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terça-feira, 25 de agosto de 2015

A CULTURA DO RENASCIMENTO NA ITÁLIA - JACOB BURCKHARDT


Jacob Burckhardt: Profeta da Nossa Época

Por Otto Maria Carpeaux

A Glória, já se disse, é o conjunto dos mal-entendidos que se criam em torno de um nome. Muitas vezes esses mal-entendidos formam um denso nevoeiro, donde surge um busto de gesso, o ídolo das Obras Completas, cobertas de poeira: é o caso dos "clássicos". Às vezes esses nevoeiros desaparecem, de súbito, para permitir uma ressurreição surpreendente: é o caso dos "poetas malditos". É muito raro que o véu se levante pouco a pouco, oferecendo o espetáculo de uma renovação incessante, toda a história de uma glória: é o caso de Jacob Burckhardt.

Os seus contemporâneos conheciam-no pouco. A posteridade imediata reconheceu o grande historiador da civilização, para depois enganar-se profundamente sobre as suas teorias. Para nós, no momento que atravessamos, tornou-se o conselheiro íntimo da nossa angústia. Amanhã será um profeta, o último dos profetas talvez, já que o tempo não terá mais futuro. Eis quatro etapas da história de uma glória. O caminho para a compreensão está traçado.

A sua biografia é muito simples. Filho de uma velha família patrícia de Basiléia, nascido em 1818, consagra-se aos estudos mais diversos. Uma incursão no jornalismo político fracassa. De 1844 a 1893, ensina história das belas-artes na velha Universidade da sua cidade natal, pouco conhecido do público, mas muito estimado dos seus colegas. Burckhardt ama a sua cidade, as estreitas ruas medievais, os telhados e torres, observatório do grande mundo batalhador fuori le mura, a cidade íntima, pátria; só a abandona para viagens à Itália, país da sua nostalgia, nunca atenuada. Recusa cargos honrosos nas grandes universidades alemãs, traço de profunda significação que compreenderemos depois. Enfim, velho e fatigado, retira-se da atividade para morrer docemente num dia de agosto de 1897. Uma vida fora vivida.

Como explicar essa mistura dum patrício reservado e dum pequeno-burguês afável, dum professor pedante e dum poeta fracassado? Essa decifração revelará algumas surpresas. Os seus alunos também se surpreenderam, quando da primeira visita protocolar de um estudante: o sábio inabordável falava na intimidade o dialeto rude, quase humorístico, dos suíços, regalava o seu convidado com bons vinhos, explicava as suas coleções artísticas, tocava ao piano o seu querido Mozart, para enfim queixar-se dos seus criados. Oh! que velho epicurista, esse professor de história, esse historiador de segunda ordem! Até faz rir: ele teria, no seu auditório, chorado lágrimas de crocodilo, ao recordar as obras perdidas da Antiguidade, destruídas pelos bárbaros; não será isso um anacronismo, no nosso século iluminado? Um dia o bom velho foi encontrado morto, bem morto. Mas atentai: ele voltará.

Alguns anos depois da sua morte voltava, por uma segunda edição surpreendente, o grande historiador da Civilização da Renascença na Itália. O livro, quase despercebido quando seu autor estava vivo, esse livro imenso, reconstrução integral de um século, de uma civilização desaparecida, esse livro é uma primeira revelação e cria o primeiro desses mal-entendidos que fazem uma glória. O livro provoca uma moda européia, o culto do Renascimento, a adoração dos grandes animais ferozes de gênio artístico. O burguês de dinheiro, ansioso por uma árvore genealógica, acredita reconhecer-se nesses homens geniais que devem tudo a si mesmos. Hoje, nos palácios e nas casas burguesas da Europa os móveis à Renascença, tipo 1890, são obstáculos à circulação, colecionadores de poeira. Mas os filhos desses burgueses ainda não se despiram do costume renascentista dos seus pais: misturando o fraco poema de Gobineau e as visões de Spengler, esses "señoritos", para empregar a expressão de Ortega y Gasset, fazem-se confirmar pelo professor de seus pais, confirmam os seus próprios princípios maquiavélicos e desumanos, para se tornar, cada um deles, o seu próprio condottiere. Seria necessário fechar este livro, grande e perigoso, e escrever na sua capa: É proibido citá-lo!

