Por Kathleen
Norris
Este
livro deve ser interpretado à luz de seu contexto histórico. Num ato de
coragem, seu autor quis contar histórias que curassem os corações num mundo que
perdera a sanidade. Em 1942, apenas vinte e quatro anos
depois
do fim de uma guerra brutal que dizimara uma geração inteira de jovens, a
Grã-Bretanha via-se de novo envolvida numa guerra. Dessa vez, quem sofria mais
eram os seus cidadãos comuns, na medida em que a pequena nação insular era
bombardeada todas as noites por quatrocentos aviões, na blitz de triste
lembrança que mudou a face da guerra, transformando civis em alvos e suas
cidades em fronts de batalha.
Ainda
rapaz, C. S. Lewis serviu nas pavorosas trincheiras da Primeira Guerra Mundial
e, em 1940, quando as bombas começaram a cair sobre a Inglaterra, se alistou
como oficial da vigilância antiaérea e passou a
dar
palestras para os soldados da Royal Air Force, homens que sabiam, com quase
toda a certeza, que seriam dados como mortos ou desaparecidos depois de apenas
treze missões de bombardeio. A situação deles incitou
Lewis a
falar sobre os problemas do sofrimento, da dor e do mal. Estes trabalhos
resultaram no convite da BBC para que ele fizesse uma série de programas de
rádio sobre a fé crista. Ministradas de 1942 a 1944, estas
conferências
radiofónicas foram mais tarde reunidas no livro que conhecemos hoje como Cristianismo
puro e simples.
Este
livro, portanto, não é feito de especulações filosóficas académicas. E, isto
sim, um trabalho de literatura oral dirigido a um povo em guerra. Quão insólito
devia ser ligar o rádio — que a toda hora dava notícias de mortes e de uma
destruição indescritível — e ouvir um homem falar, de forma inteligente,
bem-humorada e profunda, sobre o comportamento digno e humano, sobre a conduta
leal e sobre a importância da distinção entre
o certo
e o errado. Chamado pela BBC para explicar aos seus conterrâneos no que os
cristãos acreditavam, C. S. Lewis lançou-se à tarefa como se ela fosse a coisa
mais fácil do mundo, mas também a mais importante.
Mal
podemos imaginar o efeito que as metáforas utilizadas no livro tiveram sobre os
ouvintes na época. A imagem do mundo como um território ocupado pelo inimigo,
invadido por forças malignas que destroem tudo o
que é
bom, ainda hoje desperta fortes associações. Nossos conceitos de modernidade e
de progresso, bem como todos os avanços tecnológicos, não bastaram para dar fim
às guerras. O fato de termos declarado obsoleta a
noção de
pecado não diminuiu o sofrimento humano. E as respostas fáceis — colocar a
culpa na tecnologia ou, por que não, nas religiões do mundo - não resolveram o
problema. O problema, C. S. Lewis insistia, somos nós.
A
geração ímpia e perversa da qual falavam milhares de anos atrás os salmistas e
os profetas é também a nossa, sempre que nos submetemos a males sistémicos e
individuais como se não tivéssemos outra alternativa.
C. S.
Lewis, que certa vez foi descrito por um amigo como um homem apaixonado pela
imaginação, acreditava que a aceitação complacente do status quo era
muito mais do que uma fraqueza inócua. Em Cristianismo
puro
e simples, não menos do
que em suas obras de fantasia, como as Crónicas de Nárnia ou os romances
de ficção científica, Lewis deixa escapar sua crença profunda no poder que a
imaginação humana tem de revelar a verdade oculta a respeito de nossa condição
e de nos trazer esperança. "O caminho mais longo é o mais curto para
chegar em casa" — tal é a lógica tanto das fábulas quanto da fé.
Falando
unicamente com a autoridade da experiência de leigo e ex-ateu, C. S. Lewis
disse aos ouvintes na rádio que o motivo pelo qual fora selecionado para a
missão de explicar o cristianismo para a nova geração era o de não ser ele um
especialista no assunto, mas antes "um amador... e um iniciante, não uma
mão calejada". Confidenciou a amigos que aceitara a tarefa porque
acreditava que a Inglaterra, que passara a se considerar como
parte de
um mundo "pós-cristão", nunca tinha aprendido de fato, em termos simples,
em que consistia a religião. Assim como Soren Kierkegaard antes dele, e de
Dietrich Bonhoefifer, seu contemporâneo, Lewis buscou, em
Cristianismo
puro e simples, nos
ajudar a ver a religião com novos olhos, como uma fé radical cujos partidários devem
ser comparados a um grupo clandestino agrupado numa zona de guerra, num lugar
onde o mal parece
predominar,
para ouvir mensagens de esperança vindas do lado livre.
O
cristianismo "puro e simples" de C. S. Lewis não é uma filosofia nem
mesmo uma teologia que deve ser lida, discutida e guardada na estante. E um
modo de vida que nos desafia sempre a lembrar, como Lewis disse certa vez, que
"não existem pessoas comuns", e que "aqueles de quem fazemos
troça, com quem trabalhamos ou nos casamos, os que menosprezamos ou exploramos,
são todos imortais". Quando entramos em
sintonia
com essa realidade, crê Lewis, nos abrimos para transformar imaginativamente
nossas vidas de tal forma que o mal declina e o bem triunfa. E isto que Cristo
quis de nós quando tomou para si nossa humanidade, santificou nossa carne e nos
pediu em troca que revelássemos Deus uns aos outros.
Se o
mundo faz essa tarefa parecer impossível, Lewis insiste em que ela não é. Mesmo
alguém que ele vê como "envenenado por uma criação miserável numa casa
cheia de ciúmes vulgares e brigas gratuitas" pode estar seguro de que Deus
está bem ciente "da máquina grosseira que tenta dirigir", e pede-lhe
somente para "ir em frente e fazer o possível". O cristianismo que
Lewis comunga é humano, mas não é fácil: ele nos chama a reconhecer que a maior
batalha religiosa não se trava num campo espetacular, mas dentro do coração
humano comum, quando, a cada manhã, acordamos e sentimos a pressão do dia a nos
afligir e temos de decidir que tipo de imortais queremos ser. Talvez nos sirva
de consolo, como serviu ao sofrido povo britânico quando ouviu pela primeira
vez estes colóquios, recordar que Deus prega uma peça nos que buscam o poder a
qualquer preço. Lewis nos lembra, com seu humor e sua verve costumeira:
"Quão monótona é a semelhança que une todos os grandes tiranos e
conquistadores; quão gloriosa é a diferença dos santos!"
Clives Staples Lewis - Cristianismo Puro e
Simples – Legendado
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