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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Ação Humana de Ludwig von Mises por Murray N. Rothbard em seu livro O Essencial von Mises (homenagem)

Ação Humana

Uma coisa era formular a metodologia apropriada para a ciência econômica, outra bem diversa, e muito mais difícil, era erguer efetivamente a economia, todo o corpo da análise econômica, sobre esta base, usando tal método. Normalmente se consideraria impossível que um só homem pudesse levar a cabo as duas empreitadas: formular a metodologia e em seguida elaborar todo o sistema completo da economia sobre estes fundamentos. Mesmo considerando a longa série de obras e realizações de Mises, não se poderia esperar que ele próprio realizasse essa tarefa árdua e extremamente difícil. E, não obstante, Ludwig von Mises, isolado e sozinho, abandonado por praticamente todos os seus seguidores, exilado, em Genebra, da Áustria fascista, em meio a um mundo e a um meio profissional que tinham desprezado todos os seus ideais, métodos e princípios, realizou-a. Em 1940, publicou sua monumental e suprema realização, Nationalökonomie, obra que, no entanto; foi imediatamente esquecida em meio às preocupações de uma Europa dilacerada pela guerra. Em parte, a Nationalökonomie foi ampliada e traduzida para o inglês em 1949 sob o título Human Action(Ação Humana). A elaboração de Ação Humana constitui, por si mesma, uma façanha notável. O fato de Mises ter conseguido levá-la a cabo em circunstâncias tão drasticamente adversas converte essa obra no que há de mais inspirador e tocante.

Ação Humana é o que de melhor se poderia desejar; é ciência econômica completa, desenvolvida a partir de sólidos axiomas praxeológicos, integralmente baseada na análise do homem em ação, do indivíduo dotado de propósitos agindo no mundo real. E a economia elaborada como disciplina dedutiva, desfiando as implicações lógicas da existência da ação humana. Quanto ao presente autor, que teve o privilégio de lê-la quando de seu lançamento, essa obra mudou o curso de sua vida e de suas ideias. Ali se encontrava um sistema de pensamento econômico com que alguns de nós sonhávamos sem jamais pensar que fosse exequível: uma ciência econômica, completa e racional, a economia tal como devia ser, mas nunca fora. A ciência econômica que Ação Humana nos propiciou.

A magnitude da façanha de Mises pode também ser aquilatada pelo fato de que Ação Humana não foi somente o primeiro tratado geral de economia na tradição austríaca desde a Primeira Guerra Mundial: foi o primeiro tratado geral em qualquer tradição. Porque, após a Primeira Guerra Mundial, a economia tornou-se cada vez mais fracionada, rompida em fragmentos e pedaços de análise desintegrados. Desde as obras escritas antes da guerra por homens eminentes como Fetter, Clark, Taussig e Böhm-Bawerk, os economistas tinham deixado de apresentar sua disciplina como um todo dedutivo integrado. Hoje, os únicos que procuram apresentar um quadro geral do campo são os autores dos manuais básicos: e estes, com sua falta de coerência, revelam apenas o deplorável estado a que chegou a ciência econômica.

Mas, agora, Ação Humana indica a saída daquele lodaçal de incoerência. Pouco mais se pode dizer sobre Ação Humana, exceto chamar atenção para algumas das muitas contribuições minuciosas contidas nesse grandioso corpus de ciência econômica. Apesar de ter descoberto e enfatizado a preferência temporal como base do juro, o próprio Böhm Bawerk não fizera dela a base de todas as suas teorias, deixando confuso o problema da preferência. Frank A. Fetter aperfeiçoara e refinara a teoria, e estabelecera a explanação do juro com base exclusiva na preferência temporal, em seus notáveis mas desprezados escritos das duas primeiras décadas do século XX. A concepção básica de Fetter sobre o sistema econômico era que as “utilidades” e demandas do consumidor fixam os preços dos bens de consumo, que os fatores individuais ganham sua produtividade marginal e que, assim, todos esses retornos são abatidos pela taxa de juros ou pela taxa de preferência temporal, com o credor ou o capitalista auferindo o desconto. Mises, além de fazer reviver a realização esquecida de Fetter, mostrou que a preferência temporal era uma categoria praxeológica indispensável da ação humana e integrou a teoria do juro de Fetter à teoria böhmbawerkiana do capital e à sua própria teoria do ciclo econômico.

