Embora este artigo do historiador
mexicano Enrique Krause não seja atual, o assunto que ele descreve é
atualíssimo; basta trocar os nomes dos bois (dos populistas) por Lula ou por
Dilma, e o leitor verá o futuro que esse tipo de governo populista trará, ou já
está trazendo para o Brasil. Anon, SSXXI
Os dez mandamentos do populismo
Por Enrique
Krauze
O
populismo na América Latina adotou um amálgama desconcertante de posições
ideológicas. Esquerdas e direitas poderiam reivindicar a paternidade do
populismo, todas ao conjuro da palavra mágica "povo". Populista quintessencial
foi o general Juan Domingo Perón, que havia atestado
diretamente a ascensão do fascismo italiano e admirava Mussolini a ponto de
querer "erigir-lhe um monumento em cada esquina". Populista
pós-moderno é Hugo Chávez, que venera Fidel Castro a ponto de tentar converter
a Venezuela numa colônia experimental do "novo socialismo". Os
extremos se tocam, são cara e coroa de um mesmo fenômeno político cuja caracterização
não se deve tentar, contudo, pela via de seu conteúdo ideológico, mas sim de
seu funcionamento. Proponho dez traços.
1 - O
populismo exalta o líder carismático. Não há populismo sem a figura do homem providencial
que resolverá os problemas do povo. "A entrega ao carisma do profeta, do
caudilho na guerra ou do grande demagogo - recorda Max Weber - não ocorre
porque a mande o costume ou a norma legal, mas porque os homens crêem
nele."
2 - O
populista não só usa e abusa da palavra: ele se apropria dela. A palavra é o
veículo específico de seu carisma. O populista se sente o intérprete supremo da
verdade geral e também a agência de notícias do povo. Fala com o povo de modo
constante, incita suas paixões, "ilumina o caminho",
e faz isso sem restrições nem intermediários. Weber assinala que o caudilhismo político
surge primeiro nas cidades-Estado do Mediterrâneo na figura do
"demagogo". Aristóteles sustenta que a demagogia é a causa principal
das "revoluções nas democracias", e ercebe uma convergência entre o
poder militar e o poder da retórica que parece uma prefiguração de Perón e
Chávez: "Nos tempos antigos, quando o demagogo era também general, a
democracia se transformava em tirania." Mais tarde desenvolveu-se a
habilidade retórica e chegou a hora dos demagogos puros: "Agora os que
dirigem o povo são os que sabem falar." Há 25 séculos essa distorção da
verdade pública se desenvolvia na Ágora real; no século 20 ela o fez
na
Ágora virtual das ondas sonoras e visuais: de Mussolini (e Goebbels), Perón
aprendeu a importância política do rádio para hipnotizar as massas. E Chávez
superou o mentor Fidel ao usar até o paroxismo a oratória televisiva.
3 - O populismo fabrica a verdade. Os populistas levam às últimas conseqüências
o provérbio latino: "Vox populi, vox Dei." Mas como Deus não se
manifesta todos os dias e o povo não tem uma única voz, o governo
"popular" interpreta a voz do povo, eleva essa versão à condição de verdade
oficial, e sonha com decretar a verdade única. Os populistas abominam a
liberdade de expressão. Confundem a crítica com inimizade militante, por isso
buscam desprestigiá-la, controlá-la, silenciá-la. Na Argentina peronista, os
jornais oficiais - incluindo um órgão nazista - contavam
com generosos privilégios, mas a imprensa livre esteve a um passo de
desaparecer. A situação venezuelana, com a "lei da mordaça" pendendo
como uma espada sobre a liberdade de expressão, aponta no mesmo sentido;
terminará por esmagá-la.
4 - O
populista usa de modo discricionário os recursos públicos. Não tem paciência
com as sutilezas da economia e das finanças. O erário é seu patrimônio privado,
que ele pode usar para enriquecer-se ou para embarcar em projetos que considere
importantes ou gloriosos sem levar em conta os custos. O populista tem uma
concepção mágica da economia: para ele, todo gasto é investimento. A ignorância
ou incompreensão dos governos populistas em matéria econômica se traduziu em
desastres descomunais dos quais os países levam décadas para se recuperar.
5 - O
populista divide diretamente a riqueza. O que não é criticável em si (sobretudo
em países pobres, onde há argumentos extremamente sérios para dividir, de fato,
uma parte da receita, à margem das dispendiosas burocracias estatais e
prevenindo efeitos inflacionários), mas o populista não divide de graça:
focaliza sua ajuda e a cobra em obediência. "Vocês têm o dever de pedir!",
exclamava Evita a seus beneficiários. Criou-se assim uma idéia fictícia da
realidade econômica e entronizou-se uma mentalidade assistencialista. No fim,
quem pagava a conta? Não a
própria Evita (que cobrou seus serviços com juros e resguardou na Suíça suas
contas multimilionárias), mas sim as reservas acumuladas em décadas, os
próprios operários com suas doações "voluntárias" e, sobretudo, a
posteridade endividada, devorada pela inflação. Quanto à Venezuela, até as
estatísticas oficiais admitem que a pobreza aumentou, mas a improdutividade do
assistencialismo só será sentida no futuro, quando os preços dispararem e o
regime levar às últimas conseqüências seu propósito ditatorial.