Não se queria do Burckhardt morto senão Renascimento. Mas alguns discípulos fiéis não paravam de pesquisar nos seus manuscritos. Apareceu enfim a História da civilização grega. Mais uma vez, uma revelação. Está definitivamente destruído o idílio dos anacreônticos, o mundo ideal da alegria olímpica; e acha-se descoberto o bas-fond da alma helênica, o pessimismo de um Sófocles, o desespero de um Tucídides, a angústia de um Platão. A arte grega não é senão um grito de dor transfigurado em mármore.

É certo que esse mundo helênico, visto através de um temperamento schopenhaueriano, está impregnado da consciência cívica de Burckhardt, cidadão-patrício de uma pequena república medieval, agora radicalmente democratizada. O mistério do pessimismo antigo, de acordo com Burckhardt, é o martírio da polis, da cidade, desaristocratizada, despida dos seus fundamentos religiosos, apóstata, vítima da tirania demagógica. Se bem que não chegando à compreensão dum Fustel de Coulanges, Burckhardt fornece o primeiro exemplo de sociologia religiosa, logo mal compreendido como programa de renovação política e cultural, sobre as bases de uma nova religião. O autor deste mal-entendido não é outro senão Nietzsche, jovem colega de Burckhardt na Universidade de Basiléia. Durante toda a sua vida Nietzsche tentou basear as suas doutrinas nas idéias de Burckhardt: durante toda a sua vida Nietzsche tentou conseguir a amizade do velho professor. Tudo em vão. A última carta do filósofo, já louco, é dirigida a Burckhardt: "Agora, você é, tu és o mestre!" Esse "tu" nunca foi retribuído. Mas a falsa interpretação ficou.

Por fim a herança de manuscritos inéditos devolve o tesouro mais precioso: as Considerações sobre a História Universal. É o manuscrito de um curso universitário feito sob a impressão da guerra de 1870, sob a impressão da queda da civilização francesa e do advento do império militar dos alemães. Contam que, ouvindo durante a aula o falso boato de que o Louvre havia sido incendiado com todos os seus tesouros artísticos, Burckhardt chorou diante dos seus alunos indolentes. Não seriam coisas impossíveis na nossa época ilustrada? Esperem! Daqui a alguns anos aparecerá um livro sobre a guerra, sobre as grandes crises, sobre a felicidade e sobre a desgraça na história, sobre a verdadeira e a falsa grandeza humana, um livro que será o breviário e o consolo de uma geração sem esperança: a nossa geração.

Sobretudo, algumas passagens quase proféticas fizeram deste livro o último apoio espiritual de milhares de intelectuais da Europa Central.

Burckhardt não queria profetizar. Procurou somente as reações invariáveis dos homens diante dos seus destinos históricos. Fixados os traços, acontece que reaparecerão num mundo que Burckhardt, para sua felicidade, não chegou a ver.
Quando nos consola dizendo que os males da história são sempre maiores que os nossos, ao mesmo tempo desfaz beneficamente as nossas ilusões de progresso. Acha a guerra inevitável; mas "o que não é certo é que a uma guerra ou a qualquer invasão suceda necessariamente uma renovação, uma ressurreição. O nosso planeta é talvez bem velho; não se prevê como grandes povos, petrificados nas suas civilizações, recomeçariam as suas vidas; assim povos desapareceram e outros desaparecerão... Muitas vezes, a defesa mais justa torna-se inútil, e já é muito se Roma concorre para celebrar a glória de Numância e se o vencedor se ressente da grandeza do vencido" (p. 164). Sente-se Marco Aurélio nestas palavras.

A guerra é o auge dessas convulsões que sacodem periodicamente a humanidade: as crises. Burckhardt é sobretudo o criador da noção moderna de crise, à qual se subordinarão todas as teorias posteriores.

