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sábado, 22 de agosto de 2015

Condor Choca Militantes

Por Janer Cristaldo (in memorian)

Para eles, as nações não tinham fronteiras e o palco de lutas era o planeta todo. Em 35, uma judia berlinense, oficial do Exército Vermelho soviético, veio coordenar a revolução no Brasil, assessorada por aparatchiks belgas, alemães, franceses e argentinos. Osvaldo Peralva, membro brasileiro do Kominform, sediado em Bucareste, ao denunciar a conspiração toda em O Retrato (Editora Globo, 1962), foi banido do mundo intelectual e classificado como agente da CIA. O que Peralva denunciou com conhecimento de causa foi mais tarde documentado por William Waack, no excelente Camaradas (Companhia das Letras, 1993), com pesquisas nos arquivos do Kremlin.

Em 36, foram todos para a Espanha, dar apoio bélico e moral a Stalin, que tentava imobilizar a Europa estrangulando-a com o controle do Mediterrâneo. Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres da Espanha em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas". Aproveitando a vaza, um vigarista malaguenho fez fortuna internacional, dando o título de Guernica a um quadro em torno à morte de um toureiro.

Em 59, eles deram apoio logístico e de mídia a Fidel e Che, para instalar a mais longa ditadura da América Latina. De Paris, um filósofo feio, baixinho e confuso veio dar seu aval ao tirano do Caribe. Uma foto da época é das mais emblemáticas: Sartre, de pescoço espichado para o alto, adorando Castro como um Deus. Em La Lune et le Caudillo (Gallimard, 1989), Jeannine Verdès Leroux nos relembra este momento de extraordinária poesia.

-- Todos os homens têm direito a tudo que eles pedem - pontifica Castro. - E se eles pedem a lua? - pergunta Sartre. O ditador retoma seu charuto e se volta para o filósofo baixinho: - Se eles pedem a lua, é porque têm necessidade dela.

Pediam a lua no bestunto do ditador e do filósofo. Em verdade, queriam dólares, pão e liberdade. Da mesma forma que a Espanha, em 36, foi um campo de treinamento para a Segunda Guerra, a América Latina era laboratório de experimentos sociais para os filosofadores europeus que, no dizer de Camus, assestavam suas poltronas no sentido da História.

Também dos salões de Paris vinha o apoio teórico a Che Guevara e seus celerados, através de Régis Debray, mais tarde ministro de Mitterrand. Che morreu em odor de santidade e hoje é cultuado na Bolívia, como San Ernesto de la Higuera. Danielle Mitterrand, a viúva enamorada pela figura romântica do guerrillero, dá apoio a guerrilha zapatista em Chiapas, comandada por um agitprop branco travestido de líder indígena, o subcomandante Marcos. E a mulher de Debray criou a biografia fictícia da guatemalteca Rigoberta Menchú, embuste que mereceu o prêmio Nobel da Paz de 92.

Nos anos 60, eles tentaram reeditar no Brasil a Intentona de 35. Para isso, foram treinados na China, União Soviética, Cuba e Argélia. Fracassados e escorraçados em 64, os sobreviventes migraram ao Chile para assessorar Allende e ao Uruguai para dar apoio aos tupamaros. De Cuba, vinha o brado de guerra: "un, dos, tres, mil Vietnãs". Derrotados no Uruguai em 73 por Bordaderry, deixaram o país conhecido como a "Suíça latino-americana" em destroços, com mais da metade de sua população ativa refugiada no exterior. Para simbolizar o apoio de Cuba ao regime marxista que se instalara no Chile, Castro presenteou Allende com uma submetralhadora. Presente de grego: foi a mesma que o líder marxista usou para suicidar-se em 73. Derrubado o regime de Allende, eles rumaram à Argentina e Portugal, onde a "Idéia" estava em marcha. Em 76, instaura-se, com Videla, a ditadura militar na Argentina. Era o momento de dar de rédeas rumo a outros nortes.

Em 75, alguns militares lusos, entusiasmados com a derrocada de um salazarismo já moribundo, tentaram instalar na península ibérica a república socialista que os espanhóis já haviam exorcizado. A esperança migrara para Portugal. Ou para o Peru, onde o Sendero Luminoso e o Tupac Amaru assassinaram, nos 80, milhares de peruanos, sob a inspiração humanitária do Grande Timoneiro.

