Uma
coisa era formular a metodologia apropriada para a ciência econômica, outra bem
diversa, e muito mais difícil, era erguer efetivamente a
economia, todo o corpo da análise econômica, sobre esta base, usando tal
método. Normalmente se consideraria impossível que um só homem pudesse levar a
cabo as duas empreitadas: formular a metodologia e em seguida elaborar todo o
sistema completo da economia sobre estes fundamentos. Mesmo considerando a
longa série de obras e realizações de Mises, não se poderia esperar que ele
próprio realizasse essa tarefa árdua e extremamente difícil. E, não obstante,
Ludwig von Mises, isolado e sozinho, abandonado por praticamente todos os seus
seguidores, exilado, em Genebra, da Áustria fascista, em meio a um mundo e a um
meio profissional que tinham desprezado todos os seus ideais, métodos e
princípios, realizou-a. Em 1940, publicou sua monumental e suprema realização,
Nationalökonomie, obra que, no entanto; foi imediatamente esquecida em meio às
preocupações de uma Europa dilacerada pela guerra. Em parte, a Nationalökonomie
foi ampliada e traduzida para o inglês em 1949 sob o título Human Action(Ação
Humana). A elaboração de Ação Humana constitui, por si mesma, uma façanha
notável. O fato de Mises ter conseguido levá-la a cabo em circunstâncias tão
drasticamente adversas converte essa obra no que há de mais inspirador e
tocante.
Ação
Humana é o que de melhor se poderia desejar; é ciência econômica completa,
desenvolvida a partir de sólidos axiomas praxeológicos, integralmente baseada
na análise do homem em ação, do indivíduo dotado
de propósitos agindo no mundo real. E a economia elaborada como disciplina
dedutiva, desfiando as implicações lógicas da existência da ação humana. Quanto
ao presente autor, que teve o privilégio de lê-la quando de seu lançamento,
essa obra mudou o curso de sua vida e de suas ideias. Ali se encontrava um
sistema de pensamento econômico com que alguns de nós sonhávamos sem jamais pensar
que fosse exequível: uma ciência econômica, completa e racional, a economia tal
como devia ser, mas nunca fora. A ciência econômica que Ação Humana nos propiciou.
A
magnitude da façanha de Mises pode também ser aquilatada pelo fato
de que Ação Humana não foi somente o primeiro tratado geral de economia
na tradição austríaca desde a Primeira Guerra Mundial: foi o primeiro tratado geral em qualquer tradição. Porque, após a Primeira Guerra Mundial, a economia
tornou-se cada vez mais fracionada, rompida em fragmentos e pedaços de análise
desintegrados. Desde as obras escritas antes da guerra por homens eminentes
como Fetter, Clark, Taussig e Böhm-Bawerk, os economistas tinham deixado de apresentar
sua disciplina como um todo dedutivo integrado. Hoje, os únicos que procuram
apresentar um quadro geral do campo são os autores dos manuais básicos: e
estes, com sua falta de coerência, revelam apenas o deplorável estado a que
chegou a ciência econômica.
Mas,
agora, Ação Humana indica a saída daquele lodaçal de incoerência. Pouco mais se
pode dizer sobre Ação Humana, exceto chamar atenção para algumas das muitas
contribuições minuciosas contidas nesse grandioso corpus de ciência econômica.
Apesar de ter descoberto e enfatizado a preferência temporal como base do juro,
o próprio Böhm Bawerk não fizera dela a base de todas as suas teorias, deixando
confuso o problema da preferência. Frank A. Fetter aperfeiçoara e refinara a
teoria, e estabelecera a explanação do juro com base exclusiva na preferência
temporal, em seus notáveis mas desprezados escritos das duas primeiras décadas
do século XX. A concepção básica de Fetter sobre o sistema econômico era que as
“utilidades” e demandas do consumidor fixam os preços dos bens de consumo, que
os fatores individuais ganham sua produtividade marginal e que, assim, todos
esses retornos são abatidos pela taxa de juros ou pela taxa de preferência temporal,
com o credor ou o capitalista auferindo o desconto. Mises, além de fazer
reviver a realização esquecida de Fetter, mostrou que a preferência temporal
era uma categoria praxeológica indispensável da ação humana e integrou a teoria
do juro de Fetter à teoria böhmbawerkiana do capital e à sua própria teoria do
ciclo econômico.
