Introdução à obra
Por
José Osvaldo de Meira Penna
O
socialismo foi derrotado. A prova histórica está aí: com exceção da Coréia do
Norte e Cuba, mesmo as nações da “fraternidade socialista”, que
durante mais de 40 anos desafiaram as democracias ocidentais, adotaram receitas
liberais para sair do marasmo crescente em que se sentiam cair. O Muro da
Vergonha foi derrubado, o império soviético ruiu como um castelo de cartas,
Deng Xiaoping privatizou as comunas agrárias chinesas e abriu “novas áreas
econômicas” ao capitalismo e comércio internacional. O próprio Vietnam acolheu
o McDonald’s e tudo que implica. Partidos socialdemocráticos encheram uma parte
do terreno deixado vago, enquanto nas nações mais adiantadas programas radicais
de abertura, globalização e redução do intervencionismo estatal estão sendo
testados. Mesmo no Brasil, um antigo social-democrata e teórico da insossa
Teoria da Dependência é elevado à Presidência da República, onde inaugura,
ainda que hesitante e timidamente, o processo de modernização de nossa
estrutura estatal, prometendo a privatização e abertura final da economia.
Permanece,
porém, uma retaguarda de intelectuais glasnostálgicos que se recusam a
reconhecer os fatos. Uma nova revista marxista é fundada, sob o nome adequado
de Praga. O socialismo é deveras uma praga de difícil erradicação. Expulso
definitivamente da ciência econômica por seu fracasso empiricamente comprovado,
refugia-se na mística, evocando seu alto teor moral. É com argumentos éticos
que se pretende defender. Confirma, assim, a presunção, avançada pela primeira
vez por Nietzsche há mais de cem anos, de que a ideologia perversa é um
substituto, um Ersatz, um medíocre sucedâneo de uma fé cristã em declínio. Muitos
outros filósofos modernos, como Hannah Arendt, Aron e Kolakowski, concordam com
a tese de que o socialismo representa aquela pseudo “religião civil” que
Rousseau pretendeu criar, para substituir a Igreja com o culto patriótico do estado
ressacralizado. Fundamentados nesse arquétipo inconsciente do
amor cristão, secularizado como ideologia espúria, os intelectuais da
Esquerda se obstinam na defesa “moral” de sua tese, como se fossem os
paladinos da Justiça, dita “social”; da assistência aos pobres, às viúvas, aos
desamparados, aos indigentes; da generosidade e atenção com os menos favorecidos; da igualdade de todos na
utilização dos recursos que a natureza pôs à nossa disposição; e das mais altas virtudes cívicas de fraternidade coletiva.
Esses senhores hipócritas cinicamente se
esquecem das calamidades que o socialismo, comumente associado ao nacionalismo
agressivo, causou em nosso século horrendo de guerras e revoluções. Bastaria
lembrar a fome e o terror estalinista que teria carregado com 40 ou 50 milhões
de russos; ou o cataclismo semelhante que Mao causou à população chinesa com
seu “Grande salto para a Frente” e sua “Revolução Cultural”; ou o genocídio do
Camboja; ou o paredón de Fidel Castro!
Não
obstante, ao denunciar a “crueldade” do capitalismo e suas “injustiças”, o
vício do egoísmo e da cobiça, a sede de lucros e a corrupção da riqueza, sempre
atribuídas ao sistema de produção que proporcionou à humanidade, nestes últimos
200 anos, o mais extraordinário e inédito progresso que registra a história, o
socialismo se legitimou e dominou a mente ocidental durante mais de cem anos.
Partindo do postulado que a propriedade privada é um roubo ou resultado da
exploração do proletariado pela burguesia, os intelectuais de Esquerda
tentaram, no período após a II Guerra Mundial, realizar uma verdadeira
“Revolução Mundial” que por todo o planeta fizesse triunfar os seus princípios.