Mises fez também uma crítica, extremamente necessária, da utilização do método – então de aceitação geral – matemático e estatístico na ciência econômica. Trata se de um sistema baseado no neoclássico suíço Léon Walras, e de uma metodologia que praticamente expulsou a linguagem ou a lógica verbal da teoria econômica. Permanecendo na tradição explicitamente antimatemática dos economistas clássicos e dos “austríacos” (muitos dos quais com completa formação em matemática), Mises salientou que as equações matemáticas só têm utilidade para a descrição do irrealismo, atemporal e estático, do “equilíbrio geral”. Quando se abandona esse nirvana e se passa a analisar os indivíduos em ação no mundo real, mundo de tempo e de expectativas, de esperanças e desacertos, a matemática se torna não só inútil, mas também altamente enganosa. Mostrou que o próprio uso da matemática na economia é parte do erro positivista, que trata os homens como pedras e, por conseguinte, acredita que, tal como na física, as ações humanas podem de algum modo ser expressas em gráficos com a precisão matemática com que se traça a trajetória de um míssil pelo ar. Mais ainda, provou que, uma vez que os atores individuais só podem ser vistos e avaliados em termos de diferenças substantivas, o uso do cálculo diferencial – que pressupõe mudanças quantitativas infinitamente pequenas – é particularmente inadequado a uma ciência da ação humana.

O uso de “funções” matemáticas implica também que todos os eventos no mercado são “reciprocamente determinados”, pois, em matemática, se x é uma função de y, então y é igualmente uma função de x. Esse tipo de metodologia da “determinação recíproca” pode ser perfeitamente legítimo no campo dá física, onde não há agentes causais que atuem singularmente. Mas na esfera da ação humana há um agente causal, uma causa “singular”: a ação proposital do indivíduo. A economia “austríaca” revela, assim, que a causa flui, por exemplo, da demanda do consumidor para a cotação dos fatores de produção; e de maneira alguma no sentido inverso.

O método “econométrico”, igualmente em moda, que procura integrar eventos estatísticos e a matemática é duplamente falacioso, uma vez que qualquer uso da estatística para chegar a leis previsíveis presume que a análise da ação individual revela, como ocorre na física, constantes confirmáveis, leis quantitativas invariáveis. E, no entanto, como Mises enfatizou, ninguém jamais descobriu uma única constante quantitativa no comportamento humano, e não é plausível acreditar que alguém venha algum dia a fazê-lo, dada a livre vontade inerente a todo indivíduo. Dessa falácia advém igualmente a mania atual pela previsão “científica” na ciência econômica.

Mises põe a descoberto, de forma incisiva, a falácia fundamental dessa vã aspiração, antiga mas incurável. A lamentável folha corrida da previsão econométrica nestes últimos anos, a despeito do uso de computadores
ultravelozes e de “modelos” econométricos supostamente sofisticados, é apenas mais uma confirmação de uma das muitas provas de perspicácia que Mises ofereceu.

