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terça-feira, 2 de junho de 2015

O KANTISMO NO BRASIL

Por José Osvaldo de Meira Penna

Embaixador, escritor e ex-professor da Universidade de Brasília

Neste trabalho são apresentadas idéias de importantes pensadores brasileiros sobre Kant. Inicialmente, comenta-se o 6° capítulo do livro de Antonio Paim, Histórias das Idéias Filosóficas no Brasil , onde o autor aborda os primórdios da influência de Kant no País, e destaca a temática kantiana a partir de aspectos como os relativos à moral e ao culturalismo. Em José Guilherme Merquior, salienta-se a dicotomia postulada entre liberdade negativa e liberdade positiva, enquanto que em Mário Vieira de Mello aparece a crítica em torno do kantismo. Finalmente, é apresentado Olavo de Carvalho, pensador brasileiro de particular relevância nos debates atuais em torno de Kant. A conclusão do texto repousa sobre Kant e o subjetivismo.

Palavras-chave: kantismo; moral; liberdade; cultura; subjetivismo.

Intróito

Em sua História das ldéias Filosóficas no Brasil (Primeira Edição USP, 1967; 3a  Edição, Convívio, INL, 1984), Antonio Paim reserva um capítulo inteiro, o 6°, ao estudo dos primórdios da influência do kantismo no Brasil. Paim coloca o início dessa influência quando a problemática moral foi levantada durante o Segundo Reinado, no cerne do espiritualismo eclético. No que se tornaria a principal corrente filosófica do período, o kantismo e o empirismo britânico de Hume penetram no Brasil por intermédio do ecletismo dos franceses Maine de Biran, Victor Cousin e Paul Janet. O grande pensador brasileiro que, primeiramente, veicula essas idéias e as desenvolve é Domingos José Gonçalves de Magalhães, o Visconde de Araguaia (+1882). Paim considera, no entanto, que ele chega a resultados frágeis. Ocupando-se dos sentimentos morais a partir de seus estudos de psicologia, Magalhães é autor de uma obra, A Alma e o Cérebro (1876), em que não se afasta dos pressupostos de fé em Deus, familiares entre os católicos ortodoxos.
"Não se trata de substituir a moral do sentimento; mas apenas de nos levantarmos contra os exageros de Kant,,,
Observa Paim que os ecléticos brasileiros cedo se alinham pelas idéias de Paul Janet ("V1907), um pensador de segunda linha que, numa doutrina denominada eudemonis-mo racional e formulada num Tratado Elementar de Filosofia (traduzido para o português em 1886), procura conciliar o caráter radical, repressor e inibidor da ética de Kant com a tese que os bons sentimentos e inclinações naturais positivas devem ser acrescentados ao Imperativo moral. Janet conclui que "não se trata de substituir a moral do dever pela moral do sentimento; mas apenas de nos levantarmos contra os exageros de Kant, que exclui inteiramente o sentimento do domínio da moralidade e, freqüentemente, parece confundir na moral o meio com o fim...". Paim salienta que, para muitos desses comentaristas e críticos da obra de Kant, o defeito de sua moral seria, precisamente, de atirar uma espécie de desfavor aos bons sentimentos e às inclinações naturais que nos conduzem, espontaneamente e sem esforço, ao bem. Embora não concorde com esse posicionamento, pois o imperativo moral consiste, precisamente, em controlar ou se opor às emoções, aos sentimentos, aos impulsos espontâneos da psique – não se pode deixar de admitir que a educação forma o caráter do homem de tal modo que deixa um substrato permanente o qual participa do complexo de condicionamentos da Ação nas emergências da vida. De qualquer forma, é evidente que grande parte dos posicionamentos dos pensadores brasileiros, antigos e contemporâneos, em relação à fria e categórica moral de Kant, está determinado pelo temperamento emotivo e afetivo que – como tenho insistido – se descobre nesse difícil conceito de "caráter nacional"1 .

