
das crises, incompreensíveis no "século estúpido" do "progresso
irresistível". "Existe ainda uma oposição conservadora: todas as
instituições estabelecidas tornadas direitos, tornadas o próprio direito,
indissoluvelmente ligadas a tudo o que era, até então, moral e civilização; e
depois todos os indivíduos que as representam, a elas ligados pelos deveres e
pelas vantagens. Daí é que vem a gravidade dessas lutas, o desprendimento do pathos,
de um lado e de outro. Cada partido defende o seu ‘mais sagrado’, aqui um dever
e uma religião, ali uma nova teoria do mundo. Daí é que vem a indiferença pelos
meios, a mudança até das armas e das atitudes, de modo que o reacionário faz o
papel de democrata e o demagogo representa o ditador" (p. 177).
O que se eleva sobre essas terríveis
baixezas é a meditação acerca do grande homem; ele não é, absolutamente, o
exemplo, o modelo: é a exceção, a ultima ratio da história.
"Ninguém é insubstituível" — diz o provérbio. — "Mas aqueles que
ninguém pode substituir, esses são grandes." Burckhardt não cai no hero-worship
de um Carlyle. Poderia subscrever a frase de Luís XVIII: "Quand le
grand homme apparaît, sauve qui peut!"1 —
"Pois raríssima é a grandeza d’alma pronta a renunciar às vaidades
criminosas, à grande tentação dos poderosos: o poder pelo poder. É por esta
razão que o poder não melhora os homens." Surge a velha desconfiança do
calvinista contra o poder temporal: não existe poder temporal de direito
divino; mais depressa2 será de
direito satânico. "O mal, como mal, domina freqüentemente sobre a terra, e
por muito tempo, e a doutrina verdadeiramente cristã chama Lúcifer de príncipe
deste mundo." Sobretudo "todo poder é mau". "Todo poder é
mau." Aqui está o centro da doutrina burckhardtiana, muito impregnada de
Schopenhauer e do seu pessimismo anti-histórico, muito impregnada do fatalismo
dos estóicos; herança, afinal, dos antepassados, calvinistas e cidadãos livres
da república medieval de Basiléia, e da sua desconfiança dos poderes temporais.
As obras da civilização necessitam de ordem, é verdade. Mas o estado
florescente da arte, sob a ordem dos déspotas, não passa de uma razão
atenuante, boa para fazer reaparecer os tempos longínquos, sob a luz de uma
falsa transfiguração. "Uma ilusão de óptica nos engana sobre a felicidade
em certas épocas, em relação a certos povos. Mas essas épocas eram também, para
outros, épocas de destruição e de escravatura; tais épocas são consideradas
felizes, porque não se leva em conta, et pour cause, a euforia dos
vencedores." A felicidade não é senão uma ilusão de óptica dos
historiadores.
Nas suas Considerações sobre a História
Universal, Burckhardt não disse tudo. O comentário indispensável é a sua
correspondência. Aqui o aristocrata reservado, o sábio tímido, abre-se em
confidências aos seus raros amigos e lhes comunica os seus receios
apocalípticos. Adverte e adverte: "Um terrível despertar está reservado
aos homens de bem que, em vista dos grandes inconvenientes reais, participaram
do jogo da oposição; eles verão, horrorizados, surgir aqueles de quem eram
cúmplices" (26 de janeiro de 1846.) Cedo ele desanima: "Nada espero
do futuro. É possível que alguns lustros passavelmente suportáveis nos estejam
ainda reservados, à maneira dos imperadores adotivos de Roma: porém nada
mais" (14 de setembro de 1849). "De há muito sei que o mundo está
sendo levado para a alternativa entre a democracia perfeita e o despotismo
perfeito; mas este não mais será exercido pelas dinastias, demasiado fracas,
mas por destacamentos militares soi-disant republicanos" (13 de
abril de 1882). "Um pressentimento, hoje considerado louco, diz-me: o
Estado militar será um grande industrial; as massas, nas cidades e nas usinas,
não serão mais deixadas na miséria e livres nos seus desejos; um certo grau de
miséria, fixado e controlado pela autoridade, iniciado e encerrado cada dia com
o rufar dos tambores: é o que deverá advir de acordo com a lógica" (26 de
abril de 1872). E se nos quiséssemos opor a esta lógica cruel? Uma anotação,
inédita durante muito tempo, responde: "Os povos transformaram-se em um
velho muro, onde não se pode mais fixar um prego, pois não fica seguro. É esta
a razão por que, no agradável século XX, a Autoridade reerguerá a cabeça, e
será uma cabeça terrível."
Terminou a profecia.
É privilégio dos profetas serem mal
compreendidos. Burckhardt, depois de ter sido confundido com Gobineau, com
Nietzsche, com Le Bon, foi confundido com Spengler. Julga-se ter sido
Burckhardt o profeta da Decadência do Ocidente; fazem-no confessor dos
intelectuais desesperados, que desesperam do mundo e de si próprios. Mas a
verdade é outra, a doutrina é muito mais profunda.
Burckhardt é formado na civilização da velha
Europa luxemburgo-borgonhesa entre a Itália e a Bélgica, os países de sua
predileção; vemo-lo hoje à luz dos seus "irmãos no espírito", Jan
Huizinga e Benedetto Croce. Como eles, é patrício e burguês ao mesmo tempo, é
conservador e humanista ao mesmo tempo; o intelectual que fez "parte
per se stesso". Burckhardt era um protótipo do intelectual, e ele o
sabia: "Pereceremos todos; mas queria ao menos fazer a minha escolha,
escolher a coisa pela qual perecerei: a civilização da velha Europa" (5 de
março de 1846). Diz, porém, essa verdade pessoal quase a sorrir. Não desespera,
opõe-se: "Espero crises terríveis; mas nenhuma revolução anulará a minha
sinceridade, a minha verdade interior. Antes de tudo, será preciso ser sincero,
sempre sincero" (13 de junho de 1842). Ele era um homem. Era um homem, no
sentido dos estóicos.
