O Brasil tem um
grande paradoxo a ser explicado: nosso povo desconfia dos políticos, classe que
goza de baixíssima credibilidade, mas ao mesmo tempo ama o Estado, visto como
abstração. Todas as soluções propostas para as mazelas criadas pelo
intervencionismo estatal acabam envolvendo ainda mais Estado. É como se ele
fosse formado por anjos celestiais, nunca pelos próprios políticos de carne e
osso, tão rejeitados pela população.
A fim de tentar
explicar esse enigma, Bruno Garschagen lança pela Record o livro “Pare de
acreditar no governo”, cuja orelha tive a honra de escrever. O autor vai buscar
na formação de nossa nação as origens do problema, em uma abordagem que dá
grande peso ao aspecto cultural da coisa. Com um estilo próprio e repleto de
ironia fina, Garschagen analisa essa insistente adoração do Estado pelo povo
brasileiro em diferentes épocas, uma adoração inabalável, apesar de revoltas
crescentes com os políticos que controlam o aparato estatal.
“O livro começa com
D. Manuel I e termina com Dilma Rousseff, comprovando que nada é tão ruim que
não possa piorar”, fulmina o autor. E claro, lá está a marca registrada de
nossa mentalidade já na primeira carta enviada após nosso descobrimento: “O
pedido de Caminha, o verdadeiro motivo para a elaboração da carta na qual a
narrativa do descobrimento foi um mero pretexto, inaugurou a nossa excêntrica
característica cultural de pedir favores ao governo para conseguir cargos e
privilégios, especialmente em se tratando de parentes”.
Desde Caminha, a
proximidade com o poder sempre foi um atalho para o sucesso por aqui, independentemente
do mérito ou do valor
Desde então, a
proximidade com o poder sempre foi um atalho para o sucesso por aqui,
independentemente do mérito ou do valor. Nosso “capitalismo de Estado”, ou de
compadrio, tem seu DNA já na economia das mercês, um modelo no qual o Estado
“distribuía privilégios e concessões a partir de acordos pactuados entre o rei,
o poder local e os seus súditos”. O BNDES de Luciano Coutinho é apenas o
coroamento desta velha tradição, tirando dos pobres para dar aos ricos, tudo
isso num governo de esquerda.
Outro responsável
pelas raízes dessa mentalidade intervencionista foi Pombal. Nele temos o ápice
da arrogância iluminista que julgava ser possível construir uma sociedade
próspera de cima para baixo: “O pombalismo foi o casamento do iluminismo
francês com o mercantilismo e o patrimonialismo, que passaram a coabitar e a se
retroalimentar em benefício das elites políticas e empresariais ligadas ao
governo”.
O tom altamente
crítico à nossa República também é visível ao longo da obra: “A República
nasceu maculada. Fruto de um golpe de Estado, jamais conseguiu superar as
virtudes construídas pela Monarquia. Com a República, o que era ruim não era
novo, e o que era novo era péssimo”.
Outras influências
nefastas nessa mentalidade estatizante foram Comte e seu positivismo, e Vargas
e seu castilhismo. Essa visão curiosamente não dependia do viés ideológico e
unia figuras bastante diferentes em torno de um denominador comum: “É curioso
observar, em retrospecto, que dois grandes adversários ideológicos e políticos,
o ditador Vargas e o comunista Luís Carlos Prestes, compartilhavam uma
concepção política bastante similar. Ambos olhavam para as parcelas mais pobres
da população e para os trabalhadores de cima para baixo, de maneira mais ou
menos paternalista, e viam no Estado o grande instrumento de ação social
fundamentado numa base autoritária”.
JK com seu
arrogante Plano de Metas, o regime militar com seu dirigismo estatal na
economia, até mesmo FH, “acusado” de ser um neoliberal pela esquerda, todos
beberam da fonte centralizadora, com diferentes gradações. FH, justiça seja
feita, privatizou importantes estatais, quebrou o monopólio de setores
estratégicos, abriu o país para o capital financeiro, aprovou a Lei de
Responsabilidade Fiscal e modernizou as agências reguladoras. Mas mesmo assim
lá estava o mesmo DNA que deposita no Estado o papel de locomotiva, se não da
economia, ao menos da “justiça social”.
O que veio em
seguida, desnecessário dizer, foi o auge desse câncer que nos assola há
séculos: “Lula e o PT conseguiram algo que parecia impossível: desmoralizaram
não apenas a corrupção, mas a política brasileira, incorporando e exercitando
vários elementos de caráter centralizador, do patrimonialismo ao positivismo
castilhista, do coronelismo ao varguismo, do autoritarismo militar ao
fisiologismo das oligarquias regionais. O lulopetismo é, no fundo, a
experiência bem-sucedida (no mau sentido) da tradição autoritária e
patrimonialista da política brasileira”.
Postado por:
Rodrigo Constantino
Fonte: O Globo,
26/5/2015
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