Uma influência mais direta do Kantismo se manifestaria, segundo Paim, através da tradução para o português do livro do francês Charles Villers que, em 1801, publicou um tratado sobre "A Filosofia de Kant ou Princípios Fundamentais da Filosofia Transcendental". Essa obra seria popularizada em nosso país e em Portugal por Francisco Bento Targini, Visconde de São Lourenço – que acompanhara a família real e fora conselheiro de Dom João VI. Mas são sobretudo os Cadernos de Filosofia do padre Diogo Feijó que devem ser salientados como o principal veículo do kantismo, seguido da obra a esse respeito de Martim Francisco Ribeiro de Andrada, que nos foi revelada graças a importante pesquisa de Miguel Reale. Na Introdução e Nota aos Cadernos de Feijó, Reale adverte que, em que pese o abandono pelo padre, em favor da inspiração tradicional, da orientação kantiana no que diz respeito à Razão Prática – não se poderia senão elogiar os méritos de Feijó. Não se poderá tampouco saber, "onde havia mais Filosofia, se nas intuições morais do humilde padre-mestre, ou na existência concreta do estadista poderoso". A obra de nosso grande mestre Miguel Reale sobre A Doutrina de Kant no Brasil (SP, 1949) cobre esse período inicial da influência da doutrina kantiana no incipiente pensamento filosófico brasileiro.

Referência especial merece, novamente, o nome de Hermann Cohen (1842/1918). Fundador da Escola de Marburg de filosofia neokantiana, Cohen é repetidamente mencionado por Paim por sua influência no desenvolvimento do culturalismo brasileiro a partir do neokantismo. O que é curioso na obra desse pensador alemão, que retornou no fim da vida à religião de seus avós israelitas, é a tentativa de conciliação do kantismo e do Marxismo. Paim aponta as divergências entre ele e Nicolai Hartmann, outro prócer da Escola de Marburg e de maior influência ainda sobre o culturalismo neokantiano brasileiro.O que parece relevante na obra do filósofo teuto-israelita é a convicção que adquiriu, após sua reconversão, que do ponto de vista filosófico a ética só pode ser considerada num âmbito da humanidade como um todo. Se o seu coletivismo o conduzia a desejar, em favor do socialismo, repudiar todo individualismo liberal, Cohen teria percebido pelo menos que, na transcendência do Imperativo, temos que abarcar toda a humanidade e não o âmbito estreito de um grupo social, mesmo da extensão de um "povo escolhido", uma nação.

No período seguinte, ou seja, na década dos oitenta do século XIX, salienta-se Tobias Barreto. O principal filósofo brasileiro da época alinha-se com o neokantismo proveniente da Alemanha, mas não aparenta se haver preocupado dominantemente com a ética. Dirigindo sua atenção para o movimento evolu-cionista originado em Darwin, na versão peculiar de Haeckel –cujo "monismo" era então muito popular em nosso meio intelectual – Tobias Barreto sobrevive graças à reedição das suas obras pelo INL, em 1939, e ao livro de Paulo Mercadante e Antonio Paim, de 1972, Tobias Barreto na Cultura Brasileira. O curioso em Tobias Barreto é que não parece se haver dado conta da problemática brutal que o Darwinismo causa a toda filosofia ética. Poucos filósofos europeus disso tampouco se deram conta: Nietzsche foi provavelmente o único.

É em seguida com Farias Brito (V1917) e a denominada Escola de Recife que o pensamento kantiano reaparece. Trata-se de uma "interpretação autônoma" e a caminho para conversão de parte da intelectualidade da época ao pensamento católico em nova fase. Comportaria uma nova atenção aos problemas da consciência moral, tão desprezados na época pela hegemonia do positivismo, do "monismo" haeckeliano, do "cientificismo" e do "materialismo histórico" em seus primórdios. Sobre o tema vide a obra de Aquiles Cortes Guimarães Farias Brito e as Origens do Existencialismo no Brasil (Convívio, SP 1984).

