Por Nivaldo Cordeiro 15/09/2007
“Revesti-vos da armadura de Deus, para poderdes resistir
às insídias do diabo. Pois o nosso combate não é contra o sangue e nem contra a
carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores
deste mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam as regiões
celestiais. Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes resistir
no dia mau e sair firmes de todo o combate”. Ef 6,11-13 (Tradução da Bíblia de
Jerusalém)
Ernst Cassirer escreveu um livro
muito importante (O MITO DO ESTADO, Editora Códex, 2003), publicado
originalmente em 1946, depois de sua morte. Acabou de escrevê-lo e sequer teve
tempo de fazer um prefácio, vindo a falecer. O autor era um judeu alemão fugido
de Hitler, homem de grande erudição e um dos grandes filósofos do seu tempo.
O livro é muito notável porque o
autor procura dar uma resposta filosófica para o drama do nazismo e também
porque revela a fraqueza da filosofia para fazê-lo dentro do âmbito de sua
inspiração moderna. Cassirer foi vítima de suas próprias convicções kantianas,
que lhe impediram de responder para si mesmo o seu próprio drama pessoal, um
exilado do coletivismo homicida que tomou conta da sua Alemanha natal. Sua
interrogação permaneceu e persiste até os dias de hoje, pois os fatos políticos
de nosso tempo, e aqui me refiro especificamente ao que acontece no Brasil e na
América do Sul, continuam mortíferos e fugidios à razão daqueles que estão
limitados pela filosofia da modernidade. O Estado é como que uma esfinge a nos
propor um enigma e falhar na solução tem sido uma sentença de morte por
genocídio. Assim na Alemanha de então, assim no Brasil de agora.
O plano do livro é já uma mostra
dessa insuficiência do autor para atingir a sua empreitada. Certo, ele tocou o
cerne da questão ao perceber o irracionalismo dos movimentos políticos
contemporâneos, vendo neles a emergência das formas mitológicas ancestrais. Mas
o plano do livro mostra que essa intuição não poderia ser devidamente esgotada
por ele, pois se nas suas duas primeiras partes ele consegue ser brilhante e
pôr o problema de forma rigorosa (I- O que é o mito? e II- A luta contra o mito
na história da Teoria Política), ele falha clamorosamente na parte terceira, (O
mito do século XX), na qual ele dá destaque a dois obscuros autores que ficaram
esquecidos com o passar dos anos, Carlyle e Gobineau, estudados ao lado de
Hegel, sobre os ombros de quem Cassirer coloca a grande responsabilidade pelos
fatos políticos do seu tempo. Teria sido muito mais importante e frutífero
esmiuçar a maligna influência de Kant sobre Hegel e Nietzsche (ambos deveriam
receber um capítulo cada um) em lugar daqueles autores menores. Simplesmente
não é possível entender Hegel sem ver que ele é um desdobramento radicalizado
de Kant e não é possível compreender o nazismo sem compreender a obra de
Nietzsche.
Cassirer não percebeu o que de
fato se passou porque renegou a explicação religiosa e se tivesse abraçado o
judaísmo teria tido melhores condições de entender os fatos. Se tivesse se lembrado
de que a ordem dada por Deus a Moisés para que libertasse seu povo do Faraó é
uma ordem que se renova a cada geração para a humanidade: que todos sejam
libertados do deus-Estado, encarnado em sua força máxima na pessoa do Faraó. E
de fato a ordem política desconectada da Revelação resvala para as formas mais
degradadas de paganismo, sendo um magnífico testemunho histórico disso a
própria eclosão do nazismo (e do comunismo, essa bizarra formação política que
é oriunda de Hegel e de Rousseau, outro que poderia merecer um capítulo dentro
da lógica do seu livro). Mas essa ordem de Deus impõe a compreensão do homem
como o portador do pecado original e do Estado como um arremedo de justiça para
minimizar a queda, para que seja possível a vida em sociedade, sem que se
esqueça da origem do seu caráter maligno. Escreveu Cassirer:
“Quando, em 1776, os amigos de
Thomas Jefferson lhe pediram o projeto de Constituição, ele começou por estas
palavras famosas: ‘Consideramos como verdades evidentes que todos os homens
foram criados iguais; que pelo seu Criador lhes foram dados certos direitos
inalienáveis; que entre estes se encontra o direito à vida, à liberdade e à
busca da felicidade. Que para assegurar esses direitos se instituíram os
governos, derivando os seus justos poderes do consenso dos governados’. Quando
Jefferson escreveu estas palavras não tinha talvez qualquer idéia de que estava
usando a linguagem da filosofia estóica... A Declaração de independência
norte-americana tinha sido precedida e preparada por um acontecimento ainda
maior: a declaração de independência intelectual que encontramos nos teóricos
do século XVII. Foi aí que a razão declarou pela primeira vez o seu poder e a
sua pretensão de governar a vida social do homem. Emancipou-se da tutela do
pensamento teológico; tinha agora o domínio de si mesma”. (página 200/201).
