Existem alguns livros que pela importância de sua
temática e pelo talento argumentativo de seu autor, se tornam indutores de
fortes reações por parte do leitor, revolvendo conteúdos que já haviam sido
dados como pacificados. É aquele tipo de livro que nos faz ter a sensação de
que o autor se projeta das páginas e se posta em nossa frente, iniciando um
diálogo contundente, provocando-nos o tempo todo, nos obrigando a pensar e
admitir hipóteses que normalmente mantemos fora de nossa tela de análise, por
acreditarmos justamente no oposto.
Atualmente, procuro ser muito seletivo com aquilo
que chamo de “livros diagnóstico”, que abundam nas prateleiras das lojas que
vendem livros (as livrarias são cada vez mais raras) e que abrangem os mais
variados assuntos, tentando dar a cada um deles uma visão definitiva, uma
“fotografia em alta definição da realidade”. São livros que expressam
impressões, opiniões calcadas na credibilidade ou celebridade do autor, não
raro conquistada em outra área que não a abordada no livro, mas normalmente
carente de documentos, estudos e fontes que demonstrem e embasem suas opiniões.
Se isto não desqualifica necessariamente a obra, ao menos exige algum critério,
sob pena de nos perdermos num mar de opiniões contraditórias, umas tão válidas
ou inválidas quanto as outras.
Richard Malcolm Weaver foi um intelectual americano
que teve uma vida relativamente curta, 53 anos, mas marcou sua época com uma
obra importante, sendo a mais impactante o clássico “Ideas Have
Consequences” de traço indiscutivelmente
conservador, que expõe o declínio da civilização ocidental. Suas reflexões o
levam a um diagnóstico bastante desalentador :
“Não existe termo apropriado para descrever a situação em que o homem se
encontra agora, exceto a noção de “abismalidade”. Ele encontra-se num profundo
e escuro abismo e não dispõe de nada que lhe permita erguer-se. Sua vida é uma
prática sem teoria”.
Ora, não faltam autores e obras que se debruçam
sobre esta noção de decadência à qual parece estarmos submetidos de maneira
inexorável, mas Weaver apresenta, se não uma novidade, algo raro de se
encontrar nos “livros diagnóstico” : uma visão otimista de que o mundo é
inteligível ao homem e este declínio, é resultado de escolhas menos sábias que
fizemos ao longo da história, que foram se acumulando, mas que, sobretudo,
existem saídas para a humanidade.
O livro “As Ideias Têm Consequências”, foi
publicado originariamente em 1948 e só o conheci através da tradução lançada no
Brasil em março de 2012. Contudo, o
livro continua atual e já me atraiu fortemente pelo título, pois sinto-me
vivendo numa época em que parece que esta noção, absolutamente óbvia, parece
ser acintosamente ignorada. Basta acompanharmos as notícias do dia-a-dia para
nos depararmos com a esquizofrenia do discurso de políticos, jornalistas,
artistas, intelectuais, historiadores e demais agentes que possuem alguma voz
na grande mídia. Mas não apenas isso : ouvimos as opiniões do cidadão comum em
cada canto da cidade e raramente podemos identificar alguém que seja especialmente
cuidadoso com aquilo que diz, profere, defende.
As ideias levam às ações e estas à consequências
que são mais ou menos óbvias, mas que certamente, se não podem ser antevistas a
montante, torna-se um sinal grave de idiotia não reconhecê-las a jusante ! É
impressionante, por exemplo, que alguém que se dedique a estudar minimamente as
ideias que sustentam qualquer “pensamento revolucionário”, sobretudo os que se
abateram sobre o século XX, não levar em conta o ordenamento de consequências
lógicas destas ideias sobre o conjunto da humanidade, mesmo depois delas terem
se mostrado desastrosas inúmeras vezes.
Esta esquizofrenia nos leva aos pseudo-intelectuais
que acreditam nas ideias de Marx, Lênin, Stalin, Mao, Gramsci, Fidel, mas não
nas consequências que se abateram no mundo, deixando um rastro de mais de 120
milhões de mortos, como se fosse possível simplesmente amputar a ideia de suas
consequências indesejadas, mantendo a ideologia como algo intocável em busca de
um eterno devir.
Mas não é necessário nem desejável particularizar
este fenômeno ao pensamento revolucionário ! O pensamento reacionário e conservador
também produz seu montante de aberrações que são analisadas de maneira
igualmente esquizofrênica, pauperizando o sentido de nossas vidas através da
ficção monetarista, o consumismo e o capital que nos escraviza até o túmulo –
nossa última morada, pela qual também teremos que pagar.
O livro de Weaver começa com uma
crítica ao nominalismo do filósofo Guilherme de Ockham (séc. XIV) que pôs fim à
ideia da existência de “universais”, ou seja, princípios que regem a natureza,
incluindo a nós mesmos e que são percebidos pelo intelecto, substituindo-os
pela realidade percebida exclusivamente pelos sentidos, rebaixando assim a
dimensão do próprio ser humano àquilo que ele pode perceber, desconsiderando
sua intuição e sua intelecção da realidade. Não é preciso dizer que tal idéia
ganhou uma força ainda mais avassaladora a partir do Iluminismo e à abdicação
do pensamento transcendental do humano em favor do racionalismo científico, que
ao invés de lhe dar sentido, antes rouba-o, colocando no lugar o culto ao
egoísmo e a ruptura da interligação com os outros indivíduos e com algo que
transcenda seu próprio umbigo : É o princípio do fim de qualquer padrão moral.