Posteriormente, verifica-se que é por intermédio do marxismo e do integralismo, ambos com raízes comuns no sistema de Hegel, que a influência indireta de Kant se exerce. Paim nota ironicamente que, no Brasil estatizante que principia a se caracterizar após a Revolução de 1930, uma revolução dita "liberal" que conduziu a quinze anos de ditadura personalista, os princípios morais de Kant se traduzem por uma exigência profunda de racionalidade. É na base de uma espécie de pseudoimperativo categórico, de fundo econômico e relacionado com o postulado da luta de classes, que o Kantismo se manifesta. O Imperativo é: "Não explorarás o trabalho alheio"... O "desenvolvimentismo" começa a surgir. Kant é assim admitido pelas portas do fundo na integração do novo dogma que fascina a intelligentsia brasileira. Para o professor Leônidas de Rezende no entanto, Kant, como "dualista", estava destinado aos fogos do inferno ideológico, sob ameaça das labaredas inquisitoriais das patrulhas ideológicas de esquerda.

Finalmente, acentua Paim que a herança kantiana constitui o próprio sustentáculo da corrente culturalista que, por intermédio de Tobias Barreto, se desenvolve contemporaneamente, integrada por nomes como Djacir Menezes, Luis Washington Vita, Roque Spencer Maciel de Barros (os três já falecidos), Miguel Reale – por exemplo, em Verdade e Conjetura, de 1983–, Paulo Mercadante, Nelson Saldanha, Ricardo Vélez Rodríguez e o próprio Paim. Atrevo-me, modestamente, a apresentar minha candidatura ao ingresso nesse grupo seleto...

Sobre o problema específico do Culturalismo, podemos mais uma vez fazer referência a Paim e a seu ensaioProblemática do Culturalismo (Porto Alegre 1995, Coleção Filosofia, EDIPUCRS). O trabalho é encabeçado por uma citação pertinente de Wilhelm Windelband (V1915): "A filosofia transcendental de Kant é, nos seus resultados, a ciência dos princípios de tudo aquilo que hoje reunimos sob o nome de Cultura". O Culturalismo no Brasil estaria, por conseguinte, associado ao neokantismo com as figuras "catalisadoras" de Windelband, Heinrich Rickert (V1936), do já aludido Hermann Cohen, além do próprio Max Weber como acrescenta nosso autor, e de Ernst Cassirer. Eric Voegelin, no domínio da filosofia da história, um nome da maior relevância que constantemente citamos e invocamos alhures, se juntaria a essa plêiade de sumidades de origem germânica. Se ao grupo de pensadores já mencionados e todos falecidos, adicionarmos o nome de Miguel Reale, teriamos, na perspectiva de Paim, um quadro completo do culturismo kantiano brasileiro – e poderíamos definir seu princípio orientador como "a consideração da experiência humana em toda sua amplitude. Partindo de Kant, que a limitava ao contato com o mundo natural, o culturalismo aplica o conceito aos vários campos da criação humana, de que resulta o mundo da Cultura. Mas respeita os parâmetros fixados por Kant com vistas a evitar nova reintrodução de dogmatismo" (op. cit., p. 70) e sustenta toda a visão do mundo na história e na sociedade moderna em seu fundamento essencialmente ético. Aos nomes acima aludidos nos permitiremos, todavia, adicionar os de Mário Vieira de Mello e de Olavo de Carvalho.

É na base de uma espécie de pseudoimperativo categórico, de fundo econômico e relacionado com o postulado da luta de classes, que o kantismo se manifesta.

