Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Roberto Campos
(1917-2001) notabilizou-se como pensador liberal, diplomata, politico,
economista e homem de letras. É uma de nossas mais iluminadas inteligências. Roberto
Campos participou da criação da ONU, retornou ao Brasil, acompanhou a
instalação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, participou da criação do
BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), conviveu intelectualmente
com Eugênio Gudin, colaborou no governo Castello Branco, foi senador
constituinte.
Criticou o ambiente conceitual da Assembleia Nacional
Constituinte de 1986, que qualificou como a vitória do nacional-obscurantismo.
Adiantou-se nas críticas ao novo modelo tributário da Constituição de 1988,
reputando-o como hiperfiscalista, premunido perda de receitas da União, que
mais tarde seriam recuperadas com ampliação de bases tributárias, especialmente
mediante a proliferação das contribuições.
O interessante é que boa parte das profecias de Roberto
Campos ainda hoje se discutem. Criticando a carta de 1988, Campos afirmou que a
cultura antiempresarial de que se impregnou a Constituição em breve fará o
Brasil o país ideal onde não investir. Durante a preparação daquele documento,
Roberto Campos já se mostrava muito crítico:
Tenho lido e
relido o texto constituinte, um dicionário de utopias de 321 artigos. Pouco ou
nada se parece com as constituições civilizadas que conheço. Seu teor
socializante cheira muito à infecta Constituição portuguesa de 1976, da qual
Portugal procura agora desembaraçar-se a fim de embarcar na economia de mercado
da Comunidade Econômica Europeia. O voto aos 16 anos dizem copiado da
Constituição da Nicarágua. A definição de empresa nacional parece só existir na
Constituição de Guiné-Bissau. Em ambos os casos, nem o mais remoto odor de
civilização...
Roberto Campos admitia subordinar a liberdade política ao
desenvolvimento econômico e nesse sentido ao comparar a Argentina com o Chile
observou que
“A realidade
não é tão simples. Alfonsín é um presidente inquestionavelmente legítimo e a
Argentina experimenta inflação e estagnação. Pinochet é ilegítimo e conseguiu
desinflação e desenvolvimento. Donde se conclui que a legitimidade presidencial
pelo voto direto, altamente desejável para a consolidação democrática, não é
fórmula mágica para garantir êxito na luta anti-inflacionária, nem na
restauração do desenvolvimento. Tudo depende do senso de prioridade e da
coragem cívica do governante.
Roberto Campos divulgou constantemente os pensadores
neoliberais, no espaço que ocupou na imprensa. O diplomata brasileiro pranteava
Hayek, sobre quem escreveu:
Foi o homem
de ideias que mais bravamente lutou, ao longo de duas gerações atormentadas,
pela liberdade do indivíduo contra todas as modas totalitárias, do socialismo
soviético ao nazismo. E contra outras formas de opressão resultantes da
sobreposição do Estado burocrático à pessoa humana, a pretexto de interesses
sociais que ele próprio, Estado, reserve para si o poder de determinar.
Com língua ferina, condenou toda forma indevida de
interferência do Estado (o mais frio dos monstros, segundo Nietzsche, por
Roberto Campos citado). A propósito de decisão do Supremo Tribunal Federal que
afastou o antigo IPMF, mais CPMF, escrevera:
Recente
decisão do Supremo Tribunal, rejeitando o IPMF, na preliminar de
inconstitucionalidade, foi economicamente sensata. O imposto fora concebido
como uma heroica simplificação- substituir o atual manicômio fiscal por um
imposto único sobre a moeda eletrônica. Eliminar-se-iam a burocracia da
declaração, a corrupção do fiscal e a engenhosidade do sonegador. A ideia foi
distorcida pelo governo, piorada no Congresso e tornou-se o 59º tributo. Uma
espécie de O bebê de Rosemary, do filme de Roman Polansky, oriundo de uma
transa inconsciente de Mia Farrow com Belzebu. Aliás, durante as discussões da
Constituição de 1988, profetizei que estávamos criando um bebê de Rosemary: o
diabo íncubo era o nacional populismo, que o Brasil somente começou a exorciar
depois da queda do Muro de Berlim
A participação de Roberto Campos na preparação da
Constituição de 1988 ilustra efusivamente a interface entre o neoliberalismo e
o Direito brasileiro na medida em que boa parte das críticas do diplomata
realizou-se no futuro. Roberto Campos, o mais ferrenho defensor do
neoliberalismo no Brasil, e que foi constituinte na Assembleia de 1986,
alertava veementemente para incompatibilidades entre a Constituição que então
se escrevia e se promulgava e o mundo globalizado:
Os
estudiosos de Direito Constitucional aqui e alhures não buscarão no novo texto
lições sobre arquitetura institucional, sistema de governo ou balanço de
poderes. Em compensação, encontrarão abundante material anedótico. Que
constituição no mundo tabela juros, oficializa o calote, garante a imortalidade
dos idosos, nacionaliza a doença e dá ao jovem de dezesseis anos, ao mesmo
tempo, o direito de votar e de ficar impune nos crimes eleitorais? Nosso título
de originalidade será criarmos uma nova teoria constitucional: a do
‘progressismo arcaico’.
