Por
Murray N. Rothbard
O segredo para se
entender o intrincado e maciço sistema de pensamento criado por Karl Marx
(1818-83) é, no fundo, bem simples: Karl Marx era um comunista.
Sim, uma declaração aparentemente banal e estereotipada quando comparada à
miríade de conceitos — repletos de jargões — filosóficos, econômicos,
históricos e culturais presentes no marxismo. No entanto, a devoção de
Marx ao comunismo era o ponto crucial de sua teoria, muito mais fundamental e
dominante do que a dialética, a luta de classes, a teoria da mais-valia e todo
o resto. O comunismo era o objetivo, o grande fim, o desiderato, a meta
suprema que iria fazer com que todo o sofrimento da humanidade ao longo da
história houvesse valido a pena.
A história da
humanidade é a história do sofrimento, da luta de classes, da exploração do
homem pelo homem. Da mesma maneira que o retorno do Messias, na teologia
cristã, colocaria um fim à história e estabeleceria um novo céu e uma nova
terra, o estabelecimento do comunismo colocaria um fim à história humana e
criaria um novo paraíso de abundância.
Façamos uma análise
dos principais pontos do comunismo marxista. Ao contrário dos vários
grupos compostos por socialistas utópicos, e em comum a vários grupos
religiosos messiânicos, Karl Marx não fez nenhum esboço detalhando as
características de seu futuro comunismo. Marx não se preocupou, por
exemplo, em detalhar o número de pessoas que viveriam em sua utopia, nem o
formato e a localização de suas casas, e nem o padrão de suas cidades.
Isso é compreensível; afinal, todas as utopias que são detalhadas
pormenorizadamente por seus criadores inevitavelmente adquirem um aspecto de
indelével excentricidade, o que retira um pouco da seriedade da proposta.
Porém, ainda mais
importante, especificar os detalhes da sociedade ideal imaginada é um ato que
remove o crucial elemento de reverência e mistério deste supostamente
inevitável mundo do futuro. Da mesma maneira que os atuais filmes de
ficção científica perdem seu glamour e emoção quando, na metade final, os
misteriosos, poderosos e até então invisíveis monstros se materializam em
lentas e verdes criaturas em formato de bolha, as quais já perderam sua aura
misteriosa e se tornaram um lugar-comum, as utopias detalhadamente
especificadas também deixam de exercer fascínio sobre a maioria das pessoas.
No entanto, dentre
todas as visões do comunismo já apresentadas, certas características são
claramente iguais: a propriedade privada é eliminada, o individualismo é abolido,
a individualidade é proibida, todas as propriedades passam a ser controladas de
forma coletiva, e todas as unidades individuais do novo organismo coletivo são,
de uma vaga maneira, iguais umas às outras.
Havia um motivo
para Marx se recusar a especificar como seria a etapa comunista da humanidade
em maiores detalhes: sua utopia era reconhecidamente vaga e indefinida.
De um lado, Marx pressupunha e afirmava que, na futura sociedade comunista, os
bens seriam superabundantes. Sendo assim, obviamente, não haveria nenhuma
necessidade de se preocupar com aquele problema universal da humanidade: o fato
de que vivemos em um mundo de escassez, no qual os recursos utilizados para se
alcançar determinados fins não inexoravelmente escassos. Porém, ao supor
a ausência deste problema, Marx simplesmente legou um enigma para suas futuras
gerações de seguidores, os quais, desde então, ainda não chegaram a um consenso
em relação à seguinte questão: afinal, o comunismo irá ele próprio gerar este
mágico estado de superabundância, ou será que temos de esperar o
capitalismo produzir esta superabundância para, só então, estabelecermos o
comunismo?