6 - O populista alimenta o ódio de classes.
"As revoluções nas democracias são causadas sobretudo pela intemperança
dos demagogos", explica Aristóteles. O conteúdo dessa intemperança foi o
ódio contra os ricos: "Algumas vezes por sua política de denúncias... e
outras atacando-os como classe, (os demagogos) incitam contra eles o
povo." Os populistas latino-americanos correspondem à definição clássica,
com uma nuance: fustigam "os ricos", mas atraem os "empresários
patrióticos" que apóiam o seu regime. O populista não busca,
necessariamente, abolir o mercado: sujeita seus agentes e os manipula a seu
favor.
7 - O
populista mobiliza permanentemente os grupos sociais. O populismo apela,
organiza, inflama as massas. A praça pública é o teatro onde comparece
"Sua Majestade, o Povo" para demonstrar sua força e escutar as
inventivas contra "os maus" de dentro e de fora. "O povo",
claro, não é a soma de vontades individuais expressas em um voto e
representadas por um Parlamento; nem sequer a encarnação da "vontade
geral" de Rousseau, mas uma massa seletiva e vociferante que caracterizou
outro clássico, Marx - não Karl, mas Groucho: "O poder para os que gritam
'O poder para o povo!'"
8 - O
populismo fustiga sistematicamente o "inimigo externo". Imune à
crítica e alérgico à autocrítica, precisando apontar bodes expiatórios para os
fracassos, o regime populista (mais nacionalista que patriótico) precisa
desviar a atenção interna para o adversário de fora. A Argentina peronista
reavivou as velhas (e explicáveis) paixões antiamericanas que ferviam na
América
Latina desde a guerra de 1898, mas Fidel converteu essa paixão na essência de
seu triste regime, definido pelo que odeia, não pelo que ama, aspira ou
consegue. E Chávez levou sua retórica antiamericana a expressões de baixeza que
até seu mentor Fidel (talvez) consideraria de mau
gosto. Ao mesmo tempo, faz representar nas ruas de Caracas simulacros de defesa
contra uma invasão que só existe em sua imaginação, mas em que um setor
importante da população venezuelana (contrária, em geral, ao modelo cubano)
acaba acreditando.
9 - O
populismo despreza a ordem legal. Há na cultura política ibero-americana um
apego atávico à "lei natural" e uma desconfiança das leis feitas pelo
homem. Por isso, uma vez no poder (como Chávez), o caudilho tende a se apoderar
do Congresso e induzir a "justiça direta" ("popular", "bolivariana"), arremedo de uma Fuenteovejuna - a obra teatral de
Lope de Veja sobre abuso de poder e justiça - que, para os efeitos práticos, é
a justiça que o próprio líder decreta. Hoje, o Congresso e o Judiciário são um
apêndice de Chávez, como na Argentina o eram de Perón e Evita, que suprimiram a
imunidade parlamentar e depuraram, segundo a sua conveniência,
o Poder Judiciário.
10 - O
populismo mina, domina e, em último recurso, domestica ou cancela as
instituições da democracia liberal. Ele abomina os limites a seu poder,
considera-os aristocráticos, oligárquicos, contrários à "vontade
popular". No limite de sua carreira, Evita buscou sua candidatura à vice-presidência.
Perón
se negou a apoiá-la. Se houvesse sobrevivido, seria impensável imaginá-la tramando
a derrubada do marido? Não por acaso, em seus tempos aziagos de atriz
radiofônica representara Catarina, a Grande. Quanto a Chávez, ele declarou que
seu horizonte mínimo é o ano 2020.
Por
que renasce de tempos em tempos a erva daninha do populismo na América Latina?
As razões são diversas e complexas, mas aponto duas. Em primeiro lugar, porque
suas raízes se fundem em uma noção mais antiga de "soberania popular"
que os neo-escolásticos do século 16 e 17 propagaram nos domínios espanhóis,
que teve uma influência decisiva nas guerras de independência
de Buenos Aires ao México. O populismo tem, além disso, uma natureza perversamente
"moderada" ou "provisória": não termina sendo plenamente
ditatorial nem totalitário; por isso alimenta sem cessar a enganosa ilusão de
um futuro melhor, mascara os desastres que provoca, posterga o exame objetivo de
seus atos, amansa a crítica, adultera a verdade,
adormece, corrompe e degrada o espírito público. Desde os gregos até o século
21, passando pelo aterrador século 20, a lição é clara: o efeito inevitável da
demagogia é subverter a democracia.
Enrique Krauze é historiador mexicano
Fonte: aqui
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