Mises
fez também uma crítica, extremamente necessária, da utilização do método – então
de aceitação geral – matemático e estatístico na ciência econômica. Trata se de
um sistema baseado no neoclássico suíço Léon Walras, e de uma metodologia que
praticamente expulsou a linguagem ou a lógica verbal da teoria econômica.
Permanecendo na tradição explicitamente antimatemática dos economistas clássicos
e dos “austríacos” (muitos dos quais com completa formação em matemática),
Mises salientou que as equações matemáticas só têm utilidade para a descrição
do irrealismo, atemporal e estático, do “equilíbrio geral”. Quando se abandona
esse nirvana e se passa a analisar os indivíduos em ação no mundo real, mundo
de tempo e de expectativas, de esperanças e desacertos, a matemática se torna
não só inútil, mas também altamente enganosa. Mostrou que o próprio uso da
matemática na economia é parte do erro positivista, que trata os homens como
pedras e, por conseguinte, acredita que, tal como na física, as ações humanas
podem de algum modo ser expressas em gráficos com a precisão matemática com que
se traça a trajetória de um míssil pelo ar. Mais ainda, provou que, uma vez que
os atores individuais só podem ser vistos e avaliados em termos de diferenças
substantivas, o uso do cálculo diferencial – que pressupõe mudanças
quantitativas infinitamente pequenas – é particularmente inadequado a uma
ciência da ação humana.
O uso
de “funções” matemáticas implica também que todos os eventos no mercado são
“reciprocamente determinados”, pois, em matemática, se x é uma função de y,
então y é igualmente uma função de x. Esse tipo de metodologia da “determinação
recíproca” pode ser perfeitamente legítimo no campo dá física, onde não há
agentes causais que atuem singularmente. Mas na esfera da ação humana há um agente
causal, uma causa “singular”: a ação proposital do indivíduo. A economia
“austríaca” revela, assim, que a causa flui, por exemplo, da demanda do
consumidor para a cotação dos fatores de produção; e de maneira alguma no
sentido inverso.
O
método “econométrico”, igualmente em moda, que procura integrar eventos
estatísticos e a matemática é duplamente falacioso, uma vez que qualquer uso da
estatística para chegar a leis previsíveis presume que a análise da ação
individual revela, como ocorre na física, constantes confirmáveis, leis
quantitativas invariáveis. E, no entanto, como Mises enfatizou, ninguém jamais
descobriu uma única constante quantitativa no comportamento humano, e não é
plausível acreditar que alguém venha algum dia a fazê-lo, dada a livre vontade inerente
a todo indivíduo. Dessa falácia advém igualmente a mania atual pela previsão
“científica” na ciência econômica.
Mises
põe a descoberto, de forma incisiva, a falácia fundamental dessa vã aspiração, antiga
mas incurável. A lamentável folha corrida da previsão econométrica nestes
últimos anos, a despeito do uso de computadores
ultravelozes
e de “modelos” econométricos supostamente sofisticados, é apenas mais uma
confirmação de uma das muitas provas de perspicácia que Mises ofereceu.
Deploravelmente,
com o período entre guerras, somente um aspecto da economia misesiana, afora um
fragmento de sua metodologia, conseguiu infiltrar-se no mundo de língua
inglesa. Com base em sua teoria do ciclo econômico, Mises previra uma depressão
numa época em que, na “Nova Era” da década de 1920, os economistas, em sua
maioria, entre eles Irving Fisher, proclamavam um futuro de prosperidade
ilimitada, assegurada pelas manipulações dos bancos centrais governamentais.