De modo geral, os
grupos marxistas resolveram este problema — não na teoria, mas na prática —
aderindo ferrenhamente a qualquer oportunidade ou arranjo político que os
permitisse conquistar ou manter seu poder. Sendo assim, todos os partidos
marxistas, sempre que viram uma oportunidade de tomar o poder, se mostraram
invariavelmente dispostos a pular as "etapas da história" predefinidas
por seu Mestre e a exercer suas próprias e arbitrárias vontades
revolucionárias. Da mesma maneira, todas as elites marxistas que já se
encontravam encasteladas no poder tiveram o cuidado de constantemente adiar
para um futuro cada vez mais indefinido, com muito cuidado e astúcia, a
implementação do objetivo final do comunismo. Por isso os soviéticos, por
exemplo, foram céleres em enfatizar o trabalho duro e o gradualismo como
pré-requisitos para se alcançar o estágio supremo do comunismo, o qual teimava
em jamais se concretizar.
Há vários outros
prováveis motivos por que Marx não quis detalhar as características do
comunismo supremo — ou, mais especificamente, as etapas necessárias para
alcançá-lo. Primeiro, Marx não tinha nenhum interesse nos aspectos
econômicos de sua utopia; a simples pressuposição circular de que haveria uma
abundância limitada já era o bastante. Seu principal interesse estava nos
aspectos filosóficos do comunismo. Segundo, para Marx, assim como para
Hegel, a história necessariamente progride de acordo com uma dialética mágica,
na qual uma etapa inevitavelmente dá origem a uma outra etapa posterior e
contrária. Na versão neo-hegeliana de Marx, a "alienação" e o
processo "dialético" gerariam a aufhebung (transcendência)
e a negação de uma etapa histórica, a qual seria substituída por uma outra
etapa contrária à anterior — mais especificamente, a negação da condição
maléfica da propriedade privada e da divisão do trabalho, e o consequente
estabelecimento do comunismo, gerariam uma sociedade em que a unidade do homem
com a natureza e seu bem-estar pleno seriam alcançados. Exceto que, para
Marx, a "dialética" é material em vez de espiritual.
Marx nunca publicou
seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, nos quais as bases
filosóficas do marxismo foram apresentadas. Um ensaio em particular,
"Propriedade Privada e Comunismo", continha a mais completa
exposição da sociedade comunista. Um dos motivos para sua recusa em
publicar estes manuscritos foi que, nas décadas seguintes, a filosofia
hegeliana já havia saído de moda, mesmo na Alemanha, e os seguidores de Marx
estavam mais interessados nos aspectos econômicos e revolucionários do
marxismo.
O comunismo
puro
Outro importante
motivo por que Marx não quis publicar estes manuscritos foi justamente a sua
descrição franca e sincera da sociedade comunista no ensaio "Propriedade
Privada e Comunismo". Além de apresentar um conteúdo totalmente
filosófico, em vez de econômico, Marx descreveu uma etapa horripilante — porém
supostamente necessária — de como seria a sociedade imediatamente após a
violenta e necessária revolução mundial do proletariado, e antes de o
comunismo supremo ser finalmente alcançado. Seria a sociedade da etapa de
transição. Esta sociedade pós-revolucionária de Marx — aquela do
comunismo "puro", "cru" ou "grosseiro" — não era
exatamente um tipo de sociedade que estimularia as energias revolucionárias de
seus fieis.
Mais notavelmente,
Marx reconhecidamente concordava com a descrição feita pelo francês mutualista
e anarquista Pierre-Joseph Proudhon e pelo monarquista conservador e hegeliano
Lorenz von Stein a respeito de como seria essa primeira etapa da sociedade
pós-revolucionária, a qual Marx concordou com Stein em classificar de
"comunismo grosseiro". Tanto Proudhon quanto Stein eram ácidos
críticos do comunismo. Proudhon chegou a denunciar essa ideologia como
"opressão e escravidão". Em particular, a descrição de Stein, com a qual Marx concordava,
era que o comunismo grosseiro se degeneraria em uma tentativa de impor o
igualitarismo por meio do confisco e da expropriação selvagem e cruel da
propriedade privada, seguida de sua destruição. Adicionalmente, as
mulheres seriam coercivamente coletivizadas, bem como toda a riqueza
material. Com efeito, a avaliação de Marx sobre o comunismo grosseiro,
a etapa da ditadura do proletariado, não era muito romântica e era ainda mais
pesada do que aquela feita por Stein:
Esse movimento que
tende a opor a propriedade coletivizada à propriedade privada se exprime de uma
forma completamente animal quando contrapõe o casamento (que
é, evidentemente, uma forma de propriedade privada exclusiva) à coletivização
das mulheres: quando a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta.