Era o que, em Paris, chamávamos de la grande randonée. Aventureiros de todos os quadrantes, alguns imbuídos de nobres ideais, outros de ressentimentos e vontade de poder, migravam de um país a outro para "fazer a Revolução". Em qualquer geografia sentiam-se em casa: sempre havia um comitê para recebê-los como heróis e delegar-lhes novas tarefas. Só no Rio de Janeiro, o cardeal Eugenio Sales alugou 80 apartamentos para abrigar aparatchiks de toda a América Latina, que chegaram a acolher grupos de 150, simultaneamente. O total de militantes hospedados, entre 76 e 82, chegou a cinco mil pessoas.

Eles percorreram o século e o continente latino-americano, receberam doutrinação ideológica e treinamento de guerrilha em diversos países. Quem atesta esta internacionalização são os próprios guerrilheiros em suas memórias. Foram financiados pela China, ex-URSS e até pela miserável Cuba. Além de dispor santuários para onde quer que fugissem, gozavam de exílios confortáveis nas sociais-democracias européias. Se um aparatchik era preso na mais discreta fronteira do mundo, no outro dia manifestantes em Paris, Berlim, Estocolmo ou Londres pediam sua libertação. A luta não tinha fronteiras. Agora condenam, indignados, a chamada operação Condor.

Que horror! Os militares da América Latina trocavam informações e serviços para combatê-los. Isto me lembra um debate dos anos 70 em Estocolmo. Pacifistas denunciavam as Forças Armadas suecas, porque estas usavam armas que feriam e matavam. Um oficial, muito pedagógico, teve de vir a público para esclarecer: "a função de uma arma é ferir e matar".

Consta que os responsáveis pela operação Condor até se comunicavam em código. Maquiavélicos, estes senhores.

"O RETRATO"

2 O HOMEM DO APARELHO

Impossível precisar o dia. Recordo-me que foi em 1953, na segunda quinzena de agosto. Impossível precisar tampouco em que Estado do Brasil me encontrava - Rio de Janeiro, Minas Gerais ou São Paulo. Recordo-me apenas de que o lugar distava umas quatro horas do Rio, lugar onde eu partira em automóvel, certa noite, fazendo todo o trajeto em alta velocidade, os olhos fechados, como de praxe. Agora achava-me em meio de vasta chácara, no quintal de uma casa que era peça integrante do aparelho clandestino do Partido.

Por aquela época servia de sede a mais um curso de marxismo-leninismo, do qual participavam umas trinta pessoas, em sistema de internato. Mesmo sem ser aluno, desempenhando então outra tarefa, eu me enquadrava no regime vigente, ajudando nos serviços domésticos, dormindo em esteiras no chão e entrando na escala de plantonistas que se revezavam durante a noite, armados ou desarmados, conforme o caso, atentos a quaisquer ruídos ou fenômenos estranhos que surgissem.

Fazia uma semana que eu havia chegado ali e minha tarefa estava quase concluída. Encontrava-me no momento folheando "O QUE FAZER?", de Lenin, em busca de uma citação para intercalar no trabalho de um dirigente do PCB. O dono do trabalho arrastou uma cadeira para junto de mim, falou:
— Como vai isso?
— Terminando...
Ele baixou a voz, prosseguiu:
— Escuta aqui, tu fôste a Viena, há alguns meses, para o Congresso da Paz; naturalmente teu passaporte está em ordem, não está? Bem, então vai-te preparando discretamente (cuidado, não deixa tua companheira perceber!) porque dentro de uma ou duas semanas vais embarcar para o exterior ... Fêz um instante de suspense e logo, como quem oferece o paraíso numa bandeja, esclareceu, balançando a cabeça: — Vais para a URSS.

Tentei dissimular a felicidade que me banhava a alma. E perguntei quanto tempo iria ficar por lá. Ele franziu a testa, impeliu para cima, com um movimento do queixo, o lábio superior, coberto pelo bigode largo e espesso, fez um gesto vago com a mão direita:
— Uns dois ou três anos...