Deploravelmente, com o período entre guerras, somente um aspecto da economia misesiana, afora um fragmento de sua metodologia, conseguiu infiltrar-se no mundo de língua inglesa. Com base em sua teoria do ciclo econômico, Mises previra uma depressão numa época em que, na “Nova Era” da década de 1920, os economistas, em sua maioria, entre eles Irving Fisher, proclamavam um futuro de prosperidade ilimitada, assegurada pelas manipulações dos bancos centrais governamentais. Quando a Grande Depressão se instalou, começou-se a manifestar vivo interesse pela teoria misesiana do ciclo econômico, sobretudo na Inglaterra. Esse interesse foi incrementado peta migração para a London School of Economics do eminente discípulo de Mises, Friedrich A. Hayek, cujo aperfeiçoamento da teoria do ciclo econômico foi rapidamente traduzido para o inglês no princípio da década de 1930. Ao longo desse período, o seminário conduzido por Hayek na London School formou muitos teóricos “austríacos” do ciclo econômico, entre os quais John R. Hicks, Abba P. Lerner, Ludwig M. Lachmann e Nicholas Kaldor. Além disso, discípulos ingleses de Mises, como Lionel Robbins e Frederic Benham, publicaram as explanações misesianas da Grande Depressão na Inglaterra. Os escritos dos alunos “austríacos” de Mises, como os de Fritz Machlup e Gottfried von Haberler, começaram a ser traduzidos, e, finalmente, em 1934, Robbins supervisionou a tradução de The Theory of Money and Credit em 1931, Mises publicou sua análise da depressão em Die Ursachen der Wirtschaftskrise. Tudo indicava, na primeira metade da década de 1930, que a teoria misesiana do ciclo econômico prevalecia e, se isso ocorresse, suas demais teorias não poderiam ficar muito atrás.

A América foi muito lenta em assimilar a teoria “austríaca”, mas a enorme influência da ciência econômica inglesa nos EUA assegurou a difusão da teoria misesiana do ciclo econômico também nesse país. Logo que Gottfried von Haberler publicou a primeira síntese da teoria do ciclo de Mises-Hayek, Alvin Hansen, economista em ascensão, voltou-se para a doutrina “austríaca”. Além da teoria do ciclo, a teoria “austríaca” do capital e do juro foi revivificada numa notável série de artigos publicados em revistas especializadas norte-americanas por Hayek, Machlup e pelo jovem economista Kenneth Boulding.

Parecia cada vez mais que a economia “austríaca” seria a onda do futuro, e que Ludwig von Mises obteria finalmente o reconhecimento que há tanto tempo merecia e nunca alcançara. Mas, a um passo da vitória, a tragédia sobreveio na forma da famosa “Revolução Keynesiana”. Com a publicação da General Theory of Employment, Interest and Money, em 1936, a nova, incompleta e emaranhada justificativa e racionalização da inflação e dos déficits governamentais proposta por John Maynard Keynes assolou o mundo econômico como fogo na pradaria. Até Keynes, a ciência econômica constituíra um freio impopular ao fomento da inflação e ao déficit orçamentário, mas agora, como Keynes, e armados com seu jargão nebuloso, obscuro e quase matemático, os economistas podiam atirar-se a uma popular e lucrativa aliança com políticos e governos ansioso por expandir sua influência e poder. A economia keynesiana foi esplendidamente talhada para servir de armadura intelectual para o moderno estado provedormilitarista (welfare-warfare state), para o intervencionismo e o estatismo, em ampla e poderosa escala.

Como ocorre frequentemente na história da ciência social, os keynesianos não se deram ao trabalho de refutar a teoria misesiana, que foi simplesmente esquecida, prontamente varrida pelo brusco avanço da adequadamente chamada “Revolução Keynesiana”. A teoria misesiana do ciclo, com o restante da economia “austríaca”, foi simplesmente despejada pelo “buraco da memória” orwelliano abaixo, perdida dali por diante para os economistas e para o mundo. Provavelmente o mais trágico aspecto desse esquecimento maciço foi a deserção dos mais capazes dos seguidores de Mises: a debandada rumo ao keynesianismo não só de alunos ingleses de Hayek, de Hansen – que logo se converteu no principal keynesiano norteamericano – mas também dos austríacos que tinham maior conhecimento. Estes deixaram rapidamente a Áustria para ocupar elevados cargos acadêmicos nos EUA e formar a ala moderada da economia keynesiana. Depois da fulgurante perspectiva das décadas de 1920 e 1930, apenas Hayek e o menos conhecido Lachmann permaneceram fiéis e íntegros. Foi em meio a esse isolamento, esse esboroamento de suas grandes e merecidas esperanças, que Ludwig von Mises trabalhou para completar a grandiosa estrutura de Ação Humana.

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Fonte extraído do livro - O Essencial von Mises de Murray N. Rothbard (Compre este livro, valorize a obra e o autor.)

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