Pode-se dizer que essa idéia da coletivização das mulheres contém o segredo
dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Assim
como a mulher deve abandonar o casamento em prol da prostituição geral, o mesmo
deve acontecer com o mundo da riqueza, o qual deve abandonar sua relação de
casamento exclusivo com a propriedade privada para abraçar uma nova relação de
prostituição geral com a coletividade.
Não bastasse isso,
Marx reconhece que
O comunismo
grosseiro não é a transcendência da propriedade privada, mas apenas a sua
universalização; não é a derrota da ganância, mas apenas sua generalização; não
é a abolição do trabalho, mas sim sua ampliação para todos os homens.
Destarte, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o
comunismo grosseiro, não é senão uma forma na qual toda a abjeção
da propriedade privada se torna explícita. [...]
Os pensamentos de
toda propriedade privada individual são, pelo menos, dirigidos
contra qualquer propriedade privada mais abastada, sob a forma de
inveja e desejo de reduzir todos a um mesmo nível; destarte, essa inveja e
nivelamento por baixo constituem, de fato, a essência da competição. O comunismo
vulgar é apenas o paroxismo de tal inveja e nivelamento por baixo,
baseado em um mínimo preconcebido.
E completa,
Eis a razão por que
todos os sentimentos físicos e morais foram substituídos pela simples alienação
trazida pela sensação da posse. A essência humana deveria mergulhar em uma
pobreza absoluta para poder fazer surgir dela a sua riqueza interior!
Em suma, na etapa
de coletivização da propriedade privada, aquelas características que Marx
considera serem as piores da propriedade privada serão maximizadas. Não
somente isso, mas Marx admite a veracidade da acusação dos anticomunistas de
que o comunismo e a coletivização nada mais são do que, nas palavras do próprio
Marx, o paroxismo da inveja e do desejo de reduzir todos a um mesmo
nível. Longe de levar a um florescimento da personalidade humana, como
supostamente afirma Marx, ele próprio admite que o comunismo irá aboli-la
totalmente.
Estas incisivas
ilustrações da maneira como Marx contemplava e avaliava como seria o período
imediatamente pós-revolucionário muito provavelmente explicam a extrema
reticência sobre este tópico que ele viria a demonstrar posteriormente em suas
outras obras publicadas.
Mas se este
comunismo é confessadamente tão monstruoso, um regime de "degradação
infinita", como alguém iria defendê-lo? Mais ainda, por que alguém
iria dedicar toda sua vida, e lutar uma revolução sangrenta, para
implementá-lo? Neste ponto, como frequentemente ocorre nas escritas e no
pensamento de Marx, ele recorre novamente à mística da "dialética" —
esta maravilhosa palavra mágica por meio da qual um determinado sistema social
inevitavelmente produz sua negação transcendental e vitoriosa. Segundo
Marx, a dialética explica como toda a maldade existente — a qual,
interessantemente, se materializa justamente na pós-revolucionária ditadura do
proletariado e não no capitalismo que a precedeu — irá se transformar na mais
completa e pura bondade.
O mínimo que se
pode dizer é que Marx não consegue — e nem tenta — explicar como um sistema
baseado na ganância absoluta irá se transformar em um sistema sem nenhum
resquício de ganância. Ele deixa tal tarefa a cargo da magia da
dialética, sem aparentemente se dar conta de que agora não há mais a suposta
força-motriz da luta de classes para impulsioná-la — a qual, mesmo sem existir,
de alguma forma será capaz de transformar a monstruosidade do comunismo
grosseiro em um paraíso inerente à etapa final do comunismo.