Em sua "Metafísica dos Costumes", prevenia Kant que "a adversidade, a dor, a pobreza são grandes tentações que levam o homem a violar seu dever". São também as grandes tentações do pensamento filosófico na modemidade. A esta altura, na situação pós-1989, devemos salientar que se torna de imensa relevância, em nosso país, a consideração da postura exata de Kant em face do liberalismo. Vimos que o tema é polêmico. Deve Kant ser considerado um dos pró-homens do liberalismo ou seria ele, pelo contrário, juntamente com seu detestável colega franco-suiço que tanto admirava, Jean-Jacques Rousseau, o autor de idéias de moral tão ambíguas que o tornam um longínquo antepassado do autoritarismo totalitário?

José Guilherme Merquior

Como primeira tentativa de esclarecer as posições dos que se posicionaram nesse debate sobre o liberalismo de Kant, lembremos nosso jovem e saudoso pensador José Guilherme Merquior, ressaltando, neste contexto, a dicotomia postulada entre liberdade negativa e liberdade positiva. Não faria eu nada melhor reproduzir o que, em seu ensaio O Liberalismo – Antigo e Moderno, escreve Merquior. Ele cita os conceitos de Isaiah Berlin e Charles Taylor. Numa conferência em Oxford, em 1958, Berlin, um dos mais respeitados liberais britânicos, "definiu a liberdade negativa como estar livre de coerção. A liberdade negativa é sempre liberdade contra a possível interferência de alguém... A liberdade positiva, por outro lado, é essencialmente um desejo de governar-se, um anseio de autonomia... Enquanto a liberdade negativa significa independência de interferência, a liberdade positiva está relacionada à incorporação do controle". Referindo-se a Charles Taylor, Merquior igualmente observa que, segundo o filósofo canadense, os críticos da liberdade positiva tendem a salientar que "os partidários da liberdade positiva terminam justificando o governo tirânico das elites 'esclarecidas' e afirmando objetivos humanos 'verdadeiros' ou 'mais nobres'... inspirados por elevados ideais de humanidade".

Prossegue Merquior seu discurso sobre este ponto, analisando as escolas de pensamento que realçam as diferenças entre autonomia e liberdade. Depois de mencionar a Inglaterra e a França, o ensaísta chega à Alemanha, quando cita Humboldt, Kant e Hegel. Ao afirmar que o homem, não como animal mas como pessoa, devia "ser considerado um fim em si mesmo", Kant cria "uma outra dimensão chave dos conceitos alemães de liberdade: autotelia ou realização pessoal. Kant colocou a autotelia no centro da moralidade". Um exemplo da noção de liberdade positiva se descobre na definição de Locke segundo a qual a Liberdade "é o poder que tem um homem de fazer ou deixar de fazer qualquer ação em particular, de acordo com que tenha ou não sua ação a preferência de sua mente, o que é o mesmo do que dizer, conforme o queira ou não" (emEssay concerning Human Understanding II. 21.15).

Mário Vieira de Mello

O segundo pensador contemporâneo importante na discussão em torno do Kantismo no Brasil é Mário Vieira de Mello. À primeira vista, Mário se colocaria a favor de Kant como defensor entusiasta, em primeiro lugar, da cultura e, em segundo, da liberdade. É a impressão inicial que se retira do brilhante argumento desse que, como Merquior, é diplomata-filósofo, contido em sua obra principal e tão injustamente esquecida: Desenvolvimento e  Cultura – um marco no pensamento brasileiro. Nesse primeiro livro, já velho de trinta anos mas tão expressivo do esforço relevante que fazem alguns espíritos de elite para salientar a ausência de um autêntico influxo ético na sociedade brasileira – tão comprometida pelo caráter aéticos, para não dizer imoral, de sua estrutura política – Vieira de Mello, inspirado pela dicotomia postulada por Kierkekaarg entre o ético e o estético, constrói um edifício monumental de apologia em favor de uma nova educação para a cultura em nossa terra, baseada em princípios éticos.