Roberto Campos escreveu que a Constituição que então
fazíamos nos colocava na contramão do processo de globalização inspirado pelo
neoliberalismo que o mundo então vivia. O excesso de regulamentação, o velho
apego ao Estado de bem-estar social denunciado por F. Hayek, Miltom Friedman e
Karl Popper nos alijaria da distribuição das benesses que esse ambiente de
globalização estaria prestes a nos proporcionar. E escrevia o diplomata,
Que
contribuição trará a nova Constituição para inserir o Brasil nessa onda
modernizante? Rigorosamente, nenhuma. O Brasil está desembarcando do mundo. Em
vez da ‘ desregulamentação‘, o Estado fará planos globais e normatizará a
atividade econômica. Em vez de encorajar o Poder Executivo a intensificar a
privatização, amplia-se o monopólio da Petrobrás, nacionaliza-se a mineração, a
União passa a ser proprietária e não apenas administradora do subsolo, os
governos estaduais falidos terão o monopólio do gás canalizado. Enquanto a
Inglaterra, o Japão e a Espanha, entre outros, privatizam suas grandes empresas
telefônicas, o Brasil transforma em monopólio estatal todas as
telecomunicações, inclusive a transmissão de dados. Na sociedade de informação
isso representa enorme concentração de poder nas mãos da ‘nomenklatura’
estatal, sujeita a frequentes perversões ideológicas.
Roberto Campos indignava-se com uma Constituição que
reputava de promiscuísta, que reconhecia um salário-mínimo nacionalmente
unificado, garantindo ao peão de Piancó salário igual ao do trabalhador do ABC
paulista. Lamentava que a Constituição promete-nos uma segurança social sueca
com recursos moçambicanos. Motejou do texto de 1988 em post scriptum que
redigiu em artigo de jornal, um pouco antes da promulgação daquela carta:
P.S. Logo
após a promulgação pedirei, como idoso, um ‘mandado de injunção‘ para que o Bom
Deus seja notificado de que tenho garantia de vida, mesmo na ocorrência de
doenças fatais (art. 233), sendo portanto inconstitucional afastar-me de meus
compromissos terrestres
Para Roberto Campos a Constituição de 1988 era
saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico,
comoventemente utópica no social. Para o criador do BNDE os constituintes
haviam extrapolado o mandado que o povo lhes conferira, avançado em todos os
temas da vida nacional, de forma irresponsável e anacrônica, promovendo uma
antinomia entre o processo de globalização e nossa estrutura constitucional.
Escrevera ele,
Durante a
gravidez e parto da nova Constituição, os constituintes brincaram de Deus.
Concederam imortalidade aos idosos. Aboliram a pobreza por decreto. Legislaram
custos, acreditando que legislavam benefícios. Tabelaram juros, esquecendo-se
de que o governo é o principal demandante de crédito. Dificultaram despedidas,
sem se dar conta de que assim desencorajariam novas contratações. O resultado
dessas frivolidades será mais inflação e menos emprego. Nem chegaram a aprender
que, num país sem inimigos externos que lhe ameacem a sobrevivência o verdadeiro
nacionalismo é criar empregos.
Roberto Campos divulgava que uma nova Constituição seria
insuficiente para promover melhora nas condições de vida dos brasileiros.
Alertava que o excesso de apego à forma, que denominava de constitucionalite,
em nada resolveria problemas estruturais. Por isso,
O povo
percebe que a ‘constitucionalite’ não lhe melhorou as condições de vida. Aliás,
se isso acontecesse, os ingleses estariam perdidos, pois não têm constituição
escrita. E os japoneses ainda pior, pois sua constituição foi escrita pelos
americanos vitoriosos na guerra. Ante a prosperidade japonesa, chegar-se-ia à
bizarra conclusão que a melhor constituição é a escrita pelos inimigos...
A distância entre a realidade e o universo constitucional
intrigava o senador Roberto Campos, que denunciava a utopia que envolvia e
emulava o modelo constitucional que então que se produzia. A Constituição de
1988 promovia uma catarse nacional, após o longo jejum que a Era Militar
impusera ao país. Como a comprovar o pacifismo de nosso povo, fazia-se uma nova
carta política sem ter havido ruptura jurídica.