A dialética da destruição
Em sua cáustica
obra Crítica ao Programa de Gotha, escrita em 1875 com o intuito de denunciar
membros do Partido Social Democrata da Alemanha que estavam sob a influência de
Ferdinand Lassalle,
Marx afirma:
Na fase superior da
sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora
dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho
intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de
vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos
indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e
jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível
ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade
poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a
cada qual, segundo suas necessidades.
O que Marx está
dizendo é que a característica essencial do mundo comunista não é exatamente
nenhum princípio da distribuição de bens, mas sim a erradicação da divisão
do trabalho, o que magicamente levaria ao desenvolvimento total das
capacidades individuais e a um resultante fluxo de superabundância.
Curiosamente, em um mundo assim, o famoso slogan da última frase, ao contrário
do que se tornou arraigado no imaginário popular, passa a ser de importância
totalmente trivial.
A absoluta miséria
e o total horror da etapa suprema (e, mais ainda, da etapa que possivelmente
viria depois) do comunismo deveriam estar agora já totalmente aparentes.
A erradicação da divisão do trabalho iria rapidamente gerar a fome e a miséria
econômica para todos. A abolição de todas as estruturas de interrelações
humanas traria enormes privações sociais e espirituais para todos os
indivíduos. Até mesmo o suposto desenvolvimento "artístico"
intelectual e criativo das faculdades de todos os homens seria totalmente
afetado pela proibição a todo e qualquer tipo de especialização. Como
pode o genuíno aperfeiçoamento intelectual ocorrer sem nenhum esforço
concentrado? Em suma, o pavoroso sofrimento econômico da humanidade sob o
comunismo seria comparável apenas à sua privação intelectual e espiritual.
Considerando-se a
natureza e as consequências do comunismo, rotular esta horrenda distopia de
'ideal nobre e humanista' é algo que pode, na mais benemérita das hipóteses,
ser considerado apenas uma piada medonha, de gosto totalmente
questionável. A noção predominante de que o comunismo marxista é um ideal
glorioso para os homens, mas que foi tragicamente pervertido por figuras como
Engels, Lênin ou Stalin, pode agora ser colocada em uma perspectiva adequada.
Nenhum dos horrores cometidos por Lênin, Stalin ou quaisquer outros regimes
marxistas-leninistas é equiparável à genuína monstruosidade contida no
"ideal" comunista de Marx. Talvez a aplicação prática mais fiel
à teoria marxista tenha sido o curto regime comunista de Pol Pot, no Camboja, o
qual, ao tentar abolir por completo a divisão do trabalho, conseguiu impingir o
banimento total do uso do dinheiro — de modo que, para receber suas ínfimas
rações, a população dependia totalmente dos avarentos donativos fornecidos pela
burocracia comunista. Adicionalmente, o regime de Pol Pot tentou eliminar
as "contradições entre cidade e campo", colocando em prática o
objetivo de Engels de destruir as grandes cidades e de coercivamente despovoar
a capital do país, Phnom Penh, o mais rapidamente possível. Em poucos
anos, o grupo de Pol Pot logrou exterminar um terço da população do Camboja, o
que talvez seja um recorde em termos de genocídio.[1]
Dado que, sob o
comunismo ideal, todos os indivíduos teriam de fazer de tudo, é evidente que
muito pouco poderia ser realizado, mesmo antes da fome generalizada se
manifestar. Para o próprio Marx, todas as diferenças entre indivíduos
eram "contradições" que deveriam ser eliminadas pelo comunismo, de
modo que, presumivelmente, a massa de indivíduos existentes teria de ser
uniforme e perfeitamente permutável. Haveria um coletivo no qual cada
indivíduo efetuaria qualquer tarefa mesmo sem ter nenhuma especialização.