Aqui vemos que o autor pôs o
dedo na ferida, ao mostrar que a modernidade não passa da arrogância da
criatura diante do Criador, a mesma arrogância que vem desde a origem. A razão,
que terá em Kant seu máximo glorificador, não pode ser um substituto de Deus,
colocada como origem da ética. Reside aqui precisamente o passo em falso da
modernidade, que redundou em tamanho banho de sangue como jamais houve. Por
isso Walt Whitman poderia depois compor o seu CANTO DE MIM MESMO, a verdadeira
canção da modernidade. Esse EU alargado que usa do estoicismo como mera
justificativa. O estoicismo é uma filosofia morta que era boa para os filósofos
mortos que a criaram, não para o tempo que sucedia ao pleroma cristão.
É preciso notar que Cassirer
dedica três capítulos a Maquiavel, esse monstro moral sem igual na história das
idéias políticas, que escreveu para os novos príncipes. E quem são esses novos
príncipes? Os revolucionários de todos os quadrantes e todas as seitas
gnósticas que congestionaram a história desde a Renascença, homens desprovidos
de qualquer senso ético. Não haveria Robespierre, nem Danton, nem Lênin, nem
Mao, nem Stalin, nem Hitler e todos os assemelhados, sequer mesmo Lula e o PT
sem o maldito florentino e sua frieza técnica codificada para ensinar as
maiores maldades políticas aos maiores malfeitores de todos os tempos. Cassirer
tinha que lamentar sem entender o próprio erro essencial:
“Todos os grandes e inegáveis
progressos alcançados na Renascença e pela Reforma foram contrabalançados por
uma severa e irreparável perda. A unidade e profunda harmonia da cultura
medieval tinham sido desfeitas. Decerto a Idade Média não esteve isenta de profundos
conflitos. A luta entre a Igreja e o Estado nunca abrandou; as discussões
acerca dos problemas lógicos, teológicos e metafísicos pareciam intermináveis.
Mas a base ética e religiosa da civilização medieval não era seriamente afetada
por essas discussões. Realistas e nominalistas, racionalistas e místicos,
filósofos e teólogos, tinham uma base comum que nunca era posta em dúvida. Essa
base foi abalada depois dos séculos XV e XVI; jamais conseguiu readquirir a
antiga solidez. A cadeia hierárquica do ser que dava a todas as coisas o seu
justo, firme, inquestionável lugar na ordem geral foi destruída... Se tivesse
de haver um sistema verdadeiramente universal de ética e religião, tinha de
basear-se em princípios tais que fossem admitidos por todas as nações, todos os
credos e todas as seitas. E somente o estoicismo parecia capaz dessa
finalidade. Tornou-se o alicerce de uma nova religião ‘natural’ e de um sistema
de direito natural. A filosofia estóica não parecia auxiliar o homem a resolver
os problemas metafísicos do universo, mas continha uma promessa maior e mais
importante: a promessa de restaurar o homem na sua dignidade ética. A
dignidade, afirmava ela, não pode ser perdida; e isso porque não depende de
nenhum credo dogmático nem de nenhuma revelação exterior. Assenta
exclusivamente na vontade moral – no valor que o homem atribui a si próprio.
Era esse o grande e, na verdade, inestimável serviço que a teoria do direito
natural tinha para oferecer ao mundo moderno”. (páginas 202/203).
E qual o erro essencial, do
autor assim como de toda a modernidade? Não perceber que a correta hierarquia
das coisas começa no mandamento maior de “Amar a Deus sobre todas as coisas”.
Quando a criatura se coloca no lugar do próprio Criador automaticamente o mito,
o seja, o Negador em quaisquer de suas formas, emerge com força e encontra no
Estado o meio mais adequado para a sua expressão. A autarquia estóica do homem
não tinha como “restaurar o homem na sua dignidade ética”, fato já demonstrado
e superado pelo cristianismo dos primeiros séculos. De Kant e Hegel (e de Marx
e de todos os sucessores) tinha que se esperar o endeusamento do Estado, a
sucumbência à terceira tentação pela qual passou Cristo. O reino desse mundo, a
imanência do ser, só poderia redundar na profunda inflação do Ego, a doença da
alma que é e continua sendo a doença de nosso tempo.
Outro erro do autor foi concluir
que há não apenas uma partição, como também um antagonismo entre o iluminismo e
o romantismo, falsa conclusão que lhe permitiu não enxergar em Kant o
verdadeiro inspirador das enormes maldades do século XX. “Há, contudo, dois pontos de importância
vital na luta entre o romantismo e o iluminismo. O primeiro é o novo interesse
pela história; o segundo é a nova concepção e valorização do mito”. (página
215). Ora, o romantismo é a continuação e o desdobramento necessário do
iluminismo, a anarquia dos indivíduos que se acham deuses. Aqui o grande
pensador ficou pequeno e preferiu reduzir-se à condição de discípulo do
mefistofélico filósofo de Königsberg a dar o passo maior em direção à verdade.
O livro de Cassirer me tocou
profundamente, pois vi nele o drama de uma alma enlaçada pelas armadilhas
intelectuais gestadas nos últimos cinco séculos. Nem ele tendo sido testemunha
ocular e vítima do nazismo conseguiu eliminar as travas postas nos seus olhos.
Por outro lado, a erudição e a excelente narrativa da obra são atestados de que
Cassirer foi um grande mestre da filosofia. Pena que não ousou fazer o que
precisava, o que todos nós precisamos fazer: honrar o Deus de seus
antepassados. Falhou no mais essencial.
Fonte: Blog do Nivaldo Cordeiro
- 15/09/2007
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