Tinha-se que a assembleia constituinte operava o resgate de
nossa dignidade, à luz de um postulado liberal que plasmava uma sociedade civil
acima do Estado. Roberto Campos percebia certo açodamento na trajetória da
Assembleia Constituinte e provocava,
Segundo o
primeiro-ministro do trabalhismo inglês, James Calaghan, nada mais perigoso do
que a feitura dos textos constitucionais. Isso desperta o instinto utópico
adormecido em cada um de nós. E todos somos tentados a inscrever na
Constituição nossa utopia particular. Foi o que aconteceu. É utopia, por
exemplo, decretar que prevaleça no Nordeste um salário mínimo igual ao de São
de Paulo. É utopia dar garantia de vida, ou seja, a imortalidade, aos idosos. É
utopia imaginar que num país que precisa exportar competitivamente se possa ao
mesmo tempo encurtar o horário de trabalho e expandir os benefícios sociais.
O Brasil aproximava-se de um modelo que os portugueses
estavam prestes a abandonar, como condição para entrada na comunidade europeia,
configurando-se um desses paradoxos e dramas do direito contemporâneo.
Traslada-se um modelo normativo de pós-guerra, prenhe de preocupações sociais,
oposto ao período de influência iluminista, síntese da evolução do ciclo
evolutivo do direito canônico na península ibérica, e pelo coletivismo
português esquecido. Escarnecendo da circunstância, escreveu Roberto Campos:
Para
infelicidade dos brasileiros, a nova Constituição entrou para o anedotário
mundial. A piada dos lusitanos é que os brasileiros botaram na nova Constituição
tudo o que os portugueses querem tirar da deles. Como não considerar anedótico
um texto que, na era dos ‘mercados comuns’, declara o mercado interno um
‘patrimônio nacional’? Na era dos mísseis balísticos, declara fundamental para
a defesa nacional uma área de até 150 quilômetros ao longo das fronteiras? Como
singularizar os advogados como ‘insubstituíveis na administração da justiça’,
quando todos nos queremos livrar deles nos juizados de pequenas causas e nos
desquites amigáveis ?
Ainda criticando a aproximação conceitual de nossa
constituição com a de Portugal, escreveu Roberto Campos:
A desastrosa
Constituição de 1988- inspirada pela portuguesa, da qual os lusitanos se
arrependeram quando se deram conta de que haviam sido cravados pela ‘ revolução
dos cravos’ – representou, para usar feliz expressão do professor Paulo
Mercadante, um ‘avanço do retrocesso´.
E em outro texto, Roberto Campos com extremo rigor
persistia na crítica ao romantismo do texto de 1988:
A
Constituição brasileira de 1988, triste imitação da Constituição portuguesa de
1976, oriunda da Revolução dos Cravos, levou ao paroxismo a mania das
Constituições ‘dirigentes’ ou ‘intervencionistas’. Esse tipo de constituição,
que se popularizou na Europa após a Carta Alemã de Weimar, de 1919, tem pouca
durabilidade. Ao contrário da mãe das Cartas Magnas democráticas- a
Constituição de Filadélfia- que é , como diz o professor James Buchanan, a
‘política sem romance’, as constituições recentes fizeram o ‘romance da
política’. Baseiam-se em dois erros. Primeiro, a ‘arrogância fatal’, de que nos
fala Hayek, de pensar que o processo político é mais eficaz que o mercado na
promoção do desenvolvimento. Segundo, a ideia romântica de que o Estado (...) é
uma entidade benevolente e capaz. Essa idiotice foi mundialmente demolida com o
colapso do socialismo na inesperada Revolução de 1989/91, no Leste Europeu.
Felizmente, o tempo confirmou que alguns vaticínios de
Roberto Campos não se confirmaram, a exemplo do vigor e da importância do texto
constitucional de 1988 em nossa vida política e institucional.
CAMPOS, Roberto. A Lanterna na Popa.
CAMPOS, Roberto. O Século Esquisito.
CAMPOS, Roberto. Antologia do Bom Senso.
TEMER, Michel. Constituição e Política.
ANDRADE, A. Couto de. Constituinte- Assembléia Permanente
do Povo, WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito
CUNHA, Paula Ferreira da. Para uma História Constitucional
do Direito Português
COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito
Português. SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do Direito Português
Fonte: Consultor Jurídico (25-11-2012)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente! Boa parte dos conhecimentos surgiu dos questionamentos.
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.