Passaram-se os anos e, em 1996, Mário nos apresentou O Humanista. Na nova obra (Topbooks, edit.), o pensador não abandona sua predileção inicial pela linhagem platônica. Pelo contrário: numa linha bem socrática, ele oferece como subtítulo ao livro a idéia do relacionamento entre A Ordem na Alma do Indivíduo e na Sociedade. Colorindo o arrazoado com sua também tradicional simpatia por Nietzsche, na vertente dos chamados "existencialistas", ele parece se mover na direção da filosofia da história de Eric Voegelin2 . Em O Humanista, que logo se seguiu ao O Cidadão , Mário evolui em seu filosofar e propõe uma nova dicotomia entre "Estruturas de Poder" e "Estruturas de Cultura". A dicotomia é, segundo me parece, uma maneira gravemente distorcida de julgar as sociedades num contexto histórico: as cidades antigas e as nações modernas atingem seu estágio de maior criatividade cultural no momento mesmo em que manifestam mais brutalmente sua Vontade de Poder. Os séculos de Péricles, de Augusto, de Elizabeth, de Luís XIV, da rainha Victoria, do II° Reich alemão foram, simultaneamente, séculos de expressão de seu imperialismo. Mas não é aqui o momento de polemizar em torno desse ponto. Cabe apenas apontar para o fato que a aludida dicotomia conduz Mário a classificar a ciência dentro das estruturas de poder.

Nessas estruturas é então incluído Kant cujo pensamento estaria "centrado de forma decisiva na problemática da ciência" (p. 77). "Impregnado de ciência e de imanência"... "não poderia ver outro tipo de razão que não fosse em termos de causalidade e universalidade". E isso dificultou, naturalmente, a compreensão pelo filósofo prussiano da estrutura íntima do princípio da liberdade" (p. 78-79). Mário não parece se dar conta que, ao se arregimentar junto à velha tradição que postulava uma oposição essencial entre a ciência, determinista, empirista e materialista, e a filosofia espiritualista de natureza religiosa que insistia no livre-arbítrio – ele ignora os avanços da física modema cujas teorias de ponta, pelo menos entre os que cozinham as consequências metafísicas dos Quanta, estão aparentemente reintroduzindo a indeterminação e, com ela, certos fatores irracionais que, paradoxalmente, reforçam a preeminência e prioridade da subjetividade humana. No entanto, Mário admite que a concepção dinâmica que tinha Platão do universo físico está mais próxima das concepções da física moderna do que a concepção aristotélica. Neste ponto, aliás, tenho também salientado que a introdução na cosmologia da dimensão temporal, subjetiva e histórica, efetuada por Agostinho na linha de Platão, se coaduna perfeitamente com a noção moderna de universo ilimitado, porém finito e histórico – sendo incompatível com a de um universo eterno e infinito da cosmologia de Aristóteles, geralmente admitida até princípios do século XX. Em poucas palavras, Mário acusa Kant de "não haver sabido discernir a natureza do relacionamento entre razão e liberdade" (p. 80). Acusa-o de haver "aceito uma espécie de abismo" nessa questão. Kant, além disso, teria elaborado uma formidável análise da "razão desengajada" e, esta, obedece a leis copiadas da ciência ou, no mínimo, postula uma causalidade livre "milagrosa" (p. 121). Seguindo Descartes, acusado por Mário de vícios semelhantes, Kant teria provocado "a distorção de nossa consciência humanista", sendo assim responsável pelo rompimento da comunicação, dentro da vida do espírito, entre razão e liberdade" (p. 125). Kant criou um fosso entre razão e liberdade, fosso que não conseguiu cobrir – impedindo assim um retorno ao humanismo platônico do pensamento germânico que, a partir de Hegel, descambou para o dialético. (I 3 5). Kant teria ignorado a dialética, mas "ignorou também, como Hegel, o processo educacional" (148). A opinião de nosso amigo, à página 248, que "Kant perfilhou-se ao grupo de filósofos que, como Descartes, estavam interessados na conquista do universo físico, do poder, e relegava a um segundo plano os problemas do espírito e da moralidade" – alinha-se, segundo creio, com a áspera crítica daqueles que, como já notei, vêem em Kant um prussiano inimigo da liberdade, anunciador do totalitarismo e profeta das "estruturas de poder". Estas estariam hoje configuradas na sociedade americana que repudiou os elementos afetivos, de philia, de amor, de paixão, de Eros platônico presentes na alma do filósofo antigo que participava do drama da busca da verdade e era personagem na tragédia da existência (279). Em conclusão, Descartes, Kant, Hegel, Husserl fazem parte de "uma série de gigantes cujas pernas são de louça: o que vai acontecer quando essas pernas se quebrarem?" pergunta nosso velho amigo (307)... Basta, por enquanto. Por mais que admire a obra de Mário Vieira de Mello não posso aceitar esse áspero ataque ao Kantismo e compreendo o ardor da polêmica que ocorreu, em certo momento, entre Merquior e Vieira de Mello, em torno de Platão, com respingos para o lado de Kant. Julgo o ataque profundamente injusto e incompatível com os próprios postulados do edifício filosófico que Mário ergueu através de sua longa produtividade de pensador "conservador". Não me admira, no entanto, que após tão complexa evolução, tenha ele atingido um ponto em que propõe como paradigma para nossa sociedade a monarquia absolutista anglicana do tempo da rainha Elizabeth e do rei Jaime Stuart...
Mário admite que a concepção dinâmica que tinha Platão do universo físico está mais próxima das concepções da física moderna do que a concepção aristotélica.