Levantou-se, estava feita a comunicação, saiu. Eu fiquei desarvorado e só. Era de tarde e fazia sol, mas nesse momento tudo me pareceu escuro e confuso. Conhecer Moscou, a Meca do comunismo internacional, era a grande aspiração acariciada por todos nós. E esta possibilidade agora me inundava de alegria. Mas eis que, ao mesmo tempo, em sentido contrário, intervieram outros sentimentos. É que, estreitamente vinculadas a mim pelo amor, pelo contato diário, por um hábito de convivência que se transformara em necessidade, existiam duas pessoas — minha filha, de três anos de idade, e a mulher com quem me casara fazia quatro anos, e a idéia da separação provocava em mim uma angústia sufocante.

Confesso que durante alguns segundos embalei-me numa ilusão absurda: não aceitar a tarefa. Aparentemente, eu era livre de cumpri-la ou recusá-la. Decerto, há circunstâncias em que a pessoa é coagida a praticar um ato contra sua vontade e até mesmo contra sua consciência. Pode acontecer que o filho seja moralmente forçado a agir assim, sob imposição da autoridade paterna. Mas eu não era menor, nem o homem que me falou era meu pai: nove anos antes, eu ignorava até sua existência. Pode acontecer também que o militar seja disciplinarmente forçado, sobretudo em tempo de guerra, a entrar numa embarcação, por exemplo, sem sequer conhecer qual o destino. Mas eu não era militar, nem estávamos em estado de guerra. Pode acontecer ainda que a pessoa, para não perder uma situação econômica vantajosa, se submeta a uma imposição semelhante. Mas eu ganhava, como funcionário do Partido, infinitamente menos do que poderia ganhar exercendo minha profissão na vida civil. Enfim, não se configurava ali nenhum dos casos típicos. Entretanto, se eu cheguei a vacilar alguns segundos sobre a aceitação da tarefa, o mesmo não aconteceu ao indivíduo de bigode largo: ele tinha absoluta certeza de que eu a aceitaria e por isso limitou-se a comunicar-me quando eu deveria partir.

Com efeito, maior que a autoridade paterna, mais rígida que a disciplina militar, mais eficaz que a coação econômica eram a autoridade, a disciplina e o poder coativo desse indivíduo. Porque ele manejava uma das máquinas mais eficientes que os homens inventaram para despersonalizar os próprios homens: o Aparelho do Partido Comunista. Com esse fim, o Aparelho põe em funcionamento, quando necessário, as seguintes engrenagens:
1) o apelo à mística partidária;
2) o terrorismo ideológico;
3) a pressão das opiniões coletivas de grupos partidários e periféricos;
4) a ameaça de expulsão e, em certos casos, de violência física;
5) os canais de difamação

Pode-se imaginar, portanto, como é difícil, dificílimo mesmo, a um militante comunista que faça parte do Aparelho, opor-se a suas decisões. Esse militante, em geral, é uma pessoa sem vontade própria, nem consciência própria. Não se pertence: de unidade (indivíduo) converte-se em parcela inseparável de uma entidade (o partido). Em suma, o homem do Aparelho é, espiritualmente, um alienado. E eu era um homem do Aparelho.

A ESCOLA DA REVOLUCÃO

A Escola, em Moscou, para a formação de revolucionários de tipo bolchevista, não se restringia ao ensino dos fundamentos teóricos do marxismo- leninismo. Através da pressão ideológica e do próprio regime de internato, onde se fazia a apologia da obediência cega, e o endeusamento de tudo que fosse soviético, buscava-se transformar cada aluno num indivíduo despersonalizado, sem quaisquer interesses ou vontade que não fossem os interesses e a vontade da direção do Partido; que aceitasse voluntàriamente uma disciplina supermilitarizada, sendo capaz de cumprir, sem vacilar, as ordens mais absurdas; que não tentasse pensar, a não ser por meio de chavões, para evitar desvios da linha do Partido, fixada pela direção suprema; que considerasse a fidelidade ante a URSS e o PCUS como "a pedra de toque do internacionalismo proletário", constituindo-se dentro de seu próprio partido num homem de Moscou.


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