Eis por que todas as suas simpatias eram
para os vencidos:
É a frase-epígrafe invisível de toda a sua
obra.
Esse estoicismo sofreu a ação de vinte
séculos de cristianismo. O resultado foi essa atitude, que, reconhecendo embora
a pequenez do homem, o colocava no centro do Universo. Burckhardt, no seu
auditório, em meio à luta encarniçada dos imperialismos e das classes, falava,
pela última vez, não de política, não de economia, mas sim do homem. Sobre o
fundo trêmulo de um mundo revolvido, ele permanecia o que seus pais basileenses
haviam sido: um humanista.
Burckhardt é o último dos humanistas. O que
significa: formara-se, apoliticamente, no mundo do cristianismo secularizado,
mundo da adoração da civilização e da arte, da cultura intelectual e artística,
mundo acima da política, formado pela Itália da Renascença, pela França de Luís
XIV, pela Inglaterra das universidades aristocráticas e pela Alemanha de
Weimar. Esse caráter apolítico da sua cultura o preservava da "trahison
des clercs"; e é o fundamento de toda a sua obra, que gira,
inteiramente, em torno da política. Amando ao mesmo tempo o seu Olimpo,
reconheceu, com um olho inexorável, a fragilidade do seu mundo ilusório, neste
mundo material e materialista, a fragilidade do homem num mundo sem Deus. Por
isso, mesmo sendo um humanista não deixou de ser um cristão. Sendo um
intelectual não deixou de ser um patrício.
O velho professor fez uma estranha figura no
traje burguês do século XIX; muitos, desde Nietzsche, imaginavam outra coisa
atrás da modesta casaca: talvez os instintos selvagens das "bestas
geniais" da Renascença. Mas Burckhardt era bem burguês; burguês, porém, no
sentido de cidadão das pequenas repúblicas livres da Idade Média, herdeiro
altivo da liberdade feudal. Burckhardt era burguês como os burgueses de
Antuérpia, de Florença e de Basiléia; não era burguês como os burgueses da
burguesia. A sua substância, em nada burguesa, tornava-o capaz de revelar o
mundo da Renascença florentina. A sua substância, em nada burguesa, tornava-o
capaz de desvendar o enigma da Cidade Antiga.
Ele próprio era um "cidadão".
Filho e cidadão de Basiléia, velha cidade humanista; cidade do Concílio que se
revoltou contra o papa; cidade de Erasmo, que defendeu o livre-arbítrio
católico, contra Lutero; cidade de Holbein, que gravou na sua madeira a dança
macabra da Idade Média e de todos os tempos. Essa cidade, último reduto do
humanismo, conservava a sua liberdade patrícia, contra bispos e heresiarcas,
contra imperadores e tribunos. Ali ainda se podia estar bem, enquanto fora,
"fuori le mura", nas estradas de Paris, de Milão, de Antuérpia
e de Colônia, as grandes potências deste mundo se debatiam no campo de batalha.
Era-se fraco demais para se tomar partido nisso; mas cada um tinha as suas
simpatias. Tremia-se, com viva emoção, sobre os telhados e sobre as torres,
observando as grandes batalhas. Era este observatório que Burckhardt não queria
abandonar jamais, se bem que as agitações demagógicas lhe tivessem feito perder
o gosto da vida. Nessas agitações reconheceu os furores da Cidade Antiga que
perdera o seu deus. Burckhardt era, pois, conservador. "Eu tinha a coragem
de ser conservador e de não ceder" — disse orgulhosamente. Era um homem.
Conservador, acreditava, como Maquiavel, na
constância da substância humana, em todos os tempos e em todos os povos. Isso o
tornava pessimista, e todo pessimista tem em si a matéria de um profeta.
Humanista, acreditava na superioridade do
espírito em relação a todas as agitações da matéria. Isto o fazia
incorruptível, inflexível, modelo supremo do intelectual. Intelectual, enfim,
tocou no problema talvez mais grave dos nossos tempos: a natureza dos deveres
do espírito. Karl Marx, que não queria interpretar o mundo, e sim
transformá-lo, é o inspirador de toda "crítica de ação", tanto da
esquerda como da direita. Hinc nostrae lacrimae.5 No paraíso das suas
ilusões os intelectuais reencontraram, de repente, a besta apocalíptica.
Decepção que os fez compreender, no dizer de Ortega y Gasset, "su esplendor
y su miseria, su virtud y su limitación". Os intelectuais não têm a
obrigação de transformar o mundo; o seu dever é transfigurá-lo pela criação, a
criação artística. Ninguém poderia dizê-lo melhor do que Burckhardt nas últimas
palavras das suas Considerações:
"Seria um espetáculo maravilhoso seguir
o espírito da humanidade, quando ele se constrói um novo edifício, ligado a
todos esses fenômenos exteriores e portanto a eles infinitamente superior. Quem
disso tivesse uma idéia, fosse ela como uma sombra, esqueceria toda felicidade
e desgraça, para viver somente cheio do desejo desse conhecimento."
E assim foi: "Minha vida foi um outono.
Mas o outono também tem o seu encanto — uma luz muito nobre."
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