Por Janer
Cristaldo (in memorian)
Para eles, as
nações não tinham fronteiras e o palco de lutas era o planeta todo. Em 35, uma
judia berlinense, oficial do Exército Vermelho soviético, veio coordenar a
revolução no Brasil, assessorada por aparatchiks belgas, alemães,
franceses e argentinos. Osvaldo Peralva, membro brasileiro do Kominform,
sediado em Bucareste, ao denunciar a conspiração toda em O Retrato
(Editora Globo, 1962), foi banido do mundo intelectual e classificado como
agente da CIA. O que Peralva denunciou com conhecimento de causa foi mais tarde
documentado por William Waack, no excelente Camaradas (Companhia das
Letras, 1993), com pesquisas nos arquivos do Kremlin.
Em 36, foram
todos para a Espanha, dar apoio bélico e moral a Stalin, que tentava imobilizar
a Europa estrangulando-a com o controle do Mediterrâneo. Juan Negrín, ministro
da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres da Espanha em troca de
aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao
celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de
ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um
ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da
mesma forma que ninguém pode ver as orelhas". Aproveitando a vaza, um
vigarista malaguenho fez fortuna internacional, dando o título de Guernica
a um quadro em torno à morte de um toureiro.
Em 59, eles
deram apoio logístico e de mídia a Fidel e Che, para instalar a mais longa
ditadura da América Latina. De Paris, um filósofo feio, baixinho e confuso veio
dar seu aval ao tirano do Caribe. Uma foto da época é das mais emblemáticas:
Sartre, de pescoço espichado para o alto, adorando Castro como um Deus. Em La
Lune et le Caudillo (Gallimard, 1989), Jeannine Verdès Leroux nos relembra
este momento de extraordinária poesia.
-- Todos os
homens têm direito a tudo que eles pedem - pontifica Castro. - E se eles
pedem a lua? - pergunta Sartre. O ditador retoma seu charuto e se volta
para o filósofo baixinho: - Se eles pedem a lua, é porque têm necessidade
dela.
Pediam a lua no
bestunto do ditador e do filósofo. Em verdade, queriam dólares, pão e
liberdade. Da mesma forma que a Espanha, em 36, foi um campo de treinamento
para a Segunda Guerra, a América Latina era laboratório de experimentos sociais
para os filosofadores europeus que, no dizer de Camus, assestavam suas
poltronas no sentido da História.
Também dos
salões de Paris vinha o apoio teórico a Che Guevara e seus celerados, através
de Régis Debray, mais tarde ministro de Mitterrand. Che morreu em odor de
santidade e hoje é cultuado na Bolívia, como San Ernesto de la Higuera.
Danielle Mitterrand, a viúva enamorada pela figura romântica do guerrillero,
dá apoio a guerrilha zapatista em Chiapas, comandada por um agitprop
branco travestido de líder indígena, o subcomandante Marcos. E a mulher de
Debray criou a biografia fictícia da guatemalteca Rigoberta Menchú, embuste que
mereceu o prêmio Nobel da Paz de 92.
Nos anos 60,
eles tentaram reeditar no Brasil a Intentona de 35. Para isso, foram treinados
na China, União Soviética, Cuba e Argélia. Fracassados e escorraçados em 64, os
sobreviventes migraram ao Chile para assessorar Allende e ao Uruguai para dar
apoio aos tupamaros. De Cuba, vinha o brado de guerra: "un, dos, tres, mil
Vietnãs". Derrotados no Uruguai em 73 por Bordaderry, deixaram o país
conhecido como a "Suíça latino-americana" em destroços, com mais da
metade de sua população ativa refugiada no exterior. Para simbolizar o apoio de
Cuba ao regime marxista que se instalara no Chile, Castro presenteou Allende
com uma submetralhadora. Presente de grego: foi a mesma que o líder marxista
usou para suicidar-se em 73. Derrubado o regime de Allende, eles rumaram à
Argentina e Portugal, onde a "Idéia" estava em marcha. Em 76, instaura-se,
com Videla, a ditadura militar na Argentina. Era o momento de dar de rédeas
rumo a outros nortes.
Em 75, alguns
militares lusos, entusiasmados com a derrocada de um salazarismo já moribundo,
tentaram instalar na península ibérica a república socialista que os espanhóis
já haviam exorcizado. A esperança migrara para Portugal. Ou para o Peru, onde o
Sendero Luminoso e o Tupac Amaru assassinaram, nos 80, milhares de peruanos,
sob a inspiração humanitária do Grande Timoneiro.
Era o que, em
Paris, chamávamos de la grande randonée. Aventureiros de todos os
quadrantes, alguns imbuídos de nobres ideais, outros de ressentimentos e
vontade de poder, migravam de um país a outro para "fazer a
Revolução". Em qualquer geografia sentiam-se em casa: sempre havia um
comitê para recebê-los como heróis e delegar-lhes novas tarefas. Só no Rio de
Janeiro, o cardeal Eugenio Sales alugou 80 apartamentos para abrigar aparatchiks
de toda a América Latina, que chegaram a acolher grupos de 150,
simultaneamente. O total de militantes hospedados, entre 76 e 82, chegou a
cinco mil pessoas.