Foram poucos os que ousaram se levantar contra essa pretensão. Um dos primeiros
que lançou um brado de alerta no sentido que estávamos seguindo no “caminho da
servidão” foi Friedrich Hayek. Seu livrinho desse título foi publicado mesmo
antes do fim do conflito mundial. Em 1947, Hayek convocou uma reunião do que
viria a se constituir como a Sociedade do Mont Pèlerin – tomando seu título do
local, na Suíça, onde pela primeira vez se reunira. Lembremos, contudo, que, numa
época em que mais ardente era o confronto entre os totalitários da direita e da
esquerda que se iam engalfinhar na guerra mundial, fora realizado o Colloque
Walter Lippmann, convocado em Paris, 1938, em honra àquele prestigioso
jornalista e ensaísta liberal americano. Ao Colóquio e à reunião da Mont
Pèlerin compareceram, naturalmente, o veterano cientista político Raymond Aron,
o economista Jacques Rueff, que desempenharia papel importante na França de De
Gaulle, e o barão Bertrand de Jouvenel.
Diplomata,
jornalista e sociólogo que se iria distinguir, nos anos seguintes, como um dos
fundadores da Mont Pèlerin, Bertrand de Jouvenel foi discípulo de Hayek e um
dos mais intrépidos defensores do Liberalismo numa França que parecia
irremediavelmente alinhadas com as ideias coletivistas e estatizantes. Em 1949,
em Cambridge, na Inglaterra, ele pronunciou uma série de conferências,
publicadas, dois anos depois, como um livro com o título de Ethics of
Redistribution.
O
título é fundamental. Tanto quanto Hayek, o ensaísta francês apontou para o
cerne do desafio socialista: o propósito de, sob especiosos argumentos éticos e
autoridade estatal, redistribuíra fortuna dos membros da sociedade. O termo
“redistribuição” comporta um sentido mais amplo que Socialismo. Os marxistas,
comunistas e socialistas pretendiam simplesmente expropriar toda a atividade
econômica privada, entregando-a a administração do estado, em que eles próprios
seriam os dirigentes e administradores. Na “redistribuição” eram principalmente
os social-democratas que se empenhavam – procurando valer-se dos incentivos e
estímulos que reconheciam na atividade empresarial, mas objetivando não apenas
uma igualdade perante a lei e igualdade de oportunidades, mas a igualdade final
de resultados, ou seja, basicamente uma igualdade de rendas. Mesmo após o
colapso do socialismo real e o desaparecimento do comunismo, ainda é esse o
propósito dos partidos de Esquerda. Jouvenel possui portanto o mérito
incontestável de haver sido, com Hayek, Mises, os economistas
austríacos e os liberais americanos, um dos primeiros a indigitar os métodos de
convicção moral que a intelectuária esquerdizante utiliza
para atingir suas metas de poder. Nas conferências cujo texto enche as páginas
de magnífico livro, Jouvenel acentua que os recursos para a estatização ou
nacionalização da economia, conforme desejado pelos partidos socialistas de
diversos matizes, iriam forçosamente ser encontrados na poupança da classe
média; e que a retórica da “justiça social” e da fraternidade pseudocristã
seria descaradamente utilizada com esse objetivo. No correr do processo, e
seguindo no caminho já previsto por Mises e Hayek, os doutrinários da Esquerda conseguiram
reforçar extraordinariamente o poder do estado, centralizando-o em suas
próprias mãos. O monopólio do poder político e do poder econômico era o que
esses intelectuais, políticos e agitadores, em última análise, objetivavam.
Numa obra posterior, publicada em 1972, num período em que o maior pessimismo
oprimia os verdadeiros inimigos do totalitarismo na Europa – Du Pouvoir –, o
eminente liberal francês procurou explicitar muitas das ideias que haviam sido lançadas
por pensadores clássicos, desde o tempo de Tocqueville, sobre o que estava
ocorrendo na Europa e em todo o Ocidente. Há um certo sentido simbólico no fato
de que tenha Aron falecido, de um enfarte fulminante, no momento em que, aos 78
anos de idade, acabava de depor num processo por difamação que envolvia seu
amigo Jouvenel. O ponto mais importante que se salienta é, a meu ver, o fato de
que “as revoluções liquidam as fraquezas” dos regimes que derrubam e “dão à luz
a força de novos sistemas de poder, mais opressivos e autoritários do que os
anteriores”. “A obra revolucionária é a restauração da
monarquia absoluta”, resume Jouvenel. A revolução democrática, em suma, estava
conduzindo à “democracia totalitária” como Tocqueville previra ao analisar o
Jacobinismo da Revolução Francesa. Jouvenel foi um dos primeiros a utilizar
essa expressão. Na linha de Montesquieu, Tocqueville e Hannah Arendt, ele
insiste na necessidade de descentralização do poder, como única forma, tanto
política como econômica, de assegurar o triunfo da liberdade.