Olavo de Carvalho

O terceiro pensador brasileiro que considero de particular relevância nos debates atuais que possam se desenvolver em torno de Kant é Olavo de Carvalho. O filósofo paulista faz diversas referências ao de Koenigsberg em sua obra de grande impacto polêmico, num sentido que não consigo exatamente definir. Em O Imbecil Coletivo, que é de 1996, com várias edições posteriores, Olavo já acentua que "uma consciência moral cindida, que afirma no plano da conduta o que nega no dos princípios, é uma herança moral do kantismo", argumentando que a contradição entre a metafísica de Kant e o imperative categórico, ao qual o homem "deveria curvar-se simplesmente porque sim", cria um "abismo entre inteligência e vontade", nunca superada pelo filósofo. Com isso teria Kant exercido grande influência no positivismo e, particularmente, em Weber. Através do positivismo, teria influenciado o nascimento das ciências sociais que "cultivam um relativismo metódico".
Em O Futuro do Pensamento Brasileiro, que é de 1997 (Faculdade da Cidade Editora, Rio), volta Olavo de Carvalho à crítica de Kant que, "na pacata Koenigsberg, promove em silêncio uma revolução de conseqüências ainda mais devastadoras" do que aquela que ocorria em Paris, na mesma época. A crítica de Olavo se dirige então ao que alega seja a "universalidade do subjetivo" na filosofia do Mestre prussiano. Ele acusa Kant de haver, por sua universalização do subjetivismo, colaborado no que descreve como "o ciclo de dissolução da consciência individual na suposta consciência coletiva"...
Esse tipo de acusação me parece semelhante à que atingiu a teoria de Jung sobre o "Inconsciente Coletivo" e, por extensão, sobre toda a psicologia analítica moderna. Descobriu-se, no método analítico, até mesmo uma versão racista da noção de "alma da raça" ou "espírito do povo" (Volksgeist) que contaminou o Idealismo germânico a partir de Fichte e Hegel. É um mistério, no aprofundamento do qual certamente não vou tentar penetrar, que a meditação de Kant tenha podido evoluir para interpretações progressivamente mais românticas e nacionalistas, nas duas primeiras décadas do século XIX, dando origem ao monstro ideológico que ameaçou a humanidade no século seguinte. A semente talvez estivesse em Rousseau. Certamente, havia raízes mais remotas do que o Jacobinismo de 1793 – raízes de fundo religioso. É de se lamentar, quiçá, que não tenha Kant mais claramente enfatizado sua simpatia com o papel de Hume em livrá-lo do "sonho dogmático", em detrimento de Rousseau. Mas não é aqui o momento de me aproximar desse perigoso tema – bastando retornar à opinião que uma injustiça é cometida quando se coloca Kant como responsável pelo absolutismo autoritário germânico com suas raízes na Prússia.
Em vários outros momentos de sua obra, Olavo parece insistir em sua crítica ao subjetivismo kantiano. Ele criaria uma "espécie de supra-consciência que transcende todas as consciências individuais" e que, não podendo ser divina, "só pode então ser a consciência da comunidade humana, substancializada, personalizada e tornada mais consciente do que os indivíduos" (opus cit., p. 138-139). Olavo explica assim a afinidade que Lucien Goldmann descobre entre kantismo e marxismo – do mesmo modo como entre Kant e Rousseau, cuja noção de "Volonté Générale" ele, ao que parece, teria absorvido. Não desejo, contudo, me aprofundar na análise dessa crítica da crítica kantiana – pois em outra parte desta obra tento penetrar e debater o problema central do subjetivismo. Desde logo insisto que é o liberalismo, e não o coletivismo, o que descubro em germe no kantismo, por mais que certos de seus aspectos possam ser ambíguos.
Kant e o Subjetivismo.