A crise é a passagem das massas por um período de soberania; massas incapazes de compreender e de conservar o que foi, incapazes de conceber e de construir o que será. A crise é uma fase intermediária entre a democracia nascente e a democracia abolida, única época da democracia realizada; segue-se-lhe o despotismo, que restabelece a ordem, a ordem dos cemitérios, cemitério daquilo que não voltará nunca. Foi Burckhardt quem primeiro descreveu a hora decisiva, quando a crise explode: "Subitamente o processo subterrâneo evolve com terrível rapidez; evoluções que levariam, em outro caso, séculos a se realizarem, cumprem-se num mês, numa semana, como fantasmas. Soa a hora, e a infecção se espalha num instante, sobre centenas de milhas e sobre as populações mais diversas, que não se conhecem umas às outras... Aos protestos acumulados contra o passado juntam-se terrores imaginários, e à vontade de tudo mudar se junta a vontade de vingar-se dos vivos, em lugar dos mortos, os únicos inacessíveis" (pp. 168-171). Evitando os psicologismos fáceis, Burckhardt não se presta às generalizações de um Le Bon, como também a sua superior erudição histórica evita as teorias cíclicas de um Sorel. Burckhardt nem louva nem censura: comprova; mas notar-se-á nas suas palavras sobre os mortos, inacessíveis aos terrores do futuro, um suspiro de alívio.

Burckhardt conhece, pois, o terrível caráter das crises, incompreensíveis no "século estúpido" do "progresso irresistível". "Existe ainda uma oposição conservadora: todas as instituições estabelecidas tornadas direitos, tornadas o próprio direito, indissoluvelmente ligadas a tudo o que era, até então, moral e civilização; e depois todos os indivíduos que as representam, a elas ligados pelos deveres e pelas vantagens. Daí é que vem a gravidade dessas lutas, o desprendimento do pathos, de um lado e de outro. Cada partido defende o seu ‘mais sagrado’, aqui um dever e uma religião, ali uma nova teoria do mundo. Daí é que vem a indiferença pelos meios, a mudança até das armas e das atitudes, de modo que o reacionário faz o papel de democrata e o demagogo representa o ditador" (p. 177).

O que se eleva sobre essas terríveis baixezas é a meditação acerca do grande homem; ele não é, absolutamente, o exemplo, o modelo: é a exceção, a ultima ratio da história. "Ninguém é insubstituível" — diz o provérbio. — "Mas aqueles que ninguém pode substituir, esses são grandes." Burckhardt não cai no hero-worship de um Carlyle. Poderia subscrever a frase de Luís XVIII: "Quand le grand homme apparaît, sauve qui peut!"1 — "Pois raríssima é a grandeza d’alma pronta a renunciar às vaidades criminosas, à grande tentação dos poderosos: o poder pelo poder. É por esta razão que o poder não melhora os homens." Surge a velha desconfiança do calvinista contra o poder temporal: não existe poder temporal de direito divino; mais depressa2 será de direito satânico. "O mal, como mal, domina freqüentemente sobre a terra, e por muito tempo, e a doutrina verdadeiramente cristã chama Lúcifer de príncipe deste mundo." Sobretudo "todo poder é mau". "Todo poder é mau." Aqui está o centro da doutrina burckhardtiana, muito impregnada de Schopenhauer e do seu pessimismo anti-histórico, muito impregnada do fatalismo dos estóicos; herança, afinal, dos antepassados, calvinistas e cidadãos livres da república medieval de Basiléia, e da sua desconfiança dos poderes temporais. As obras da civilização necessitam de ordem, é verdade. Mas o estado florescente da arte, sob a ordem dos déspotas, não passa de uma razão atenuante, boa para fazer reaparecer os tempos longínquos, sob a luz de uma falsa transfiguração. "Uma ilusão de óptica nos engana sobre a felicidade em certas épocas, em relação a certos povos. Mas essas épocas eram também, para outros, épocas de destruição e de escravatura; tais épocas são consideradas felizes, porque não se leva em conta, et pour cause, a euforia dos vencedores." A felicidade não é senão uma ilusão de óptica dos historiadores.