Eles
percorreram o século e o continente latino-americano, receberam doutrinação
ideológica e treinamento de guerrilha em diversos países. Quem atesta esta
internacionalização são os próprios guerrilheiros em suas memórias. Foram
financiados pela China, ex-URSS e até pela miserável Cuba. Além de dispor
santuários para onde quer que fugissem, gozavam de exílios confortáveis nas
sociais-democracias européias. Se um aparatchik era preso na mais
discreta fronteira do mundo, no outro dia manifestantes em Paris, Berlim,
Estocolmo ou Londres pediam sua libertação. A luta não tinha fronteiras. Agora
condenam, indignados, a chamada operação Condor.
Que horror! Os
militares da América Latina trocavam informações e serviços para combatê-los.
Isto me lembra um debate dos anos 70 em Estocolmo. Pacifistas denunciavam as
Forças Armadas suecas, porque estas usavam armas que feriam e matavam. Um
oficial, muito pedagógico, teve de vir a público para esclarecer: "a função
de uma arma é ferir e matar".
Consta que os
responsáveis pela operação Condor até se comunicavam em código. Maquiavélicos,
estes senhores.
"O
RETRATO"
2 O
HOMEM DO APARELHO
Impossível
precisar o dia. Recordo-me que foi em 1953, na segunda quinzena de agosto.
Impossível precisar tampouco em que Estado do Brasil me encontrava - Rio de
Janeiro, Minas Gerais ou São Paulo. Recordo-me apenas de que o lugar distava
umas quatro horas do Rio, lugar onde eu partira em automóvel, certa noite,
fazendo todo o trajeto em alta velocidade, os olhos fechados, como de praxe.
Agora achava-me em meio de vasta chácara, no quintal de uma casa que era peça
integrante do aparelho clandestino do Partido.
Por
aquela época servia de sede a mais um curso de marxismo-leninismo, do qual
participavam umas trinta pessoas, em sistema de internato. Mesmo sem ser aluno,
desempenhando então outra tarefa, eu me enquadrava no regime vigente, ajudando
nos serviços domésticos, dormindo em esteiras no chão e entrando na escala de
plantonistas que se revezavam durante a noite, armados ou desarmados, conforme
o caso, atentos a quaisquer ruídos ou fenômenos estranhos que surgissem.
Fazia
uma semana que eu havia chegado ali e minha tarefa estava quase concluída.
Encontrava-me no momento folheando "O QUE FAZER?", de Lenin, em busca
de uma citação para intercalar no trabalho de um dirigente do PCB. O dono do
trabalho arrastou uma cadeira para junto de mim, falou:
— Como vai isso?
— Terminando...
Ele baixou a voz, prosseguiu:
— Escuta aqui, tu fôste a Viena, há alguns meses, para o Congresso da Paz; naturalmente teu passaporte está em ordem, não está? Bem, então vai-te preparando discretamente (cuidado, não deixa tua companheira perceber!) porque dentro de uma ou duas semanas vais embarcar para o exterior ... Fêz um instante de suspense e logo, como quem oferece o paraíso numa bandeja, esclareceu, balançando a cabeça: — Vais para a URSS.
— Como vai isso?
— Terminando...
Ele baixou a voz, prosseguiu:
— Escuta aqui, tu fôste a Viena, há alguns meses, para o Congresso da Paz; naturalmente teu passaporte está em ordem, não está? Bem, então vai-te preparando discretamente (cuidado, não deixa tua companheira perceber!) porque dentro de uma ou duas semanas vais embarcar para o exterior ... Fêz um instante de suspense e logo, como quem oferece o paraíso numa bandeja, esclareceu, balançando a cabeça: — Vais para a URSS.
Tentei
dissimular a felicidade que me banhava a alma. E perguntei quanto tempo iria
ficar por lá. Ele franziu a testa, impeliu para cima, com um movimento do
queixo, o lábio superior, coberto pelo bigode largo e espesso, fez um gesto
vago com a mão direita:
— Uns dois ou três anos...
— Uns dois ou três anos...
Levantou-se,
estava feita a comunicação, saiu. Eu fiquei desarvorado e só. Era de tarde e
fazia sol, mas nesse momento tudo me pareceu escuro e confuso. Conhecer Moscou,
a Meca do comunismo internacional, era a grande aspiração acariciada por todos
nós. E esta possibilidade agora me inundava de alegria. Mas eis que, ao mesmo
tempo, em sentido contrário, intervieram outros sentimentos. É que,
estreitamente vinculadas a mim pelo amor, pelo contato diário, por um hábito de
convivência que se transformara em necessidade, existiam duas pessoas — minha
filha, de três anos de idade, e a mulher com quem me casara fazia quatro anos,
e a idéia da separação provocava em mim uma angústia sufocante.