Ao passo que,
aparentemente, Marx ao menos postulava capacidades intelectuais normais até
mesmo sob o comunismo, alguns marxistas posteriores sequer admitiam essa
restrição. Para eles, a realidade seria bem mais florida; haveria o
surgimento de seres super-humanos, o que aliviaria enormemente as dificuldades
geradas pelo comunismo. Para Karl Kautsky (1854—1938), o marxista alemão
que assumiu o manto da liderança suprema do marxismo após a morte de Engels em
1895, sob o comunismo "um novo tipo de homem irá surgir ... um super-homem
... um homem elevado". Leon Trotsky divagava de modo ainda mais
lírico: "O homem tornar-se-á incomparavelmente mais forte, mais sábio,
mais puro. Seu corpo será mais harmonioso, seus movimentos serão mais
rítmicos, sua voz será mais melódica ... O humano médio será elevado ao nível
de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. Acima destes cumes, novos picos
surgirão." Se o estágio que virá após o estágio supremo do comunismo
durar tempo o bastante para criar esta nova super-raça, será um problema para
os teóricos comunistas deste futuro decidir o que fazer quanto à
"contradição" de se "permitir" que um super-Aristóteles se
eleve em relação a um Aristóteles. Tamanha desigualdade deverá ser
tolerada?
Alguns libertários
se sentem tentados pelo objetivo marxista do "definhamento e
desaparecimento do Estado" sob o comunismo, ou pelo uso da frase — tomada
emprestada dos libertários franceses pró-livre mercado Charles Comte e Charles
Dunoyer —, "um mundo no qual o governo de pessoas é substituído pela
administração de coisas". Há duas enormes falhas na formulação deste
ponto de vista. Primeiro, obviamente, como o anarco-comunista russo
Mikhail Bakunin (1814—76) insistentemente demonstrou, é absurdo tentar chegar a
um arranjo de total ausência de estado por meio da absoluta maximização do
poder estatal em uma totalitária ditadura do proletariado (ou, mais
realisticamente, uma ditadura controlada por uma seleta vanguarda do suposto
proletariado). O resultado será somente, e inevitavelmente, o estatismo
máximo e a subsequente escravidão máxima. Bakunin profeticamente alertou
para o fato de que uma pequena elite dominante irá novamente, após a revolução
marxista, governar a maioria:
Porém, dizem os
marxistas, essa minoria será composta de operários. Sim, com certeza, de
antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do
povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a observar o mundo proletário do
topo de sua autoridade estatal; não mais representarão o povo, mas a si mesmos
e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza
humana ... Os termos "socialismo científico" e "socialista
científico", os quais encontramos incessantemente nas obras e nos discursos
dos marxistas, são suficientes para comprovar que o chamado 'estado popular'
será nada mais do que um despotismo sobre as massas, exercido por um nova e
relativamente pequena aristocracia formada por falsos
"cientistas". Eles [os marxistas] alegam que somente uma
ditadura — comandada por eles próprios, é claro — pode trazer liberdade ao
povo; nós respondemos que uma ditadura não tem outro objetivo senão sua própria
perpetuação, e que ela não pode gerar outra coisa senão a escravidão do povo
submetido a ela. A liberdade pode ser criada apenas pela liberdade.[2]
De fato, somente um
crente na irracional magia negra da "dialética" pode acreditar no
contrário, ou seja, que um estado totalitário pode inevitavelmente e de maneira
virtualmente instantânea se transformar em seu oposto, e que, portanto, a
maneira de se livrar do estado é se esforçar ao máximo para maximizar seu
poder.
Mas o problema da
dialética não é o único — na verdade, não é nem o principal — problema do
comunismo marxista. O marxismo comunga com os anarco-comunistas um grave
problema quanto à etapa superior do comunismo puro (supondo por um momento que
tal etapa possa ser alcançada). O ponto crucial é que, tanto para estes anarquistas
quanto para os marxistas, o comunismo ideal é um mundo sem propriedade privada,
em que todas as propriedades e recursos serão controlados coletivamente.