O
início desse processo é por ele colocado em 1909/10, quando Lloyd George, o
chefe do primeiro governo trabalhista britânico (Labour Party), introduziu uma
legislação que criava o imposto de renda progressivo. O imposto deixava de ser
igualitário e revelava uma verdadeira intenção expropriadora. Vale notar que
outros partidos socialdemocráticos, o norueguês e o sueco, por exemplo,
chegaram, nos anos 1960/70, a impor taxas superiores a 100%, o que valia a uma expropriação
pura e simples, pois obrigava a vítima a vender parte de sua propriedade para
pagar o imposto. O ponto central do argumento de Jouvenel é, no entanto, a
crítica, exatamente em termos éticos, da pretensão dos socialistas –
especialmente dos que se iriam dizer “socialistas cristãos” e teólogos da libertação
– de estarem construindo uma Cidade de Amor Fraterno. O sociólogo francês
atribui corretamente esse ideal às matutações de Rousseau e encontra suas
raízes no Du Contrat Social do famoso genebrino. Aponta, com extrema
agudeza,
a contradição da tese que, simultaneamente, anuncia o método para atingir uma
distribuição igualitária das rendas e promete o desenvolvimento e progresso
econômico. Na realidade, Rousseau denunciava o progresso e a ciência como
moralmente condenáveis. Diríamos que Jouvenel foi um dos primeiros a descobrir
que nessa contradição se encontra a fonte do mal que iria, derradeiramente,
destruir a Ideologia. Não se pode, de fato, equalizar as rendas, suprimindo o
desejo egoísta de maiores lucros e avanço econômico, e, ao mesmo tempo, preconizar
o rápido desenvolvimento da sociedade. Uma comunidade comunista fraterna só
pode sobreviver num meio limitado, como, por exemplo, o de um convento de
monges mendicantes, em que o ganho material é absolutamente desprezado. O
ecologismo moderno, como contraponto das aspirações socialistas, bem explicita essa
contradição que desperta quando, com a Revolução Industrial, o escândalo da
pobreza, face aos exageros do luxo gratuito, passou a criar problemas de
consciência na mente dos pensadores.
A
extrema miséria é tão indecente quanto a extrema riqueza, diz Jouvenel ao
analisar pormenorizadamente as perplexidades de sentido ético que incidem na
consideração das desigualdades sociais. Trata, por exemplo, do caráter
francamente suntuário – revoltante para o radicalismo igualitário – de todas as
atividades culturais das chamadas “classes ociosas”, particularmente as
artísticas. Rothschild pode perder seu iate, mas deve Bergson ser privado dos
confortos que lhe permitem realizar sua obra filosófica? E não foi graças aos
lucros do industrial Engels, não deprimidos pelos impostos, que Marx obteve os
benefícios de lazer graças aos quais pôde redigir Das Kapital? Os valores e as
satisfações têm caráter subjetivo: Jouvenel aponta para esse fato óbvio que Marx
deliberadamente descurou. A discussão dos aspectos econômicos desse
subjetivismo que abala decisivamente o arrazoado socialista enche a parte
central do ensaio. O alargamento sucessivo das oportunidades de consumo – o
consumo conspícuo contra o qual Veblen deblaterava – sempre esteve associado à
distribuição desigual de seus meios; e foi isso que permitiu o progresso social
e o avanço cultural. Jouvenel salienta que, longe de serem utópicos, os
socialistas estiveram destacadamente privados de imaginação quanto às
possibilidades detransformação e avanço que a sociedade capitalista
proporciona.