Confesso
que durante alguns segundos embalei-me numa ilusão absurda: não aceitar a
tarefa. Aparentemente, eu era livre de cumpri-la ou recusá-la. Decerto, há
circunstâncias em que a pessoa é coagida a praticar um ato contra sua vontade e
até mesmo contra sua consciência. Pode acontecer que o filho seja moralmente
forçado a agir assim, sob imposição da autoridade paterna. Mas eu não era
menor, nem o homem que me falou era meu pai: nove anos antes, eu ignorava até
sua existência. Pode acontecer também que o militar seja disciplinarmente
forçado, sobretudo em tempo de guerra, a entrar numa embarcação, por exemplo,
sem sequer conhecer qual o destino. Mas eu não era militar, nem estávamos em
estado de guerra. Pode acontecer ainda que a pessoa, para não perder uma
situação econômica vantajosa, se submeta a uma imposição semelhante. Mas eu ganhava,
como funcionário do Partido, infinitamente menos do que poderia ganhar
exercendo minha profissão na vida civil. Enfim, não se configurava ali nenhum
dos casos típicos. Entretanto, se eu cheguei a vacilar alguns segundos sobre a
aceitação da tarefa, o mesmo não aconteceu ao indivíduo de bigode largo: ele
tinha absoluta certeza de que eu a aceitaria e por isso limitou-se a
comunicar-me quando eu deveria partir.
Com
efeito, maior que a autoridade paterna, mais rígida que a disciplina militar,
mais eficaz que a coação econômica eram a autoridade, a disciplina e o poder
coativo desse indivíduo. Porque ele manejava uma das máquinas mais eficientes
que os homens inventaram para despersonalizar os próprios homens: o Aparelho do
Partido Comunista. Com esse fim, o Aparelho põe em funcionamento, quando
necessário, as seguintes engrenagens:
1) o apelo à mística partidária;
2) o terrorismo ideológico;
3) a pressão das opiniões coletivas de grupos partidários e periféricos;
4) a ameaça de expulsão e, em certos casos, de violência física;
5) os canais de difamação
1) o apelo à mística partidária;
2) o terrorismo ideológico;
3) a pressão das opiniões coletivas de grupos partidários e periféricos;
4) a ameaça de expulsão e, em certos casos, de violência física;
5) os canais de difamação
Pode-se
imaginar, portanto, como é difícil, dificílimo mesmo, a um militante comunista
que faça parte do Aparelho, opor-se a suas decisões. Esse militante, em geral,
é uma pessoa sem vontade própria, nem consciência própria. Não se pertence: de
unidade (indivíduo) converte-se em parcela inseparável de uma entidade (o
partido). Em suma, o homem do Aparelho é, espiritualmente, um alienado. E eu
era um homem do Aparelho.
A
ESCOLA DA REVOLUCÃO
A
Escola, em Moscou, para a formação de revolucionários de tipo bolchevista, não
se restringia ao ensino dos fundamentos teóricos do marxismo- leninismo.
Através da pressão ideológica e do próprio regime de internato, onde se fazia a
apologia da obediência cega, e o endeusamento de tudo que fosse soviético,
buscava-se transformar cada aluno num indivíduo despersonalizado, sem quaisquer
interesses ou vontade que não fossem os interesses e a vontade da direção do
Partido; que aceitasse voluntàriamente uma disciplina supermilitarizada, sendo
capaz de cumprir, sem vacilar, as ordens mais absurdas; que não tentasse
pensar, a não ser por meio de chavões, para evitar desvios da linha do Partido,
fixada pela direção suprema; que considerasse a fidelidade ante a URSS e o PCUS
como "a pedra de toque do internacionalismo proletário",
constituindo-se dentro de seu próprio partido num homem de Moscou.
MEMÓRIAS
COMUNISTAS - OSVALDO PERALVA - ANTÕNIO PAIM
http://conspiratio3.blogspot.com.br/2015/03/memorias-comunistas.html
OSVALDO PERALVA DEMOLE UTOPIA BOLCHEVIQUE
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/05/1635450-autor-osvaldo-peralva-demole-utopia-bolchevista-em-o-retrato.shtml
Livro 'O Retrato' narra desilusão com o comunismo
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/05/1635451-livro-o-retrato-narra-desilusao-com-o-comunismo.shtml
LAVAGEM CEREBRAL - ALDOUS HUXLEY
http://conspiratio3.blogspot.com.br/2013/04/lavagem-cerebral-aldous-huxley.html#uds-search-results
http://conspiratio3.blogspot.com.br/2015/03/memorias-comunistas.html
OSVALDO PERALVA DEMOLE UTOPIA BOLCHEVIQUE
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/05/1635450-autor-osvaldo-peralva-demole-utopia-bolchevista-em-o-retrato.shtml
Livro 'O Retrato' narra desilusão com o comunismo
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/05/1635451-livro-o-retrato-narra-desilusao-com-o-comunismo.shtml
LAVAGEM CEREBRAL - ALDOUS HUXLEY
http://conspiratio3.blogspot.com.br/2013/04/lavagem-cerebral-aldous-huxley.html#uds-search-results
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