Weaver localiza historicamente o
“desvio” que a humanidade tomou a partir do momento em que passou a acreditar
exclusivamente nos sentidos e consequentemente no materialismo e cientificismo
para guiar sua vida : “ ...o homem não deveria guiar-se por uma análise
científica que apele à impotência moral” .
Sob a égide da Liberdade e da
Democracia, a humanidade vem cavando seu túmulo existencial, não obstante suas
necessidades “espirituais” continuarem tão presentes como sempre : o culto ao
Catolicismo deslocado para um sem número de denominações religiosas, seitas
gnósticas e outras tantas crenças atestam que o humano não prescinde da
necessidade de crer em algo além de si, ainda que, em situações extremas que
beiram a demência, acaba acreditando no “si mesmo” como princípio organizador
do universo. Como disse brilhantemente
G. K. Chesterton – “o problema de quem não acredita em Deus, é que ele tende a
acreditar em todo o resto” - significa que um indivíduo que se diz ateu e
ainda assim acredita num ideal político como sendo a expressão da verdade, ou que um filósofo ou
líder pode deter a verdade última a ponto de definir o futuro da história
humana, ou no mercado como regulador universal das relações humanas, ou que uma
bolsa de tal grife pode conferir atributos qualitativos a quem a usa, não é um
ateu de forma alguma , apenas cultua outras coisas.
Minha grande dúvida, neste sentido, é
porque não cultuamos algo como a Ética Humana, cuidamos primeiro da ecologia do
ser humano, de sua psicologia atormentada e doentia, antes de falarmos em
ecossistemas, religiões, economia verde ou ideologias de qualquer ordem.
Deixamos de perceber algo que é gritante : nos maltratamos e maltratamos o
outro em nome de um racionalismo imbecil, que não se sustenta para além de duas
ou três perguntas - ainda que estas perguntas jamais sejam feitas. Afinal, qual
foi a última vez que você se perguntou e tentou responder com sinceridade, se
havia uma outra maneira melhor de agir do que aquela pela qual você optou ?
Neste sentido, Weaver aponta :
“Parece-me que o mundo está agora, mais do que nunca, dominado pelos deuses da
massa e da velocidade, e que o culto a eles pode conduzir apenas à diminuição
dos padrões, à adulteração da qualidade e, em geral, à perda das coisas que são
essenciais à vida da civilidade e da cultura. A tendência a olhar com suspeita
para a excelência – tanto intelectual quanto moral – como algo
“anti-democrático” não mostra sinais de diminuição.
O livro de Weaver não é muito
extenso, mas é bastante abrangente se considerarmos a pretensão da obra. Seu
texto passa pela organização social que tende cada vez mais à verticalização, a
perda do sentido e do prazer do trabalho que foi transformado em sacrifício, a
amputação das lições do passado, o igualitarismo que ignora o mérito, a
pasteurização equivocada do talento humano que transforma a sociedade em massa
e a substituição dos preceitos morais pelo cientificismo amoral. Ainda nos
mostra a evolução da substituição de qualquer forma de transcendência ou ordem
universal pelo utilitarismo e o pragmatismo e do talento artístico pela
liberdade impositiva de todas as formas de expressão. Tratam-se de pontos
polêmicos, que suscitam muitas divergências, como suscitaram em mim, mas é um
excelente tratado para reflexão e sua atualidade depois de 64 anos do
lançamento editorial, assim o demonstra.
Em vários capítulos, peguei-me em
franca discussão com o autor, SUBLINHANDO-O e
apontando meus argumentos, sobretudo pelo fato de que o próprio desvio
das “escolhas sábias da humanidade” é ele mesmo não apenas uma possibilidade,
mas uma consequência das mesmas ideias das quais se desviaram, posto que se
fossem inequívocas, não haveria força suficiente para que os desvios se consolidassem.
Não podemos nos esquecer que os valores transcendentais e as organizações
hierárquicas do passado, escravizaram e usurparam milhões de pessoas,
comprometendo sua própria legitimidade enquanto estrutura ideal da sociedade
humana. Contudo, é impossível negar o argumento central do livro : As ideias,
as escolhas e as ações têm consequências e é preguiça, falta de inteligência ou
desonestidade, deixar de reconhecer as relações de causa e efeito entre elas.
AS IDEIAS TÊM CONSEQUÊNCIAS - RICHARD
M. WEAVER - É REALIZAÇÕES EDITORA - 207 PÁGINAS
Duas observações : 1) Infelizmente
esta edição contém muitos erros bobos de revisão, omissão de letras e alguns
mais graves, o que me surpreende por não ser comum desta editora, que prima
pela qualidade de seus livros.
2) A escolha da capa, em
contrapartida, foi primorosa ! Difícil imaginar melhor escolha do que esta
pintura de Brueguel para envolver esta obra de Weaver e sua temática, motivo
pelo qual a reproduzo abaixo de forma integral.
BLIND LEADING THE BLIND - CEGO GUIANDO
OUTRO CEGO (1568) - PIETRE BRUEGEL
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Fonte: Blog Eu Sublinho
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