O
sociólogo atribui o corporativismo – tema que em nosso país muito se salienta –
à necessidade das classes ligadas ao estado de camuflar seus gastos. A parte
mais relevante do trabalho é, certamente, sua demonstração inequívoca de que
quanto mais se procura redistribuir a fortuna, tanto mais se reforça o poder do
estado e daqueles que o controlam. Para um sociólogo que com tanta atenção
debruçou-se sobre o problema do Poder, esse ponto é predominante no julgamento do
redistributivismo. Com agudeza ferina, ele assinala que as revoluções liberais
clássicas, a inglesa e a americana sobretudo, procuraram justificar-se na base
do princípio «não há taxação sem representação. Foi o princípio que, desde a
Magna Carta do século XIII, restringiu o poder do soberano e assegurou o
surgimento do parlamentarismo. A função dos parlamentos consistiu,
inicialmente, em votar os impostos pedidos pelo poder soberano executivo,
controlando o orçamento e sua aplicação. Ora, ocorreu o inverso: os governos
democráticos que haviam prosperado a partir desse princípio fundamental não
tardaram a aumentar a tributação, na crença de que quanto mais pudessem arrancar
da renda privada para encher as burras do Tesouro, tanto melhor se tornaria a
comunidade como um todo. Uma minoria privilegiada se beneficiaria,
invariavelmente, da generosidade pública. O fenômeno é amplamente confirmado na
história recente de nosso país: no período militar ditatorial, a Constituição
vedava ao Legislativo engordar o orçamento. Tão logo a «abertura» se registrou,
os novos governantes se puseram como se de pileque, a gastar, gastar, gastar, engrossando
o déficit público, acelerando a inflação e empobrecendo a massa da população em
benefício próprio. Toda a segunda parte do ensaio se dedica ao exame crítico
das despesas do estado, quando este se substitui à iniciativa privada e procura
arregimentar a sociedade no igualitarismo obsessivo que inspira o democratismo ideológico.
Na
parte conclusiva da obra, o pensador francês denuncia com elegância, precisão
e a maior simplicidade as novas atribuições a que, a título de «justiça
social», a si mesmo concede o poder governamental, fortalecido e centralizado
nas democracias «sociais» modernas. Acentua enfaticamente que, «quanto mais
consideramos a questão, tanto mais claramente se evidencia que a redistribuição
(da fortuna) é, de fato, muito menos uma redistribuição da renda livre dos mais
ricos para os mais pobres, como imaginávamos, do que uma redistribuição do
poder do indivíduo para o estado». Jouvenel inspira-se na intuição de
Tocqueville no sentido de que o movimento revolucionário democrático, ao
derrubar o feudalismo e o absolutismo monárquico, gerara, sem o saber, um
verdadeiro Frankenstein: uma nova classe de democratas. Na verdade, nosso autor
é, talvez, o primeiro analista moderno a usar essa expressão «Nova Classe
Dirigente» – aquilo que os russos chamam a Nomenklatura – a classe
político-burocrática que, sustentada na retórica da Justiça Social e da
Redistribuição, apodera-se do estado para dele se locupletar. Ninguém melhor
para julgar o fenômeno do que o próprio Trotsky, um dos principais líderes da revolução
bolchevista e mentor de nosso PT, que observava: “aquele a quem está afeta a
redistribuição jamais se esquecerá de si próprio...” Jouvenel conclui,
magistralmente, que a consequência da redistribuição é expandir o papel do
estado e, por conversão, a expansão do estado
se processou por medidas de redistribuição que o “tudo pelo social”
legitima
A
obra de Bertrand de Jouvenel, que o Instituto Liberal do Rio Grande do Sul
oferece em tradução ao público brasileiro, constitui, assim, uma esplêndida
iniciativa, por ilustrar, através do trabalho de um ilustre sociólogo francês,
as consequências perversas do redistributivismo que o
movimento socialista e a socialdemocracia previdencialista promoveram.
José Osvaldo de Meira Penna Presidente
do IL de Brasília - Outubro de 1996
A
ética da redistribuição - Bertrand de Jouvenel (Compre
este livro, valorize a obra e o autor.)
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