Com efeito, a principal reclamação dos anarco-comunistas em relação ao estado é
que ele é supostamente o principal garantidor da propriedade privada, e que,
portanto, para abolir a propriedade privada é necessário abolir o estado.
A verdade, obviamente, é exatamente oposta: o estado, ao longo da história,
sempre foi o principal despojador e espoliador da propriedade privada.
Com a propriedade privada misteriosamente abolida, a eliminação do estado sob o
comunismo (tanto da variante marxista quanto da variante anarquista) seria
necessariamente uma mera camuflagem para um novo estado que surgiria para
controlar e tomar decisões em relação aos recursos geridos coletivamente —
exceto pelo fato de que o estado não mais seria assim chamado; ele seria
renomeado para algo como "agência estatística popular", mas
continuaria armado precisamente com os mesmos poderes. Será de muito
pouco consolo para as futuras vítimas, encarceradas ou assassinadas por
cometerem "atos capitalistas entre adultos em comum acordo", que seus
opressores não mais sejam o 'estado' mas sim uma 'agência estatística
popular'. O estado, sob qualquer que seja seu novo nome, continuará com o
mesmo aroma urticante.
Ademais, como já
indicado, na etapa "além do comunismo", a etapa de coletivização
universal, de inação e de não utilização de recursos, a morte de toda a raça
humana seria a inevitável consequência.
Marx e seus
seguidores nunca demonstraram qualquer consciência em relação à vital
importância do problema da alocação de recursos escassos. Sua visão do
comunismo é que todos os problemas econômicos desse tipo são triviais, e não
requerem nem empreendedorismo, nem um sistema de preços, e nem um genuíno
cálculo econômico — todos os problemas podem ser rapidamente solucionados pela
mera contabilidade ou por simples registros cadastrais. A clássica
insensatez em relação a esta questão foi explicitada por Lênin, que
acuradamente expressou a visão de Marx ao declarar que as funções de empreendedorismo e
alocação de recursos "já foram simplificadas ao máximo
pelo capitalismo, que as reduziu às extraordinariamente simples operações de
fiscalização, inscrição e emissão de recibos, algo que qualquer pessoa que
saiba ler, escrever e fazer as quatro operações de aritmética pode
fazer."
Ludwig von Mises,
com muita ironia, comentou que os conhecimentos econômicos dos
marxistas e dos outros socialistas "não eram maiores do que os de um
garoto de recados cuja única ideia em relação ao trabalho de um empreendedor é
que ele preenche pedaços de papel com letras e números".
Este artigo foi
extraído de trechos não sequenciais do livro Economic Thought Before Adam Smith— An Austrian Perspective on the History of Economic Thought.
[1] O povo soviético foi poupado do
cataclismo completo do comunismo quando Lênin, um hábil pragmático, recuou das
tentativas soviéticas iniciais (1918—21) de abolir o dinheiro e ir direto para
o comunismo (o qual, mais tarde, foi rotulado de "comunismo de
guerra"), e voltou à economia majoritariamente capitalista da NEP.
Já Mao Tsé-Tung tentou efetuar o comunismo em duas desastrosas ondas: o Grande Salto Para a Frente, o qual tentou
eliminar a propriedade privada e as "contradições" entre cidade e
campo por meio da construção de uma siderúrgica em todas as aldeias, e a Grande
Revolução Cultural Proletária, que tentou eliminar a "contradição"
entre trabalho intelectual e trabalho manual enviando toda uma geração de
estudantes para trabalhos forçados nos campos de Xinjiang.
[2] Bakunin, Estatismo e Anarquia: citado
em Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism: Its Origins, Growth and
Dissolution (New York: Oxford University Press, 1981), I, pp. 251?2. Ver também Abram L. Harris, Economics
and Social Reform (New York: Harper & Bros, 1958), pp. 149?50.
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um
decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi
o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for
Libertarian Studies.
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