Quando a Grande Depressão se instalou, começou-se a manifestar vivo interesse
pela teoria misesiana do ciclo econômico, sobretudo na Inglaterra. Esse
interesse foi incrementado peta migração para a London School of Economics do
eminente discípulo de Mises, Friedrich A. Hayek, cujo aperfeiçoamento da teoria
do ciclo econômico foi rapidamente traduzido para o inglês no princípio da
década de 1930. Ao longo desse período, o seminário conduzido por Hayek na
London School formou muitos teóricos “austríacos” do ciclo econômico, entre os
quais John R. Hicks, Abba P. Lerner, Ludwig M. Lachmann e Nicholas Kaldor. Além
disso, discípulos ingleses de Mises, como Lionel Robbins e Frederic Benham,
publicaram as explanações misesianas da Grande Depressão na Inglaterra. Os
escritos dos alunos “austríacos” de Mises, como os de Fritz Machlup e Gottfried
von Haberler, começaram a ser traduzidos, e, finalmente, em 1934, Robbins
supervisionou a tradução de The Theory of Money and Credit em 1931, Mises
publicou sua análise da depressão em Die Ursachen der Wirtschaftskrise. Tudo indicava,
na primeira metade da década de 1930, que a teoria misesiana do ciclo econômico
prevalecia e, se isso ocorresse, suas demais teorias não poderiam ficar muito atrás.
A
América foi muito lenta em assimilar a teoria “austríaca”, mas a enorme
influência da ciência econômica inglesa nos EUA assegurou a difusão da teoria
misesiana do ciclo econômico também nesse país. Logo que Gottfried von Haberler
publicou a primeira síntese da teoria do ciclo de Mises-Hayek, Alvin Hansen,
economista em ascensão, voltou-se para a doutrina “austríaca”. Além da teoria
do ciclo, a teoria “austríaca” do capital e do juro foi revivificada numa
notável série de artigos publicados em revistas especializadas norte-americanas
por Hayek, Machlup e pelo jovem economista Kenneth Boulding.
Parecia
cada vez mais que a economia “austríaca” seria a onda do futuro, e que Ludwig
von Mises obteria finalmente o reconhecimento que há tanto tempo merecia e
nunca alcançara. Mas, a um passo da vitória, a tragédia sobreveio na forma da
famosa “Revolução Keynesiana”. Com a publicação da General Theory of
Employment, Interest and Money, em 1936, a nova, incompleta e emaranhada
justificativa e racionalização da inflação e dos déficits governamentais
proposta por John Maynard Keynes assolou o mundo econômico como fogo na pradaria.
Até Keynes, a ciência econômica constituíra um freio impopular ao fomento da
inflação e ao déficit orçamentário, mas agora, como Keynes, e armados com seu
jargão nebuloso, obscuro e quase matemático, os economistas podiam atirar-se a
uma popular e lucrativa aliança com políticos e governos ansioso por expandir
sua influência e poder. A economia keynesiana foi esplendidamente talhada para
servir de armadura intelectual para o moderno estado provedormilitarista (welfare-warfare
state), para o intervencionismo e o estatismo, em ampla e poderosa escala.
Como
ocorre frequentemente na história da ciência social, os keynesianos não se
deram ao trabalho de refutar a teoria misesiana, que foi simplesmente
esquecida, prontamente varrida pelo brusco avanço da adequadamente chamada
“Revolução Keynesiana”. A teoria misesiana do ciclo, com o restante da economia
“austríaca”, foi simplesmente despejada pelo “buraco da memória” orwelliano abaixo,
perdida dali por diante para os economistas e para o mundo. Provavelmente o
mais trágico aspecto desse esquecimento maciço foi a deserção dos mais capazes
dos seguidores de Mises: a debandada rumo ao keynesianismo não só de alunos
ingleses de Hayek, de Hansen – que logo se converteu no principal keynesiano
norteamericano – mas também dos austríacos que tinham maior conhecimento. Estes
deixaram rapidamente a Áustria para ocupar elevados cargos acadêmicos nos EUA e
formar a ala moderada da economia keynesiana. Depois da fulgurante perspectiva
das décadas de 1920 e 1930, apenas Hayek e o menos conhecido Lachmann
permaneceram fiéis e íntegros. Foi em meio a esse isolamento, esse esboroamento
de suas grandes e merecidas esperanças, que Ludwig von Mises trabalhou para
completar a grandiosa estrutura de Ação Humana.
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Fonte
extraído do livro - O Essencial von Mises de Murray N. Rothbard (Compre
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