Nas suas Considerações sobre a História Universal, Burckhardt não disse tudo. O comentário indispensável é a sua correspondência. Aqui o aristocrata reservado, o sábio tímido, abre-se em confidências aos seus raros amigos e lhes comunica os seus receios apocalípticos. Adverte e adverte: "Um terrível despertar está reservado aos homens de bem que, em vista dos grandes inconvenientes reais, participaram do jogo da oposição; eles verão, horrorizados, surgir aqueles de quem eram cúmplices" (26 de janeiro de 1846.) Cedo ele desanima: "Nada espero do futuro. É possível que alguns lustros passavelmente suportáveis nos estejam ainda reservados, à maneira dos imperadores adotivos de Roma: porém nada mais" (14 de setembro de 1849). "De há muito sei que o mundo está sendo levado para a alternativa entre a democracia perfeita e o despotismo perfeito; mas este não mais será exercido pelas dinastias, demasiado fracas, mas por destacamentos militares soi-disant republicanos" (13 de abril de 1882). "Um pressentimento, hoje considerado louco, diz-me: o Estado militar será um grande industrial; as massas, nas cidades e nas usinas, não serão mais deixadas na miséria e livres nos seus desejos; um certo grau de miséria, fixado e controlado pela autoridade, iniciado e encerrado cada dia com o rufar dos tambores: é o que deverá advir de acordo com a lógica" (26 de abril de 1872). E se nos quiséssemos opor a esta lógica cruel? Uma anotação, inédita durante muito tempo, responde: "Os povos transformaram-se em um velho muro, onde não se pode mais fixar um prego, pois não fica seguro. É esta a razão por que, no agradável século XX, a Autoridade reerguerá a cabeça, e será uma cabeça terrível."

Terminou a profecia.

É privilégio dos profetas serem mal compreendidos. Burckhardt, depois de ter sido confundido com Gobineau, com Nietzsche, com Le Bon, foi confundido com Spengler. Julga-se ter sido Burckhardt o profeta da Decadência do Ocidente; fazem-no confessor dos intelectuais desesperados, que desesperam do mundo e de si próprios. Mas a verdade é outra, a doutrina é muito mais profunda.

Burckhardt é formado na civilização da velha Europa luxemburgo-borgonhesa entre a Itália e a Bélgica, os países de sua predileção; vemo-lo hoje à luz dos seus "irmãos no espírito", Jan Huizinga e Benedetto Croce. Como eles, é patrício e burguês ao mesmo tempo, é conservador e humanista ao mesmo tempo; o intelectual que fez "parte per se stesso". Burckhardt era um protótipo do intelectual, e ele o sabia: "Pereceremos todos; mas queria ao menos fazer a minha escolha, escolher a coisa pela qual perecerei: a civilização da velha Europa" (5 de março de 1846). Diz, porém, essa verdade pessoal quase a sorrir. Não desespera, opõe-se: "Espero crises terríveis; mas nenhuma revolução anulará a minha sinceridade, a minha verdade interior. Antes de tudo, será preciso ser sincero, sempre sincero" (13 de junho de 1842). Ele era um homem. Era um homem, no sentido dos estóicos.

"Si fractus illabatur orbis,
Impavidum ferient ruinae."
3

Eis por que todas as suas simpatias eram para os vencidos:

"Victrix causa Diis placuit, sed victa Catoni."4

É a frase-epígrafe invisível de toda a sua obra.

Esse estoicismo sofreu a ação de vinte séculos de cristianismo. O resultado foi essa atitude, que, reconhecendo embora a pequenez do homem, o colocava no centro do Universo. Burckhardt, no seu auditório, em meio à luta encarniçada dos imperialismos e das classes, falava, pela última vez, não de política, não de economia, mas sim do homem. Sobre o fundo trêmulo de um mundo revolvido, ele permanecia o que seus pais basileenses haviam sido: um humanista.