Conclusões

Lembro desde logo que, no meu entender, a postura correta no vestíbulo de toda meditação filosófica é aquela que, em face do dualismo "eu e o mundo", parte do Subjetivo, antes de contemplar o Objetivo. Nisso me coloco dentro da augusta linhagem da "filosofia perene". É a trilha que, a partir de Heráclito/Sócrates/Platão, passando pelo "in interiore homine habitat Veritas" de Agostinho, o cogito de Descartes, o ceticismo de Hume e o subjetivismo do imperativo de Kant, até chegar ao Perspectivismo de Nietzsche, ao intuicionismo de Bergson, à metafísica de linguagem de Wittgenstein, às intuições mais avançadas da física moderna que introduzem o observador como elemento essencial de toda observação, e à psicologia analítica e introspectiva de Jung – depois de pular, inclusive, por cima do alegado autismo de Berkeley – percorre toda nossa afanosa e louca procura da sedutora, caprichosa e fugaz Aletheia.
Para concluir, desejo propor tentativamente o seguinte: a Lei moral fecunda, expressão da liberdade eterna do espírito, é um poder criador no tempo . No tempo futuro. A ação humana é poder de criação temporal e leva em consideração nossos planos e fins no futuro – e, por conseguinte, é afetada pela causalidade final. A Humanidade que seremos no futuro, depende das decisões particulares que tomamos constantemente no momento em que vivemos, aqui e agora. O determinismo do passado que manda no presente se transforma, agostinianamente, na liberdade que se projeta sobre o futuro. A determinação da vontade livre do homem, por força de uma "causalidade interior livre" – o que quer dizer, uma autodeterminação em razão de uma virtude interior – se processa sob a forma de projeção do julgamento subjetivo para um plano objetivo transcendente. No meu entender – posso estar errado, mas é esta minha interpretação do imperativo de Kant – é esse plano que fixa os valores determinantes da lei moral. Sua virtude tríplice é a que se exprime como fé, como esperança e como amor. O Imperativo categórico seria, então, alimentado substancialmente pelas três virtudes ditas sobrenaturais – ou, melhor ainda, pelas virtudes que poderíamos qualificar de "transcendentes"3 . Tais virtudes servem de fundamento a priori do Imperativo moral kantiano.
A causalidade livre da lei moral não é determinada pelo evento passado, é determinada pela meta futura. É uma causa final, uma teleologia. Armada a partir de um plano de "redenção" e "perfeição" que se pretende realizar pelos séculos dos séculos, a lei moral nos obriga por força do destino transcendente do Homem, destino que admitimos existir, precisamente, quando movidos pela esperança. E é a esperança que, conforme propunha Agostinho, informando nossa peregrinação na Terra em direção ao paradigma que se consubstancia no símbolo da "cidade de Deus", gera a fé e o amor. Na perspectiva do Eu moralmente consciente e racionalmente determinado, válido é o intencionalismo. Agimos, em virtude de alguma intenção futura que, por força da nossa fé "no que não se vê" mas se espera, revela sua conformidade com o imperativo da razão prática. Nenhum "dever" é obedecido se não se sustenta, previamente, na fidelidade a um código determinado de comportamento considerado válido, qualquer que seja a angústia da dúvida quanto a seus meios na ação. Do mesmo modo, o dever implica a esperança prévia que seu mandamento corresponde a um princípio que será, no futuro, confirmado como correto. E exige, simultaneamente, uma relação afetiva positiva para com o objeto da ação que se seguirá ao cumprimento desse dever.
E é a esperança que, conforme propunha Agostinho, informando nossa peregrinação na Terra em direção ao paradigma que se consubstancia no símbolo da "cidade de Deus", gera a fé e o amor.
É nesse sentido que podemos conjeturar cada vida, cada pessoa humana, cada alma singular como introduzindo, no universo, um quantum de indeterminação que o afeta por todo o sempre. O universo não pode estar absolutamente determinado, enquanto exista esta parcela infinitesimal de liberdade. E nessa visão, nessa perspectiva filosófica transcendental kantiana em que nos devemos colocar, é que poderíamos construir uma espécie de utopia, inspirada no "milenarismo filosófico" promovido por Kant. A visão utópica projetada sobre o futuro implica que cada um de nós, mulheres e homens, carrega como sentido último da existência na transitoriedade de nosso triste, problemático e peregrino percurso terreno, a missão ou dever de contribuir para o edifício de cultura universal.
A cultura é a grande obra final que constrói a humanidade no gozo de sua liberdade e nas condições restritivas de sua responsabilidade moral, diante da inextricável problemática da dúvida na escolha. Uma outra célebre frase de Kant muito nos ilumina sobre seu temperamento e suas convicções. Podemos utilizá-la como conclusão desta meditação ético-culturalista. Ela traduz algo que sinto como profundamente verdadeiro em minha própria meditação existencial:

"Sonhei e pensei que a vida é beleza. Acordei-me e me convenci que ela é dever"

THE KANTISM IN BRAZIL
José Osvaldo de Meira Penna
Ideas of Brazilian important thinkers about Kant are presented in this paper. Primarity, the 6th chapter of Antonio Paim's book, "History of Philosophical Ideas in Brazil" is commented. In this book, the author deals with the begirimings of Kant's influence in our country, and emphasizes the kantian  themes from aspects such as those related to moral and culturalism. In José Guilherme Merquior, the postulated dichotomyn between negative freedom and positive freedom is emphasized, whit in Mário Vieira de Mello a cristicism involving kantism in shoon. Finally, Olavo de Carvalho, Brazilian thinker of particular relevance in nowadays debates about Kant is presented. The conclusion of the text lies on Kant and the subjectivism.
Key words: kantism; moral; liberty; culture; subjectivism.


1 É o que procuro determinar na análise do "Caráter Nacional" que atrevidamente empreendi na obra Em Berço Esplêndido.
2 Essa ênfase atrai particularmente minha simpatia, eis que foi Mário quem, primeiramente, e isto no final da década dos cinquenta, me chamou a atenção para o trabalho monumental do pensador americano, de origem alemã, que pessoalmente cheguei a conhecer numa visita a Munique em 1962. Incidentalmente, Ordem e História assim como outras importantes obras de Voegelin nunca foram traduzidas.

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