Burckhardt é o último dos humanistas. O que significa: formara-se, apoliticamente, no mundo do cristianismo secularizado, mundo da adoração da civilização e da arte, da cultura intelectual e artística, mundo acima da política, formado pela Itália da Renascença, pela França de Luís XIV, pela Inglaterra das universidades aristocráticas e pela Alemanha de Weimar. Esse caráter apolítico da sua cultura o preservava da "trahison des clercs"; e é o fundamento de toda a sua obra, que gira, inteiramente, em torno da política. Amando ao mesmo tempo o seu Olimpo, reconheceu, com um olho inexorável, a fragilidade do seu mundo ilusório, neste mundo material e materialista, a fragilidade do homem num mundo sem Deus. Por isso, mesmo sendo um humanista não deixou de ser um cristão. Sendo um intelectual não deixou de ser um patrício.

O velho professor fez uma estranha figura no traje burguês do século XIX; muitos, desde Nietzsche, imaginavam outra coisa atrás da modesta casaca: talvez os instintos selvagens das "bestas geniais" da Renascença. Mas Burckhardt era bem burguês; burguês, porém, no sentido de cidadão das pequenas repúblicas livres da Idade Média, herdeiro altivo da liberdade feudal. Burckhardt era burguês como os burgueses de Antuérpia, de Florença e de Basiléia; não era burguês como os burgueses da burguesia. A sua substância, em nada burguesa, tornava-o capaz de revelar o mundo da Renascença florentina. A sua substância, em nada burguesa, tornava-o capaz de desvendar o enigma da Cidade Antiga.

Ele próprio era um "cidadão". Filho e cidadão de Basiléia, velha cidade humanista; cidade do Concílio que se revoltou contra o papa; cidade de Erasmo, que defendeu o livre-arbítrio católico, contra Lutero; cidade de Holbein, que gravou na sua madeira a dança macabra da Idade Média e de todos os tempos. Essa cidade, último reduto do humanismo, conservava a sua liberdade patrícia, contra bispos e heresiarcas, contra imperadores e tribunos. Ali ainda se podia estar bem, enquanto fora, "fuori le mura", nas estradas de Paris, de Milão, de Antuérpia e de Colônia, as grandes potências deste mundo se debatiam no campo de batalha. Era-se fraco demais para se tomar partido nisso; mas cada um tinha as suas simpatias. Tremia-se, com viva emoção, sobre os telhados e sobre as torres, observando as grandes batalhas. Era este observatório que Burckhardt não queria abandonar jamais, se bem que as agitações demagógicas lhe tivessem feito perder o gosto da vida. Nessas agitações reconheceu os furores da Cidade Antiga que perdera o seu deus. Burckhardt era, pois, conservador. "Eu tinha a coragem de ser conservador e de não ceder" — disse orgulhosamente. Era um homem.

Conservador, acreditava, como Maquiavel, na constância da substância humana, em todos os tempos e em todos os povos. Isso o tornava pessimista, e todo pessimista tem em si a matéria de um profeta.

Humanista, acreditava na superioridade do espírito em relação a todas as agitações da matéria. Isto o fazia incorruptível, inflexível, modelo supremo do intelectual. Intelectual, enfim, tocou no problema talvez mais grave dos nossos tempos: a natureza dos deveres do espírito. Karl Marx, que não queria interpretar o mundo, e sim transformá-lo, é o inspirador de toda "crítica de ação", tanto da esquerda como da direita. Hinc nostrae lacrimae.5 No paraíso das suas ilusões os intelectuais reencontraram, de repente, a besta apocalíptica. Decepção que os fez compreender, no dizer de Ortega y Gasset, "su esplendor y su miseria, su virtud y su limitación". Os intelectuais não têm a obrigação de transformar o mundo; o seu dever é transfigurá-lo pela criação, a criação artística. Ninguém poderia dizê-lo melhor do que Burckhardt nas últimas palavras das suas Considerações:

"Seria um espetáculo maravilhoso seguir o espírito da humanidade, quando ele se constrói um novo edifício, ligado a todos esses fenômenos exteriores e portanto a eles infinitamente superior. Quem disso tivesse uma idéia, fosse ela como uma sombra, esqueceria toda felicidade e desgraça, para viver somente cheio do desejo desse conhecimento."

E assim foi: "Minha vida foi um outono. Mas o outono também tem o seu encanto — uma luz muito nobre."



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